O médico e investigador Manuel Sobrinho Simões tem sido uma das vozes mais lúcidas sobre a actual política científica em Portugal. No último número do jornal "Ensino-Magazine" dá uma entrevista em que volta a pôr o dedo na ferida. Transcrevemos algumas respostas remetendo para o sítio do jornal para o resto:
P- Corremos o risco de recuar décadas com o desinvestimento em investigação científica em Portugal?
R- Sim, e quando isso suceder deixaremos de ser uma sociedade do mundo ocidental.
P- Paul Nurse, Prémio Nobel da Medicina em 2001, disse ao jornal "i" que «cortes nas bolsas dá ideia de que fazer ciência é como jogar no casino». Concorda?
R- Concordo, pois houve concursos em que a taxa de aprovações oscilou entre 5 e 9 por cento. Isto é entre 20 candidato foi escolhido um ou, quando muito, dois. Dado o nível muito bom da maioria das candidaturas, a seleção de um ou dois em 20, 21 ou 22 é pura sorte, do género "moeda ao ar". A coisa é ainda pior se nos lembrarmos da falta de transparência nos concursos. Não sei como Paul Nurse caracterizaria a situação se soubesse disto mas calculo que não faria uma apreciação simpática acerca da competência desta equipa da FCT.
P- Milhares de jovens qualificados abandonam terras lusas em busca de uma oportunidade noutras paragens. É uma geração promissora, e com formação ministrada e paga "made in Portugal", que vai contribuir para a riqueza e o progresso de
outros países. Sente-se frustrado quando se admite, de forma resignada, que este país não é para jovens?
R- Sinto-me mais assustado e triste do que frustrado. Esses jovens são bons, estão bem preparados e vão triunfar na sua grande maioria. Tenho muita pena que os benefícios desse triunfo não se reflitam diretamente em Portugal. Mas nós, que vivemos em democracia há 40 anos e já elegemos não sei quantos governos, deixámos que o sistema partidocrático se estabelecesse e se esclerosasse, isto é, somos todos nós os principiais culpados da situação.
P- O tridente investigação - universidade - emprego está seriamente ameaçado?
R- Está. Sobretudo se as empresas não decidirem incorporar mais valor nos seus processos e melhorar a qualidade dos seus recursos humanos, e se as universidades e os institutos de investigação, pelo seu lado, não conseguirem interagir mais entre si e com as empresas. Além da fragilidade do nosso tecido empresarial é impressionante a dificuldade que as universidades têm sentido para incorporar harmónica e sinergicamente, no seu seio, os institutos de investigação e os institutos de interface. Espero que os bons resultados que decorrerão, espero, da integração plena do "I3S" no tecido "Facultário" da Universidade do Porto se torne um exemplo concreto das vantagens deste processo para todas as instituições envolvidas, sejam faculdades, sejam institutos de investigação, sejam hospitais, sejam empresas do universo do Health Cluster. É claro que para tal será necessário que o atual modelo de consórcio dê lugar a uma única instituição de investigação, inovação e pós-graduação.
P- Disse que esteve governo estava a fazer uma «destruição criativa». De que modo?
R- Ao fragilizar as instituições de ensino superior e de investigação de uma forma cega, com cortes transversais muito acentuados, o governo está a destruir o "tecido". Isto é, o governo não fez qualquer avaliação institucional, nem se preocupou em proteger e consolidar o que funcionava e reformular e/ou extinguir o que não funcionava. O "criativo" vem da crença que é possível importar uma dúzia de génios e pô-los a florescer numa terra de ninguém.
P- Afirmou em entrevista que nos concedeu há cerca de seis anos que «a grande revolução em Portugal vai acontecer quando conseguirmos que as atividades letivas nas escolas, nos liceus e nas universidades tenham uma forte componente científica». Continuamos distantes desse momento?
R- Estamos infelizmente muito mais afastados, não só por razões financeiras - maior número de alunos por turma e menos dinheiro para disciplinas de laboratório - como também pela contínua destruição do entusiasmo e da autoridade dos professores. É trágico que em Portugal se dê mais importância ao "saber retórico" do que ao "saber fazer" (passe a vulgata) e que não tenhamos percebido que a Ciência (e as Ciências) é (são) o elemento mais determinante da cultura do século XXI.
(...)
P- Por
sermos um país com um défice de cientificidade, impera o senso
comum, a retórica e as opiniões avulsas das dezenas de treinadores
de bancada que enchem os ecrãs televisivos. Esta forma de estar,
para além de raízes culturais, tem na base lacunas educativas de
muitas décadas?
R- São todos os fatores que enumera (e mais alguns), em conjunto, que explicam o "estado-das-coisas". As lacunas educativas de muitas décadas condicionam a nossa cultura e a nossa prática. Sempre fomos um país pequeno, periférico, marítimo, pobre, com bom clima e mau solo. Orograficamente muito difícil, com "montes e vales". Neste caldo desenvolvemos uma sociedade de altíssimo contexto (somos todos primos, genros e cunhados uns dos outros, e associamo-nos em sociedades secretas ou semi-secretas de diferentes matizes que se estendem do religioso ao politico), habitada por uma gente desconfiada e minifundiária. A escravatura associada aos Descobrimentos e a Inquisição são duas nódoas particularmente negras na nossa história. É natural que a religião católica tenha contribuído para o tal "estado-das-coisas", não tendo conseguido impor a importância dos valores. As elites também não e os partidos políticos ainda menos. O altíssimo contexto e a promiscuidade tornam impossível distinguir o essencial do acessório e acabaram, se é que elas alguma vez existiram, com a avaliação idónea e a recompensa ao mérito. Acho que merecemos ter os "reality shows" que temos, assim como treinadores de bancada e comentadores às dúzias, para já não referir os mentirosos esporádicos ou compulsivos que a sociedade tolera e muitas vezes premeia. É pena porque há muitos jovens portugueses que são (muito) inteligentes e trabalhadores e poderiam ser diferentes se nós fossemos diferentes. Não somos.
Sem comentários:
Enviar um comentário