segunda-feira, 17 de março de 2014

DAS MONTANHAS ERGUIDAS A PARTIR DOS FUNDOS MARINHOS POR EFEITO DO “FOGO CENTRAL”, NA IDEIA DOS GEÓGRAFOS GREGOS DA ANTIGUIDADE, À APROXIMAÇÃO E COLISÃO DE PLACAS LITOSFÉRICAS, NA MODERNA CONCEPÇÃO TECTÓNICA GLOBAL

2.ª Parte (a 1.ª parte por ser encontrada aqui)

Andes
Pela sua grandiosidade e, em muitos casos, pela sua difícil acessibilidade, as montanhas, hoje perfeitamente explicadas pela tectónica de placas, suscitavam igualmente a curiosidade dos cultores do saber científico embrião da geologia.

Para René Descartes (1596-1650), o globo terrestre, arrefecido exteriormente, começara por ser liso em superfície. Segundo este filósofo e matemático francês, a formação das montanhas resultara do arrefecimento do planeta e consequente redução do seu volume, uma ideia conhecida por Teoria da Contracção. Tal redução implicaria que dois ou mais pontos da superfície se aproximassem entre si, criando as forças tangenciais de compressão necessárias ao enrugamento e, consequentemente, à formação das montanhas. Uma imagem susceptível de visualizar esta concepção é a de uma maçã, cuja pele engelha devido à redução de volume, em resultado da secagem do fruto. Esta teoria era ainda aceite sem contestação pela generalidade dos geólogos de finais do século XIX e começos do XX, entre os quais o americano James D. Dana e o austríaco Edward Suess, dois geólogos de grande prestígio no seu tempo.

Décadas mais tarde, o veneziano Anton Lazzaro Moro (1687-1764),vulcanista e pioneiro do plutonismo, defendia que as montanhas se teriam elevado acima do oceano primordial pela força do vulcanismo que considerava alimentado pelo fogo central. Referindo-as como primárias, concebeu-as formadas por grandes massas rochosas não estratificadas (alusão ao granito e rochas afins), nascidas a partir do fundo desse oceano. Segundo ele, depois de emergirem, estas montanhas teriam fornecido, por erosão, os sedimentos que se depositaram no fundo do dito oceano, acumulando depósitos sedimentares que, ao se elevarem, teriam gerado novas montanhas, que referiu como secundárias, formadas por camadas sobrepostas. Para Moro estes levantamentos teriam tido origem em vulcões alimentados pelo fogo central.

Na Rússia, Mikhaylo Vasilyevich Lomonosov (1711-1765), inovador em diversas áreas do conhecimento (astronomia, física, química, mineralogia e cristalografia e outras) avançou e deu relevo a ideias afins das de Abraham Ortels, numa caminhada que ia acrescentando força à concepção que viria fazer a glória de Wegener dois séculos mais tarde. Ao admitir que os icebergs do oceano meridional implicavam a existência de uma massa continental coberta de gelo na região polar do Sul, este notável académico previu a existência da Antárctida.

Numa síntese que elaborou, a partir das observações geológicas dos seus contemporâneos e dos que o antecederam, o grande naturalista francês, George-Louis Leclerc (1707-1788), mais conhecido por Buffon, apresentou a geologia como uma ciência de carácter histórico, dominada pelas relações entre as terras emersas e o mar, repetindo a ideia antiga desenvolvida na enciclopédia dos “Irmãos da Pureza”, em finais do século X, e, ao mesmo tempo, confirmando as conclusões de Leonardo da Vinci, divulgadas mais de dois séculos antes. Nesta convicção, propôs que se observasse e estudasse o fundo do mar actual para que se descobrisse o que se passou no passado geológico. Esta visão é uma notável antecipação do caminho, em grande parte apoiado na geologia marinha, que conduziu à moderníssima concepção da geologia à escala global, bem explanada na Teoria da Tectónica de Placas. Com efeito, foi nos fundos oceânicos que se encontraram os argumentos que deram corpo a esta novíssima concepção da dinâmica global do planeta. Buffon, que admitia a origem ígnea do granito, o que o coloca entre os primeiros plutonistas, retomava a ideia de Descartes, defendendo que o lento arrefecimento do globo estaria na origem dos enrugamentos testemunhados pelas montanhas.

