sexta-feira, 21 de março de 2014

ACREDITAR EM ALDRABICES NA RTP

Aparentemente a RTP resolveu usar o dinheiro que os contribuintes lhe pagam através da contribuição audiovisual e das transferências do Orçamento de Estado, para criar uma secção regular de aldrabices no telejornal das oito, a que chamou "acreditar". 

É extraordinário que, não tendo a ciência um espaço cativo no telejornal, essa espaço tenha sido dado à pseudociência.

- No dia 17 de Março a estação pública de televisão resolveu usar 7 minutos do telejornal (a partir do minutos 12) para fazer publicidade a um especialista em "medicina popular", que afirma fazer diagnósticos médicos medindo, aos palmos, a roupa dos pacientes.

- No dia 19 de Março, foram dados 6 minutos e 15 segundos no horário mais nobre da televisão pública a uma cartomante, que diz acertar em 90% das vezes.

- Ainda o espectador não estava recomposto de tantos disparates, quando no dia seguinte a televisão pública resolve dar mais 7 minutos e 24 segundos de publicidade a uma fitoterapêuta que afirma fazer diagnósticos de doenças graves através da leitura da íris, dizendo que "os olhos são o espelho da alma", lugar comum que não significa absolutamente nada. Mais grave ainda, afirmou tratar o cancro de uma paciente com a raiz de uma planta de origem coreana, cuja raiz "tem a forma do corpo humano". E conclui dizendo que "a quântica pode determinar a data da morte do ser humano".


A ciência ocupa 0,8% do tempo dos telejornais em horário nobre, a duração média das peças de ciência no telejornal da RTP é de três minutos e vinte e quatro segundos e 92% delas têm menos de 5 minutos. Mas, em quatro dias, a televisão pública gastou 20 minutos e 39 segundos a fazer publicidade enganosa a produtos e serviços milagrosos. 

Segundo o  Decreto-Lei n.º 57/2008 de 26 de Março de 2008 que regula o Regime das Práticas Comerciais Desleais, é considerada uma acção enganosa:

Artigo 7.º – Acções enganosas
1 – É enganosa a prática comercial que contenha informações falsas ou que, mesmo sendo factualmente correctas, por qualquer razão, nomeadamente a sua apresentação geral, induza ou seja susceptível de induzir em erro o consumidor em relação a um ou mais dos elementos a seguir enumerados e que, em ambos os casos, conduz ou é susceptível de conduzir o consumidor a tomar uma decisão de transacção que este não teria tomado de outro modo:
(...)
b) As características principais do bem ou serviço, tais como a sua disponibilidade, as suas vantagens, os riscos que apresenta, a sua execução, a sua composição, os seus acessórios, a prestação de assistência pós-venda e o tratamento das reclamações, o modo e a data de fabrico ou de fornecimento, a entrega, a adequação ao fim a que se destina e as garantias de conformidade, as utilizações, a quantidade, as especificações, a origem geográfica ou comercial ou os resultados que podem ser esperados da sua utilização, ou os resultados e as características substanciais dos testes ou controlos efectuados ao bem ou serviço;
(...)
Os bens ou serviços publicitados em todas estas peças da RTP constituem acções enganosas. E a televisão pública acha por bem publicitá-los gratuitamente em horário nobre. Isto não é serviço público. Serviço público seria contribuir para desmistificar estes enganos. Poderia fazer reportagens sobre o assunto. Poderia ouvir os curandeiros. Mas teria que ter sempre um contraponto racional, apresentar o conhecimento científico acerca desta assunto, e não ser um magafone acrítico dos curandeiros e cartomantes. Assim, não é jornalismo. É publicidade enganosa paga com o dinheiro dos consumidores de electricidade portugueses.

Não sei que que se passa pela cabeça da RTP. Nem que concepção delirante de serviço público o justifica. Isto é uma acção (deliberada ou inadvertida) que contribui para acabar com o serviço público de televisão.

8 comentários:

A Küttner disse...

Como é evidente "isto" não é serviço público.

Como é evidente, telejornais de mais de 15 minutos não são telejornais.

Como é evidente, é muito mau, mas, mas é o que temos.

E agora??????????????????

Pedro Lind disse...

