sábado, 29 de março de 2014

Da publicidade que utiliza a arte à publicidade que produz arte

Texto na continuidade de outro: aqui.

Certo artista foi contactado para fazer um grande mural. O parque de uma cidade portuguesa era o destino. Aceitou.

A sua inspiração foi a fotografia de um rapazito que, descalço, andava, há quase oitenta anos, pelas ruas dessa cidade apregoando a venda de pássaros.

A recente inauguração desse mural teve pompa e muita comoção: o rapazito agora, nos noventa, foi descoberto e compareceu; a presidente da Câmara esteve presente e contribuiu com a devida solenidade; as pessoas do costume deram um toque público ao acto; e... o director-geral da empresa - sim, empresa - que encomendou a obra, "no âmbito de uma estratégia promocional do novo Centro Comercial" qualquer-coisa, teve destaque.

Parece que declarou: "Quisemos desenvolver uma série de atividades na região que envolvessem a população e que, de alguma forma, transmitissem a nossa forma de estar nos sítios onde temos unidades comerciais, em que procuramos ter uma atividade ativa a nível social e de sustentabilidade, desenvolvendo muitos projetos com a comunidade"

O "negrito"é meu - a arte para transmitir a "forma de estar" da empresa "onde tem unidades comerciais" - para salientar que o parque de uma cidade é um espaço público, de todos, portanto, que não deveria ser apropriado por uma entidade privada que tem "uma forma de estar", a qual, nessa medida, impõe aos demais e com (legítimos) fins últimos que não são os estéticos. Apresentam-se como tal, mas são económicos.

O problema (e aqui há um problema) não é da empresa, é das entidades camarárias que, sendo, repito, públicas deviam agir em conformidade. Porém, em tempos em que tudo se mistura e confunde, a senhora presidente "salientou o empenho da [tal empresa] na promoção de atividades culturais, a par da atividade comercial que desenvolve no concelho e que, ainda este ano, será reforçada com a inauguração do centro comercial".

A arte serve para tudo, menos para servir como fim a si própria. Isso já se sabe.

E, em sociedades pretensamente intelectuais, ela é, tenho de admitir, muito apetecível como objecto publicitário, tanto para convencer, como para comover e ainda para agradecer a quem no-la proporciona a custo zero: usa-se a que já existe ou, se for preciso, produz-se, e à medida.

A notícia em que me baseei pode encontrar-se aqui.

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