A primeira, que consiste em assumir o erro, levar com as culpas e com
todas as consequências associadas. A segunda é insistir que todos os
outros estão errados, impor toda a autoridade que tenho e que não tenho
para ampliar a asneira. A vantagem da segunda, é que nesta sou criador
de um standard, na primeira sou o asno.
Este raciocínio perfeitamente brilhante é da autoria de um cliente meu e
ouvi-o no princípio da minha vida profissional. O senhor, a quem perdi o
rasto e se calhar está a ler estas palavras, pretendia explicar a razão
pela qual se vê tanta e tanta asneira repetida e ampliada. Coisas que
funcionaram francamente mal num âmbito reduzido e que, posteriormente,
são estendidas a âmbitos mais alargados como se tivessem funcionado
maravilhosamente. Ou, mais comum ainda, coisas que não funcionaram num
dado período e que acabam reforçadas em períodos seguintes.
A grande asneira tem ainda a característica intrínseca de ser, muito
provavelmente, da autoria de grandes pessoas / instituições. Para que se
transforme num standard, a grande asneira precisa de autoridade e
poder. Não raras vezes vem acompanhada de apoiantes de grande relevância
social e do apoio de comentadores de jornal que ajudam à consolidação
da coisa nas mentes menos preparadas. Aos poucos, a asneira no seu
caminho para standard, vai conquistando o pensamento dos que não
questionam a autoridade até, finalmente, se impor para todos. Ou porque
"toda a gente sabe que é assim" ou porque "está escrito na lei". Entre
as grandes asneiras da história que estamos a assistir, em directo e a
cores, existe uma que tem caracter de lei e se suporta num considerável apoio
mediático e popular. Chama-se regulação bancária.
Sabemos todos que esses demónios do capitalismo e da economia de casino a
que chamamos de bancos andaram de trela solta a levar o mundo à ruína. É
deles a culpa da situação de urgência porque passa boa parte do mundo
actual. Nesse sentido, exige-se que se exerça sobre eles um controlo
apertado e que se impeça que voltem a trazer as nossas vidas a esta
aflição.
Este chorrilho de asneiras que acabei de escrever é tido como válido por
muita e boa gente a quem pagamos educação da boa e da cara. E, estou
certo, vou receber uma carrada de comentários a dizer que aquilo que
escrevi no último parágrafo é a mais pura das verdades, apesar de ser
uma estupidez completa. Mas o preocupante é que não é só na caixa de
comentários que vai aparecer essa ideia, ela é a práctica comum nos dias
de hoje no sítio onde mais nos afecta: na regulação bancária de facto.
Alguém, um dia, com poder suficiente para ampliar uma enorme asneira,
fez uma enorme asneira. E, em vez de se assumir a asneira, resolveu-se
ampliá-la. E, como até dá dinheiro a uma carrada de gente que teria
alguma dificuldade em ser paga no mercado livre, tem que se ampliar ao
nível de lei e estabelece-la como "toda a gente sabe que é assim".
O nome da asneira é "imparidades de crédito". O que é que isto
significa? Imaginemos que eu empresto 100 euros ao Zé. Por motivos de
registo contabilístico, vou registar 100 euros nas minhas contas de
crédito (a débito :) ). E, assim que o Zé me for pagando, vou diminuindo
o valor registado até o Zé me pagar tudo. Agora imaginem que sei que o
Zé não me vai pagar. Então, sei que não vou receber os 100 que
emprestei e tenho registados. Tenho uma "imparidade", entre aquilo que
sei e aquilo que tenho registado. Manda a regulação que assuma como
custo essa diferença entre aquilo que tenho registado e aquilo que
espero receber. Tem lógica? Aparentemente, sim, o problema está na
forma como eu vou calcular aquilo que espero receber. E se tomar apenas o Zé, torna-se um pouco complicado de calcular.
Agora, vamos imaginar que sou um banco, além do Zé, tenho o Manuel, o
Joaquim, a Maria... Tenho aquilo a que se chama uma carteira de crédito.
Vou à minha carteira e sei, pelas realizações, que a probabilidade de
um destes devedores incumprir é x. Como? Não tenho outra hipótese senão
ver quantos incumpriram no histórico da minha carteira. Pego nesse valor
e deduzo o valor esperado de perdas na carteira e considero essa diferença um
custo. Certo? Até agora parece bem, mas agora imaginemos que estou numa
crise, como a que passamos. Neste caso, naturalmente, as imparidades
sobem porque há mais gente a incumprir. Como sobem os custos, vou ter
que subir o preço que peço pelo crédito (o spread) de forma a compensar.
Como resultado vou dar menos crédito. Os créditos cumpridores vão
terminando e não são substituídos por novos. A probabilidade tal como a
estou a medir, que era x, vai passar a ser x+dx, subindo os custos. Como
os custos vão subir, vou subir o spread reduzindo ainda mais o número
de créditos que dou. Resultado, sobe a probabilidade medida de
incumprimento e por aí em diante até ao colapso completo da carteira e,
consequentemente, do banco.
Mas, caramba, isto é assim tão complicado que os reguladores não
percebam o que está a acontecer? Claro que não, mas isso implicava
assumir um erro. E lembrem-se, entre uma crise para vocês e uma asneira
para mim, fiquem vocês com a crise...