Entretanto, do outro lado do Atlântico, o alemão Friedrich Heinrich Alexander von Humboldt (1769-1859), interessava-se pelos vulcões da margem ocidental das Américas, tendo sido sensível ao seu alinhamento nesta directriz dos dois continentes. Estudioso de grande eclectismo e um dos intelectuais mais famosos e influentes da sua geração, procurou explicar esse facto pela existência de uma vasta fissura da crosta ao longo dessa margem, explicação pioneira que antecipa concepções desenvolvidas, mais tarde, por Kiyoo Wadati (1902-1995) e Hugo Benioff. (1899-1968), conducentes à descoberta das zonas de subducção.

Num outro tipo de preocupações, o geólogo e geógrafo francês Antoine Snider-Pellegrini (1802-1885) especulou acerca da possibilidade da deriva dos continentes; porém, a sua crença nas ideias antigas levaram-no a atribuir essa deriva ao Dilúvio bíblico. No seu livro “La Création et ses mystères dévoilés” (1858), ao abordar alguns dos acontecimentos geológicos que, segundo ele, tinham ocorrido entre a Criação e o Dilúvio, defendeu a fragmentação de uma grande massa continental e o afastamento dos continentes de um e outro lado do Atlântico, inspirado na correspondência do traçado das respectivas costas, sugerida, três séculos antes, por Abraham Ortels, e na ocorrência de fósseis idênticos nesses continentes.

Pellegrini dizia que todas as terras tinham estado unidas num único continente (a que Wegener viria a chamar Pangea), ao longo do qual se instalou uma enormíssima fenda que o rompeu de Norte a Sul e que separou o Novo e o Velho Mundos. Dizia, ainda, que a subsequente invasão do mar deu origem ao Oceano Atlântico. Para melhor exposição desta ideia, desenhou dois mapas representando a sua versão da forma como os referidos continentes poderiam ter estado juntos no passado.

A abertura do Oceano Atlântico segundo Pellegrini, em 1858
A ideia da deriva tinha, contudo, um travão poderoso, contido no pensamento do matemático e físico francês, Siméon Denis Poisson (1781-1840) que, sem negar uma possível fase inicial do planeta em estado de fusão, defendia que a Terra se comportava como um corpo já arrefecido e, portanto, rígido, na sua totalidade. Lembrado como um destacado solidista, Poisson opunha-se às ideias fluidistas, numa visão coincidente com a do matemático e filósofo alemão Gottfried Wilhelm von Leibniz (1646-1716), na centúria anterior, visão na qual se destacou, mais tarde, Lord Kelvin (1824-1907), o conhecido físico inglês, também lembrado como um acérrimo solidista.

Praticamente na mesma época, James Hall (1818-1898), geólogo com grande influência na história da geologia americana, estudou em pormenor a sequência estratigráfica do sector norte dos Montes Apalaches o que lhe permitiu, nos anos de 1850, reconstituir a paleogeografia daquela região ao longo de muitas dezenas de milhões de anos, durante grande parte dos tempos paleozóicos. Admitiu que, durante aquele intervalo de tempo, as camadas sedimentares se tinham depositado numa vasta depressão, concluindo que, à medida que esta se ia afundando lentamente, os sedimentos se iam acumulando, atingindo espessuras de milhares de metros. Concluiu ainda que, mais tarde, sujeita a compressões laterais, que não soube explicar, esta acumulação de sedimentos sofreu violentas deformações, de que resultam os enrugamentos que elevaram os ditos Montes Apalaches.

Um seu concidadão e contemporâneo, James Dwight Dana (1813-1895), professor da Universidade de Yale, geólogo e mineralogista, autor do monumental System of Mineralogy, publicado em 1837, confirmou a interpretação de Hall sobre a história geológica dos montes Apalaches e, com base nos estudos que continuou a dedicar-lhe, criou, em 1873, o conceito de geossinclinal. Na construção do novo termo, o prefixo geo- procura salientar a dimensão planetária desta estrutura subsidente. Para ele, o período de sedimentação numa depressão como esta, concebido como muito longo, termina sempre por uma orogenia, de duração muito mais curta, que traz, à superfície, um longo cinturão de dobras e cavalgamentos, ou seja, uma cordilheira de montanhas.

Um passo importante no caminho da geologia moderna foi dado por Eduard Suess (1831-1914), geólogo austríaco, autor da primeira descrição da geologia geral do globo terrestre. Uma das suas contribuições, considerada de capital importância, no sentido da mobilidade dos blocos continentais, foi o estudo de Glossopteris, um fóssil de uma planta arbórea que viveu no início do Pérmico, há cerca de 300 milhões de anos, em territórios hoje fazendo parte da América do Sul, da África, da Índia, da Austrália e da Antárctida.