E *agora*, ainda bem que há pessoas que tomam uma atitude, e não se conformam com o que temos, para que se possa passar um pouco melhor *aqui*, *amanha*. Parabéns David, tambem pela carta que vi no FB. Espero que chegue ao seu destino!

Pedro BT disse...

Aparentemente, a televisão está como o país, ou o que nos querem fazer crer sobre o país: está tudo tão perdido, que já só nos resta "acreditar". Como o SNS faliu e não é capaz de tratar os doentes, ou trata-os mal (demoram 2 anos a fazer colonoscopias..), resta aos doentes acreditar no que tem mais à mão, mesmo que lhe leve o couro e o cabelo. A menina da iridologia tinha um ar apaixonado e uma íris linda, e só por isso os doentes oncológicos já se sentem meio curados. Além disso, a ciência é claramente um insucesso, visto que continua a não dar com a cura das doenças como o cancro (certamente um bando de charlatães que gasta do dinheiro das bolsas a estudar a drosophila). Entretanto, semanalmente vejo os efeitos destrutivos de uma certa reportagem sobre células dendríticas milagrosas: dezenas de doentes continuam a peregrinar a uma obscura vilória alemã, para levar estranhas injecções de "vacinas" sobre as quais pouco se sabe, excepto do seu elevado preço. E depois regressam para morrer nas instituições do mesmo incompetente SNS português, às vezes poucos dias depois. Bravo, David.

Anónimo disse...

Pois é, é o preço de ignorar que na prática, a ciência tem vindo continuamente a sobre-estimar-se e é hoje pouco mais do que mera propaganda, servindo mais os negócios do que as necessidades e queixas reais das pessoas.

Anónimo disse...

Não se escreve "sobre-estimar" mas sim "sobrestimar".

E pelos vistos a ciência permite os meios de escrever comentários neste blog, por exemplo.

adavid disse...

Por acaso esta semana vi o telejornal quase todos os dias e tambem fiquei consternado. Convido todos a escrever ao provedor. A minha carta é aberta:

http://www.rtp.pt/wportal/grupo/provedor_tv/enviarmensagem.php

Caro provedor,

Estando no estrangeiro, sou um grande apreciador e consumidor do serviço online da RTP. É excelente não só porque me permite não perder a minha lusofonia, como também me ajuda a partilhá-la com as minha filhas que são portuguesas e filipinas.

Tenho assistido com algum interesse à forma como os formatos informativos se têm transformado e creio úteis os arcos de informação semanal que tratam um tema comum em todos os telejornais das 21 na RTP1.

Ora na semana que passou o tema pode resumir-se a pseudociência e engano ao próximo, como descrito em
http://dererummundi.blogspot.pt/2014/03/acreditar-em-aldrabices-na-rtp.html
e foi repetido ao longo da semana, cada dia uma aldrabice diferente.

É muito triste que com tanta e tão boa ciência feita em Portugal, se consagre uma quantidade de prime time "informativo" a prácticas que são enganosas no sentido do Decreto-Lei n.º 57/2008 de 26 de Março de 2008.

Espero que no futuro a ciência que realmente trouxe à humanidade o conhecimento e a tecnologia que disfrutamos possa ter prime time informativo e que este tipo de afronta um dos bens mais preciosos do ser humano: a razão.

Obrigado,

André David
Físico experimental de partículas

adavid disse...

Quero tambem fazer uma lista exaustiva das "reportagens" porque foi a semana inteira:
- 3a (18) http://www.rtp.pt/noticias/index.php?article=724418&tm=8&layout=122&visual=61
- 6a (21) http://www.rtp.pt/noticias/index.php?article=725197&tm=8&layout=122&visual=61

Anónimo disse...

Gostaria de deixar aqui o meu testemunho, fui atendida pelo osteopata de Odemira por altura do carnaval.
(3a (18) http://www.rtp.pt/noticias/index.php?article=724418&tm=8&layout=122&visual=61)
Foi uma experiência rápida e eficaz, melhor que em qualquer hospital do país. Obrigado Sr. Ferreirinha. Só diz mal quem não conhece.

UM TIPO DE CENSURA DE LIVROS AINDA SEM DESIGNAÇÃO

Não sabemos ao certo, mas podemos colocar a hipótese, muito plausível, de a censura da expressão humana, nas suas mais diversas concretizaçõ...