terça-feira, 20 de março de 2012
O Homem de Acção e a Actualidade da Arte
Post convidado da autoria de Maria do Carmo Vieira:
Vive a tua vida. Não sejas vivido por ela.
Bernardo Soares, Livro do Desassossego
«Mudança» é, porventura, nos nossos dias, um dos vocábulos mais em moda. A ele se associa estreitamente um outro, «movimento», que convive com o seu sinónimo, «acção», e em cujas entrelinhas se entrevê o tão repetido espírito «empreendedor». Neste obsessivo jogo de palavras que «pedagogicamente» se difunde à exaustão e se encara como veículo de novos valores a cultivar, deparamo-nos, por exemplo, com iniciativas camarárias para jovens (a que as crianças também não escapam) cujas t-shirts, oferecidas, têm estampado: «Jovens (ou crianças) em movimento», marca elucidativa de «mudança» e testemunho de uma formatação que desde cedo se inicia, preparando o caminho futuro do «vencedor»; situação idêntica ocorre em documentos oficiais, nomeadamente nos Ministérios, todos eles orgulhosamente «em movimento», uma forma de em teoria garantir que trabalham muito pelo país; e até à velhice se impõe agora essa designação que garantirá a imagem do «eternamente jovem», talvez porque a idade da reforma já se alterou e ameaça novamente alterar-se, como bem sabemos, sendo assim uma maneira de os pré-reformados, já considerados «velhos», se irem habituando à ideia do «envelhecimento em acção», que o slogan do ano internacional apregoa, juntando-lhe sob a capa de uma bondade enganadora a «solidariedade entre gerações».
Conscientemente foi-se menosprezando o «respeito pelos velhos», aqueles que trazem esculpido no rosto a passagem do Tempo e, consequentemente, a experiência e o saber que a vida lhes foi facultando. Agora, sob o disfarce da reabilitação da sua imagem, propaga-se uma caricatura de «velho», trabalhada através de fotografias que de modo artificial exaltam uma alegria eufórica, feita espectáculo de consumo. O próprio discurso repetidamente publicitado é no mínimo caricato, adequando-se às exigências do «mundo novo», entre as quais se inclui a proibição de envelhecer naturalmente e daí o «Não envelheço» ou o «Nunca é tarde demais para… ter um espírito jovem» [1]. Nesse âmbito, o verso - «Cada coisa a seu tempo tem seu tempo» - de Ricardo Reis, heterónimo (de «cultura clássica») de Fernando Pessoa, será considerado antiquado e desajustado enquanto máxima, assim como dificilmente será compreendida a metáfora, do mesmo poema, «À noite, que entra, não pertence, Lídia,/O mesmo ardor que o dia nos pedia.»
Neste «mundo novo», a que pretendem habituar-nos, sobressaem, com alarido mediático e de forma totalitária, «os homens de acção», os tais «Príncipes», em tudo vencedores, e nossos «irmãos», a que se referia Álvaro de Campos, o heterónimo, «engenheiro naval», criado por Fernando Pessoa. Seduzidos pela sua própria imagem e crendo-se «iluminados» por uma verdade que não admite discussão, aceitam estes «homens de acção», «eternamente jovens», apontar o caminho da mudança que ideologicamente não prevê qualquer preocupação com o Outro, que pode ser «estorvado, ferido e esmagado» [2] se o lucro e o sucesso assim o exigirem. Na sua óptica, o cansaço não existe e o ser humano que trabalha em função de outrem nada mais deve ser do que um escravo de trabalho, e daí a inutilidade da cultura, o desprezo pela sensibilidade ou a indiferença pelo quotidiano familiar. Eles, «os homens de acção», são os práticos, os que conseguiram fortuna em pouco tempo e à custa do seu próprio trabalho (dizem), acusando de falta de vontade quem não consegue tal milagre; são ainda os que anseiam desalmadamente pela competição e pela sua projecção no mundo exterior, o único que conhecem e mesmo assim de forma superficial.
