quinta-feira, 8 de março de 2012

"POEIRA DA ALMA": O FIM

Final do livro "Poeira da Alma", do psicólogo Nicholas Humphrey (na foto), que acaba de sair na Gradiva, n.º 193 da colecção Ciência Aberta:

"Estou quase a terminar. Mas estes últimos capítulos foram todos sobre a consciência humana e, como é evidente, uma teoria evolutiva não pode ocupar-se de uma única espécie. Assim, continuamos a ter de responder a perguntas sobre o modo como a consciência humana se relaciona com a de outros seres, passados e presentes.

Não apresento desculpas pelo facto de o tema dos últimos seis capítulos ter tido em grande medida a ver com os humanos. Não se trata apenas de chauvinismo de espécie da minha parte. Qualquer observador objectivo — como a nossa visitante de Andrómeda —, ao olhar para a história natural mais vasta da consciência no reino animal, não pode deixar de observar que a consciência humana é inigualável. Em vários aspectos óbvios, a consciência é mais importante para os humanos do que para qualquer outro animal. Desempenha um papel maior e mais complexo a moldar as suas vidas e relações. Na realidade, actualmente os humanos são a maior publicidade que se possa imaginar para a consciência.

Assim sendo, penso que é seguro pormos a hipótese de a consciência ter estado submetida a uma maior pressão da selecção natural nos humanos do que nos não-humanos. Por conseguinte, podemos imaginar que os humanos evoluíram e se tornaram mais conscientes do que qualquer outra espécie — essa consciência é mais saliente, está mais próxima da zona frontal das suas mentes. No entanto, devemos também supor que a consciência esteve submetida a qualquer tipo especial de pressão da selecção nos humanos? E, se assim foi, devemos supor que os humanos evoluíram não apenas para serem mais conscientes, mas para serem conscientes de uma maneira diferente — de modo que «como é» para um humano experienciar sensações é qualitativamente diferente de como é para outras espécies?

No final do capítulo 6, referi pela primeira vez a possibilidade de haver diferenças evolutivas de qualidade fenoménica em relação com a nossa tese de os seres humanos serem os únicos animais a recearem a sua própria morte. Escrevi que era uma questão fascinante saber se isso significaria que a consciência humana tinha sido impelida numa nova direcção capaz de remodelar o ipsundrum. Depois, nos capítulos subsequentes, explorámos outras áreas em que a tendência humana para reflectir no significado da consciência pudesse de novo ter exposto o ipsundrum a novas forças evolutivas. Assim, temos novas razões para pôr essa questão fascinante. E é chegada a altura de lhe dar a resposta, da melhor maneira que soubermos.

Parece haver dois cenários possíveis.

Por um lado, poder-se-ia dar o caso de a consciência fenoménica, tendo evoluído sob a influência de outros factores, tal como o simples amor à vida e o valor de ter um eu nuclear substancial, ter atingido um ponto alto muito antes de os seres humanos e a reflexão intelectual terem entrado em cena. Nesse caso, a qualidade da consciência já seria uma espécie de acessório — e hoje continuaria a ter aproximadamente o mesmo papel onde quer que exista consciência na Terra. Embora a consciência contribuísse para a sobrevivência humana de maneiras que nunca se verificaram com outros animais — e embora isto pudesse ter produzido modificações na maneira como os humanos têm acesso à consciência, como, por exemplo, quando sonham — não se teriam registado modificações na qualidade básica.

Por outro lado, pode ter-se dado o caso de os novos usos que os humanos faziam da consciência terem criado oportunidades para fazer o trabalho ainda melhor «aperfeiçoando » a qualidade da experiência fenoménica enquanto tal: especificamente, de modo a desencadear o medo do nada, a aumentar o sentimento de temor, a acentuar a solidão e a individualidade, a encorajar os pensamentos sobre a imortalidade, e assim sucessivamente. Nesse caso, o ipsundrum talvez tivesse sido remodelado repetidamente nas últimas fases da evolução humana, de modo a agora haver várias dimensões peculiarmente humanas para o «como é».

Que sabe até onde isto poderia ter chegado? Penso que devíamos pelo menos ter admitido a possibilidade de os humanos terem evoluído de modo a terem formas de experiência fenoménica radicalmente diferentes (e — quem sabe? — radicalmente mais maravilhosas) do que qualquer outro ser. Confesso que considero esta possibilidade tão preocupante quanto intrigante. Um dos consolos que os humanos encontram no facto de viverem no nicho da alma tem sido que, uma vez que o leitor reconhece que há outras pessoas igualmente conscientes e que partilham o mesmo mundo fenoménico, é-lhe fácil e é natural supor que o mesmo é válido para muitos animais não-humanos. Mas se isto não for assim, a cortina da separação existencial começa de novo a fechar-se à sua volta. O seu cão não gosta que lhe faça cócegas como imagina que ele gosta? A cotovia não se apercebe do seu canto glorioso? Preocupante ou não, não me parece que existam nenhumas boas razões para desvalorizar isto. Já referi que talvez haja mesmo motivos anatómicos para supor que as sensações nos seres humanos possuem características que não existem nos outros animais.