Glossopteris browniana (Austrália)
Segundo este professor de Geologia da Universidade de Viena, estes territórios estiveram unidos num único supercontinente, a que deu o nome de Gondwana, em referência à região do mesmo nome, na Índia, onde este fóssil foi encontrado pela primeira vez.

Uma síntese das suas reflexões encontra-se na obra que publicou entre 1885 e 1901, Das Antlitz der Erde (A Face da Terra), de grande divulgação, durante muitos anos. Nesta obra, Suess acreditava que, no decurso do tempo geológico, tinha havido subidas e descidas do nível do mar, ou seja, que tinha havido transgressões e regressões. Era de opinião que a acumulação de sedimentos nas bacias oceânicas podia ser a causa das transgressões e que subsidências dos fundos dessas bacias, poderia explicar as regressões. Nascia assim o eustatismo. Suess criou o conceito de biosfera e admitiu que a litosfera tinha uma capa mais externa, rica em silício e alumínio, a que chamou ”sial”, e uma outra, subjacente, rica em silício e magnésio, a que chamou “sima”. Numa contribuição notável para o mobilismo, difícil de aceitar no seu tempo, Suess reflectiu sobre a relação entre a África e a Europa e admitiu, e bem, como hipótese, que as camadas de rochas que constituem os Alpes se tinham formado, em tempo passado, no fundo de um oceano, a que deu o nome de Thetis, e que o Mar Mediterrâneo é o que resta desse oceano a caminho do seu fecho.

Oceano Tethis no Jurássico
Em Inglaterra, o eclesiástico Osmond Fisher (1817-1914) ficou na história da ciência como o geólogo e o geofísico mobilista que previu os movimentos tangenciais da crosta terrestre três décadas antes das translações continentais, de Alfred Wegener (1880-1930), e oito décadas antes da expansão dos fundos oceânicos, de Harry Hess (1906-1969). No seu livro The Physics of the Earth’s Crust, editado em 1881, considerado o primeiro tratado de geofísica, o eclesiástico inglês Osmond Fisher (1817-1914) antevê a dinâmica da capa rígida do planeta, induzida por correntes de convecção no interior da Terra, que ele afirmava estar em fusão. Admitia que essas correntes eram ascendentes sob os oceanos, em especial sob as dorsais, e descendentes sob os continentes, numa notável antecipação aos riftes meso-oceânicos, às zonas de subducção e à tectónica de placas. Segundo ele, alguns continentes ter-se-iam contraído, formando montanhas nas suas margens. Não obstante os argumentos científicos do seu autor, em grande parte válidos, esta visão de Fisher foi ostensivamente rejeitada e, até, ridicularizada por solidistas e fixistas. Os primeiros, como defensores do estado já suficientemente arrefecido e solidificado do interior da Terra; os segundos, como acérrimos seguidores de uma doutrina filosófica de base aristotélica, ainda sobrevivente no século XVIII, que sustentava que os continentes se teriam mantido, desde sempre, estáveis e fixos nas posições que hoje ocupam.

Do outro lado do Atlântico, o geólogo norte-americano, Frank Bursley Taylor (1860-1938), com base nos seus estudos sobre as grandes cadeias montanhosas actuais, admitiu e propôs que as colisões de continentes poderiam elevar montanhas. Para ele, estas grandiosas cadeias seriam o resultado de pressões laterais suficientemente poderosas que enrugaram a superfície da terra. Em 1910, propôs a existência da deriva continental por efeito de atracção da Lua. Admitia, então, erroneamente, que o nosso satélite tinha sido capturado pela Terra durante o Cretácico para uma órbita tão próxima que arrastou os continentes na direcção do equador, originando enrugamentos na crosta que deram origem aos Alpes e aos Himalaias. Com esta atracção procurava encontrar a força motriz necessária à deriva continental. Tal como acontecera com sugestões afins lançadas anteriormente por Abraham Ortels, no século XVI, por Mikhaylo Lomonosov, no século XVIII, e por Snider-Pellegrini, no século XIXesta sua ideia não despertou a devida atenção por parte da comunidade dos seus pares. Não obstante o surgimento de algumas ideias mobilistas, a corrente fixista era ainda dominante no pensamento geológico.

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A. Galopim de Carvalho

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