domingo, 9 de março de 2014

"A acessibilidade não se consegue pela via do populismo"

O texto que se segue tem tudo a ver com um outro que escrevi há quase dois anos (aqui).

Obras clássicas de música, dança, pintura e cinema têm sido usados para publicitar uma multiplicidade de produtos e serviços. A poesia nem tanto, mas talvez ela seja o futuro das marcas que pretendam passar uma imagem de beleza e subtileza, de arrojamento e sofisticação.

No anúncio que se pode ver aqui, encena-se o poema O fim, de Mário Sá-Carneiro. Nada há no minuto em que a leitura decorre e em que as imagens do cortejo fúnebre avançam que faça supor tratar-se de publicidade a uma empresa. Ela só aparece no fim, discretamente numa frase.

Percebe-se que o realizador sabe do seu ofício: deixa as pessoas desfrutarem o texto e a estética, como se essa fosse a única intenção. E, com toda a naturalidade, dela faz decorrer o objectivo final: levá-las a preferirem aquela marca que, por via do poema, se dá a entender que é diferente de todas as outras.

E foi, de facto, esse o impacto que percebi naquelas com quem falei a propósito: enfim, os meios não serão muito legítimos, mas fazem reviver a poesia, fazem-na sair dos livros...

Não encontrando melhores palavras do que as do maestro Daniel Barenboim, uso-as, adaptando-as ao caso (para fazer sentido: entre parênteses rectos o que se suprime, a azul o que se acrescenta):
"Este tipo de familiaridade é tudo menos benéfico para o estado da [música clássica] poesia nos nossos dias. Usar fragmentos de grandes [obras musicais] e instalá-los na cultura popular (ou na falta dela) não é solução para a crise da [música clássica] poesia. A acessibilidade não se consegue pela via do populismo; a acessibilidade consegue-se com um acréscimo do interesse, da curiosidade e do conhecimento (…). No caso da [música clássica] poesia, a educação é a rampa, ou o elevador, que a torna acessível. A concentração na [música] poesia é uma actividade que tem de começar muito cedo na vida para se desenvolver de forma orgânica."
Enquanto no campo da educação formal não se assumir a responsabilidade de levar o conhecimento fundamental a quem o não tem, a estratégia publicitária acima descrita e o tipo de argumentos que a justificam pode usado com todo o desplante por quem tem outros interesses que não o próprio conhecimento.
Maria Helena Damião

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A notícia é da Agência Lusa. Encontrei-a no jornal Expresso (ver aqui ). É, felizmente, quase igual a outras que temos registado no De Rerum...