No entanto — chamem-me cobarde, se quiserem — sinto-me tentado a pensar que a verdade se encontra no meio. Ou seja, enquanto a experiência consciente é quase certamente mais rica, mais marcante ou mais pungente para os humanos do que para os nossos primos animais — mais verdadeiramente marteladora da alma, para retomar essa frase útil — ela continua a recorrer aos mesmos truques básicos. Assim, é possível reconhecer que as qualidades da consciência fenoménica, que surgiram muito cedo, continuam a ser as mesmas em toda a espécie consciente existente (ou a cientista de Andrómeda reconhecê-las-ia como sendo as mesmas, caso ela pudesse — como nós, cientistas terráqueos, ainda não podemos — fazer a comparação). Embora as diferenças entre humanos e não-humanos existam, não são tão grandes que tornem completamente inacessíveis as tentativas humanas de imaginar como é ser um animal.

Permitam-me que explique melhor o meu ponto de vista regressando à minha metáfora favorita, embora tenha de vos pedir de novo que não a tomem demasiado à letra. O triângulo impossível, a que chamei o triângulo de Penrose no capítulo 1, foi descoberto pelo artista sueco Oscar Reutersvärd em 1934, quando, aos dezoito anos, fazia garatujas na margem de um manual durante uma aula de latim. Começou por desenhar uma estrela perfeita de seis pontas, depois começou a acrescentar-lhe cubos, colocando-os à volta da estrela, encaixados nos espaços entre as pontas. Enquanto prosseguia com o desenho, apercebeu-se de que, por casualidade, tinha criado um novo tipo de objecto extraordinário.


Oscar Reutersvärd, Opus I

Esse seria o primeiro de muitos objectos impossíveis que Reutersvärd iria criar. Mas a evolução e a elaboração desses objectos não teve lugar imediatamente. Na realidade, só na década de 1950, quando Roger Penrose apareceu independentemente com o mesmo desenho, Reutersvärd percebeu que a «ilusão de perspectiva» que tinha conseguido com o triângulo podia ser usada para criar toda uma família de figuras igualmente paradoxais. A seguir produziu a primeira «escada impossível» e o primeiro «diapasão do diabo». Estas ideias não tardaram a ser absorvidas e embelezadas por outros, designadamente pelo artista holandês M. C. Escher e pelo suíço Sandro Del Prete. Assim, aconteceu que, na década seguinte, o desenho original de Reutersvärd produziu catedrais de impossibilidade cada vez mais complexas. A figura seguinte mostra uma das variantes mais recentes, o Portal de Acesso à Quarta Dimensão, de Del Prete.


Sandro Del Prete, Portal de Acesso à Quarta Dimensão, 1966.

Por isso, agrada-me que houve uma progressão evolutiva semelhante com o ipsundrum. O primeiro passo crucial teria sido a descoberta por parte da Natureza — através de qualquer «garatuja natural» — de uma variação na reacção expressiva à estimulação sensorial, à sensição, que por casualidade orientasse a actividade reverberatória nos circuitos de feedback para um novo tipo de estado atractor: um estado que talvez desse origem à ilusão de que existia um «tempo espesso» e, desse modo, elevasse a sensação até ao plano fenoménico.

Na natureza das coisas, este passo inovador deve ter ocorrido num determinado momento de uma determinada linha evolutiva (embora seja possível ter-se repetido mais tarde em outras linhas.) Fazendo recuar as coisas tanto quanto parece credível, permitam-me que sugira que isso teve lugar há cerca de 300 milhões de anos nos répteis primitivos que foram os antepassados das aves e dos mamíferos. Podemos pressupor que, para ter sido seleccionada nessa época, a inovação teria tido de produzir benefícios imediatos para a sobrevivência. Vamos então supor que estes teriam envolvido benefícios do tipo que abordámos nos capítulos 6 e 7 — embora sem dúvida de início se tivesse tratado de versões relativamente modestas desses benefícios. Assim, os antigos répteis conscientes já teriam começado a desfrutar dos benefícios de terem um eu nuclear e de existirem num mundo encantado.

