sábado, 15 de março de 2014

DAS MONTANHAS ERGUIDAS A PARTIR DOS FUNDOS MARINHOS POR EFEITO DO “FOGO CENTRAL”, NA IDEIA DOS GEÓGRAFOS GREGOS DA ANTIGUIDADE, À APROXIMAÇÃO E COLISÃO DE PLACAS LITOSFÉRICAS, NA MODERNA CONCEPÇÃO TECTÓNICA GLOBAL

1.ª Parte
Montanhas Rochosas
Quando se fala da moderníssima concepção da dinâmica interna do nosso planeta, surgida há cerca de meio século, vulgarmente conhecida por Tectónica de Placas, é frequente recordar o trabalho pioneiro de Alfred Wegener que, em 1915, no livro A Origem dos Continentes e Oceanos, desenvolveu a sua teoria sobre a deriva dos continentes. Pouco se fala, porém, da longa caminhada que antecedeu a bela síntese deste geógrafo e meteorologista alemão, caminhada que, em traços muito gerais, se recordam nas linhas que se seguem.

Na Grécia antiga, Eratóstenes (285-194 a.C.), o astrónomo, geógrafo, matemático e poeta, bibliotecário da grande Biblioteca de Alexandria, o mesmo que calculou o raio da Terra, constatou que havia conchas de moluscos marinhos no interior das terras, inclusive nas montanhas, a centenas de quilómetros do litoral, o que o levou a aceitar que, no passado, essas terras haviam sido fundo marinho, uma dedução que antecipou a de Leonardo da Vinci (1452-1519).

Dois séculos depois, na mesma linha de pensamento, o seu conterrâneo, Estrabão (64 a.C.-24 d.C.), geógrafo, historiador e filósofo grego, autor de um dos primeiros mapas do mundo, chamou a atenção para a existência de “pedras com a forma de conchas de moluscos marinhos” em regiões afastadas do litoral e concluiu pela presença do mar nessas terras em tempos passados.

O mundo, segundo Estrabão (64 a.C.-24 d.C.).
Na sua Geographia, um tratado monumental, em 17 volumes, admitia que, através de movimentos verticais ascendentes e descendentes, quer dos continentes, quer do substrato oceânico (motivados por sismos e por grandes deslocamentos de terras), os mares se convertiam em terras e vice-versa. Estrabão procurou relacionar a elevação das montanhas, comprovada a partir da presença das referidas conchas, com a existência de um fogo central que também alimentava os vulcões. Estas ideias contrariavam crenças antigas, de inspiração aristotélica que, entre outras, defendiam e o carácter sagrado das montanhas e uma geografia praticamente eterna, com imutabilidade das linhas de costa, pelo que falar desta mobilidade era explanar concepções dificilmente aceites.

Na mesma época, Ovídio (43 a.C. - 17 d.C.), o poeta romano contemporâneo de Estrabão, deixou-nos em verso alguns conceitos, que pôs na boca de Pitágoras (579-497 a.C.), alusivos à tendência universal para a mudança, não só das coisas vivas, mas também das mortas. E nas coisas mortas estavam, entre muitas outras, as terras e os mares, as montanhas, os rios e as rochas. Dizia ele: tudo flui, tudo muda, nada morre. Embora ele tenha posto estas afirmações na boca do filósofo e matemático grego, não se sabe de onde Ovídio as tenha retirado. Em alguns dos seus versos volta a referir a existência de conchas marinhas no interior das terras, que há terras que emergem e que há outras que se afundam, dando lugar a mares, mas não explica como. Numa enciclopédia do século X, escrita colectivamente por uma fraternidade de filósofos ismaelitas que se admite terem vivido em Bassorá, no Iraque, conhecida pelos “Irmãos da Pureza”, lê-se “as terras actuais foram antigos fundos marinhos e os mares do presente serão futuros continentes”.
Manuscrito atribuído aos Irmãos da Pureza
É evidente que os autores desta afirmação retomaram ideias de Eratóstenes e Estrabão, anteciparam e influenciaram as de Alberto Magno (1206-1280), Jean Buridan (1300-1360), e Leonardo da Vinci (1452-1519) e aproximaram-se, por via da reflexão, de parte de uma ideia subjacente à visão tectónica global do século XX. Mestre da escolástica e grande divulgador à escala da Europa do século XIII, Alberto Magno reconhecia a alternância das terras e dos mares, tendo exercido grande influência entre os filósofos e os naturalistas da Idade Média.

Na transição para o Renascimento, Jean Buridan, filósofo francês e reitor da Universidade de Paris, recuperando a sabedoria deixada pelos “Irmãos da Pureza”, escreveu Onde hoje se encontra o mar foi outrora terra e, inversamente, onde a terra firme está no presente, esteve o mar e aí voltará. Leonardo da Vinci, que soube descrever, em pormenor, a fossilização e compreendeu o interesse dos fósseis, defendeu que este tipo de objectos petrificados encontrados nas montanhas eram restos de seres vivos anteriormente depositados no fundo do mar, fundo esse que admitiu soerguer-se posteriormente. Neste capítulo, manteve acesa polémica com os defensores de ideias conservadoras, contrárias às suas e que não aceitavam a origem biológica dos fósseis, preferindo encará-los como entidades criadas por acções dos astros.

No século XVI, o geógrafo e cartógrafo, o flamengo Abraham Ortels (1527-1598), viajou pela Europa, ao serviço de Filipe II de Espanha (Filipe I de Portugal), e iniciou a carreira como desenhador de mapas, por influência de Gerardus Mercator (1512-1594), tendo-se dedicado, por sugestão deste seu conterrâneo, à compilação do famoso atlas (o primeiro tido por moderno) pelo qual ficou famoso, conhecido pelo nome latino Theatrum Orbis Terrarum.
Theatrum Orbis Terrarum, desenhado por Abraham Ortels, em 1570
Por esta obra monumental Ortels recebeu, em 1596, uma condecoração da cidade de Antuérpia. A única cópia remanescente deste seu trabalho está na biblioteca da Universidade da Basileia. Sensível à configuração do traçado das linhas de costa de África e da América do Sul, aparentando contornos justaponíveis, sugeriu que os dois continentes da outra margem do Atlântico se tinham desligado e afastado da África e da Europa em consequência de eventos, à escala global, que imaginou catastróficos, mas cuja força motriz não soube explicar. Admitiu, assim, pela primeira vez, um esboço de deriva destes continentes, antecipando-se, notavelmente, à hipótese da deriva dos continentes do alemão Alfred Wegener, surgida mais de três séculos depois, em 1915.

(Continua aqui)
A. Galopim de Carvalho

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