Estes homens habilmente funcionais e de personalidade optimista, ditada pela euforia da «acção», foram descritos ao pormenor por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa, e semi-heterónimo de Fernando Pessoa que no-lo deu a conhecer através do «Livro do Desassossego». É com as suas palavras que termino, certa de que elas nos farão reflectir sobre os dias de hoje e a actualidade da arte:
O mundo é de quem não sente. A condição essencial para ser homem prático é a ausência de sensibilidade. […]. Quem simpatiza pára. O homem de acção considera o mundo externo como composto exclusivamente de matéria inerte – ou inerte em si mesma, como uma pedra sobre que passa ou que afasta do caminho; ou inerte como um ente humano que, porque não lhe pôde resistir, tanto faz que fosse homem como pedra, pois, como à pedra, ou se afastou ou se passou por cima. […] Todo o homem de acção é essencialmente animado e optimista porque quem não sente é feliz.[…] O patrão Vasques fez hoje um negócio em que arruinou um indivíduo doente e a família. Enquanto fez o negócio esqueceu por completo que esse indivíduo existia, excepto como parte contrária comercial. Feito o negócio, veio-lhe a sensibilidade. Só depois, é claro, pois se viesse antes, o negócio nunca se faria. «Tenho pena do tipo» disse-me ele. «Vai ficar na miséria». Depois acendendo o charuto, acrescentou: «Em todo o caso, se ele precisar qualquer coisa de mim» - entendendo-se qualquer esmola - «eu não esqueço que lhe devo um bom negócio e umas dezenas de contos.» […]. Como o patrão Vasques são todos os homens de acção – chefes industriais e comerciais, políticos, homens de guerra, idealistas religiosos e sociais, grandes poetas e grandes artistas, mulheres formosas, crianças que fazem o que querem. Manda quem não sente.
Maria do Carmo Vieira
NOTAS
[1] Anúncio na Revista Tempo Livre, (INATEL), a propósito do «Ano Europeu do Envelhecimento Activo e da Solidariedade entre gerações, 2012».
[2] Bernardo Soares / Fernando Pessoa, O Livro do Desassossego
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5 comentários:
E, segundo a cartilha do "eduquês", se algum
professor assim não pensa nem age, acusam-no
de resitência à "mudança".
E os mais "entusiastas" vão mais longe e
dizem-no incapaz em matéria de "inovação".
E, desde há décadas, ninguém foi preso por
diversas "inovações" que arruinaram a vontade
e a saúde de muitos professores e, pior do que
isso, condenaram muitos jovens à ignorância.
No mínimo...
E essas realidades não incomodam (quase)
ninguém.
Agora, comentários como este, sim.
O que é muito bem feito.
Ali em cima há uma vírgula inútil na segunda linha e, na terceira, onde está "resitência" devia estar "resistência".
Que belo retrato de Mexia, Catroga e companhia, os quais, ao serviço dos «empreendedores» procuram o maior lucro independentemente da futura saúde financeira dos clientes/contratantes;
Que belo retrato de Vara, Manuel Godinho, Penedos e companhia, os quais, ao serviço do «empreendedorismo activo» (ao seu serviço,) não se importavam com a sorte de quem deviam servir, daqueles com os quais se deviam importar;
Que belo retrato de Oliveira e Costa, Dias Loureiro e companhia, quais «homens de acção», os tais «Príncipes» em tudo vencedores contra a derrota do país;
Que belo retrato de... tantos, tantos outros que dominam a cena nacional e internacional.
Que têm em comum tais «homens de acção» que nos apontam o caminho da mudança a qual ideologicamente não prevê qualquer preocupação com o Outro?
Serem os símbolos do pior que o nosso tempo nos trouxe.
Obrigado pela sua reflexão.
Foram precisamente estes "homens de acção" que nietzcheanamente alimentaram a fantasia poética do Pessoa(s), a começar pelos seus "imaginários" heróis... da "Mensagem" em oposição a Salazar que para o autor mais não era que um desprezível "tiranozinho"... incapaz de sonhar mirabolantes "quintos impérios"! JCN
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