A partir deste ponto, qualquer regresso ao estado de ter sensações não-fenoménicas teria sido severamente punido pela selecção natural. No entanto, é possível que tenha havido um longo período de estabilidade no qual, excepto no que diz respeito aos pequenos ajustes e aperfeiçoamentos, o ipsundrum não sofreu novos desenvolvimentos. Como outras antigas invenções biológicas, como o coração, por exemplo, a consciência tinha atingido um nível de eficiência para além do qual não eram necessários quaisquer melhoramentos. Então, como era a consciência para esses antigos répteis continuou a ser como é a consciência; e o que era a sua função evolutiva continuou a ser o que é a sua função — para todas as espécies de animais conscientes que mais tarde descenderam deles, desde os corvos até aos gatos e golfinhos.

Para todas, excepto uma. Com o advento dos seres humanos, apareceu uma espécie cujos membros reflectiam sobre a sua experiência de maneiras completamente diferentes. Os humanos surgiram como conhecedores da consciência que tinham um interesse sem precedentes pelos pormenores fenomenológicos de como é estar aqui e que reflectiam nas suas ramificações metafísicas. Assim, aspectos de qualidade fenoménica, que nada teriam contado antes, tornaram-se importantes. Isto podia ter sido a pista para modificações significativas na apresentação de sensações, ou mesmo uma renovação completa do espectáculo mágico para este público filosoficamente mais exigente. Porém, como se veio a verificar, estou convencido de que isto era desnecessário. Já havia suficiente potencial «não utilizado» nas qualidades da consciência que existiam para satisfazer as novas exigências sem um afastamento drástico da tradição original. Tudo o que era necessário — e que foi conseguido — era uma nova encenação inteligente: uma nova iluminação, um cenário mais ousado, espelhos adicionais para acrescentarem novas camadas à ilusão, mas, essencialmente, mais do mesmo. Neste contexto, a consciência fenoménica estava pré-adaptada para assumir o seu papel alargado nos humanos.

Enquanto cientistas, como seria possível sabermos?

Vou repetir a verdade metodológica a que dei realce no primeiro capítulo. Na nossa condição de historiadores naturais da consciência, tudo o que podemos ver são as consequências comportamentais, e estas não têm necessariamente um mapeamento único para os estados mentais internos que as produzem. Retomando uma analogia já apresentada anteriormente, o mesmo sorriso pode ser produzido por muitas piadas diferentes.

No fim de contas, talvez só haja uma maneira de saber, que consistiria em entrar na cabeça do sujeito — armados das leis neurofenomenológicas correctas para proceder à tradução entre actividade cerebral e representações conscientes. Supusemos que a cientista de Andrómeda já dispunha de todas as ferramentas necessárias, de modo que ela, ao contrário de nós agora, devia poder comparar a consciência nas espécies e indivíduos e obter respostas definidas. Quando ela completar o seu livro, A Explicação do Regresso à Superfície, talvez este contenha um guia taxonómico pormenorizado a descrever como é (ou, principalmente, como não é) ser qualquer das espécies animais aqui na Terra.

O leitor e eu podemos ser assaltados por uma sensação de despeito em relação a isto. Não parece muito justo que uma cientista alienígena possa conseguir respostas a perguntas sobre o nosso mundo, que nos interessam tão profundamente, mas que, no futuro previsível, nós não vamos conseguir obter. Porém, pelo menos os filósofos da ciência ficarão tranquilizados ao saber que há alguém, algures, capaz de responder a estas questões empiricamente — o que significa, no mínimo, que elas podem ser consideradas verdadeiras questões científicas.

No entanto, tenho uma confissão a fazer. Não acredito que a cientista de Andrómeda faça alguma vez a visita que descrevi.

Quando a apresentei, escrevi: «Enquanto cientista, há muita coisa que ela aguarda com expectativa.» Escrevi isto porque parti do princípio de que ela era uma cientista como qualquer um de nós: um dos sábios de Poincaré «que estudam a natureza porque isso lhes dá prazer e porque ela é bela,» ou, como Dawkins, que se dá ao trabalho de se levantar de manhã porque «abriu os olhos num planeta sumptuoso, reluzente de cores, favorável à vida».

Mas a visitante de Andrómeda — como eu logo de início pus como condição para a introduzir nesta obra — não é ela própria fenomenicamente consciente. Referi que isso não era impedimento para que tivesse uma mente analítica excepcionalmente brilhante. Porém, subsiste o facto de ela própria ser um zombie psicológico. E —como aprendemos desde então — esses zombies não se preocupam com as coisas do mesmo modo que os seres conscientes. Em particular, não consideram ser sua missão estar «apaixonados pelo universo». Imaginei a nossa visitante cheia de entusiasmo ao ver o romper do dia na Terra e a testemunhar o despertar das mentes conscientes. Mas agora receio que ela tenha ficado na cama.

Isto significa que tudo vai levar um pouco mais de tempo. Terá de ser um de nós, humanos, a escrever o livro em vez dela."

NIcholas Humphrey

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