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16 comentários:
A pérola do primeiro parágrafo aplica-se a Rogoff et al. e todos os seus sicários em Portugal. Descobre-se o erro na folha de Excel. Esse erro coloca em causa a conclusão. mas destruida a base argumentativa mantém-se a conclusão pela autoridade de que se está investido pelos sacrossantos mercados e políticos míopes. Os outros somos todos nós que temos de aguentar, até ver, o fundamentalismo dos economistas.
José, a autoridade do mercado chama-se realidade. Tem o mérito de ter sempre a última palavra em todas as asneiras...
A última palavra, em democracia, não é dos mercados mas do povo através de eleições. Se as "autoridades" não permitirem que este sistema funcione, tal como na natureza, a sociedade encontrará uma solução. Costuma-se chamar revolução.
Os mercados são as pessoas. Decisão directa.
Com a realidade podemos, com a ditadura dos números sobre a realidade é que não.
Nos tempos que correm, apesar (ou por causa) dos meios informáticos, é inconcebível a dificuldade (maldição?) da verificação da correspondência dos números com a realidade.
Quem se dá a essa missão chatérrima, para não dizer, em alguns casos, impossível?
Os erros são imensos, pelos mais diversos motivos, mas até que ponto suportaremos o sistema incontrolável (incontrolável?) de enganos, viciação, fraudes...
Toda a credibilidade ruiu. Alguma fiabilidade é ficção política. Continuamos a acreditar que o mercado é como um relvado (não um campo pelado, nem uma secretaria) em que tudo se decide, como deve ser, incluindo a emoção dos "erros?" da arbitragem. Desde que haja pagantes dessa encenação.
Os bancos são amplificadores da economia e têm este efeito perverso de ajudar a expandir as bolhas e reforçar a contracção em períodos recessivos. Quanto à regulação bancária, funciona muito mal de facto (as imparidades que se deixaram acumular nos bancos é a prova disso), mas qual é a tua alternativa João?
Os mercados são (constituídos por) algumas e muito poucas pessoas. A Oligarquia também. A Democracia não.
Dizer que os bancos não são os culpados, os reguladores sim, é o mesmo que dizer que os ladrões não fizeram nada de mal - a culpa é da polícia que não estava lá para impedir o assalto. Uma outra forma de esconder a asneira é esta que utiliza o JPdC - afirmá-la com convicção inflexível, como se fosse coisa certa a coisa que é errada.
A solucao e' encarar-se o negocio dos bancos como outro qualquer negocio. Mostra-se que todos os sectores de actividade existem niveis minimos de capital sem que isso seja regulamentado e mostra-se que a imposicao de niveis minimos de capital e' irrelevante. O tratamento de imparidades nos bancos nao deveira ser diferente. Finalmente, a funcao da regulacao deveria ser a proteccao dos consumidores evitando posicoes dominantes e nao a proteccao dos reguladores promovendo-as.
Esse argumento da polícia já era mau no original, piora quando é repetido. Com ele justificam-se Estados policiais e todo o tipo de fascismos.
De resto, eu expliquei porque é que é estúpido, admito que não tenha sido claro nalgum ponto para quem tem mais dificuldade com aritmética, mas de forma alguma serei inflexível.
Carlos, a melhor forma de pelar o relvado é introduzir regras em que só os grandes podem jogar.
João,
Isso era acabar com o jogo todo. Ninguém joga sozinho e os grandes são-no no sistema de regras existente e não noutro qualquer.
Não sei o João Pires da Cruz é um desses empreendedores de 16 anos da linha de cascais ou se é simplesmente infantil, que essa conversa da aritmética entre adultos é simplesmente patética. Seja como for certamente que já lhe pagamos bem caro a sua educação para que saiba o que é uma analogia. Analogia que, de resto, nem sequer tentou contestar - apenas atirou adjectivos na esperança - talvez - que ninguém notasse a falta de treplica. Pois, meu petiz, tente lá outra vez.
Imagine que, em nome da proteção do consumidor, construia regras para a bica. Teriam que ser empresas idóneas, que reportassem de 3 em 3 meses a sua atividade, teriam que garantir 6 meses de stock de café, teriam que ter a certeza de que não serviam a doentes cardíacos e o ónus do diagnostico era da empresa, etc. Obviamente, só conseguiria beber uma bica num tubarão do tipo Pingo Doce ou Delta. Nunca mais beberia uma bica no café lá do bairro.
O sistema ficou mais protegido? Não, porque o risco de anomalia num dos tubarões poder ser inferior que num café não favorece em nada o sistema, porque a anomalia vai afetar muito mais gente e a perda vai ser muito maior que se a anomalia ocorresse no café do bairro.
A maior proteção do sistema, a relva do campo, vem de ter muitos agentes. E isso vem de haver regras sim, mas estas não devem limitar o ponto de entrada de novos agentes.
Não questiono que as regras devem permitir ou mesmo favorecer a sã concorrência e impedir posições dominantes. O que me parece é que, por exemplo, o problema de conferir as "contas" de um pingo doce não é tão grande, nem tem as implicações que o de "conferir as contas" de um sistema bancário e, no entanto, continuamos a acreditar que é apenas uma questão de regras.
Este argumento lembra-me do Hayek sobre a relutância em tratar o dinheiro de forma diferente de outro bens. E porque é que isso não é aplicado?
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