segunda-feira, 29 de agosto de 2016

"Experimenter". Um filme sobre os estudos de Stanley Milgram

Na introdução do capítulo Influência social, do livro Psicologia social, Leonel Garcia-Marques coloca esta questão:
"Se estivesse a participar numa experiência de aprendizagem por referência de aprendizagem, chegaria ao ponto de punir os erros de alguém com choques eléctricos que pusessem em risco a vida dessa pessoa? Nunca, pois não? Eu, se fosse a si não estaria tão seguro, e sabe porquê? Porque grande parte dos sujeitos que participaram em experiências de influência social fizeram coisas assim" (p. 201).
Imagem retirada daqui.
Mais adiante, no ponto 4 do mesmo capítulo, intitulado O respeitinho é muito bonito: as experiências de Milgram, Garcia-Marques explica as famosas experiências de Stanley Milgram (imagem ao lado) sobre a obediência à autoridade, publicadas em 1963 e que são objecto de um filme americano - Experimenter - recentemente estreado (imagem  abaixo).

Justifica-se a atenção passado mais de meio século, pois elas estão entre as mais amplamente discutidas dentro e fora da psicologia. "Foram discutidas em igrejas e associações cívicas, na comunicação social e em inúmeros livros dirigidos ao grande público. As filmagens das experiências foram dos mais vendidos filmes da psicologia científica e até surgiram excertos delas em filme de Hollywood" (p. 229).

Imagem retirada daqui
O psicólogo social que citamos, professor da Universidade de Lisboa, questiona: "porquê tão grande sucesso?". E aponta várias razões, destaco duas: são "surpreendentes e assustadoras" e "parecem comparáveis a acontecimentos terríveis da história recente da humanidade". Explica:

[Segundo Milgram], "a obediência é um fenómeno tanto comum como útil (...) útil porque garante o funcionamento rápido e eficaz das nossas complexas estruturas sociais (...) mas também representa um perigo para a democraticidade e humanidade da nossa civilização (...). Milgram pretendeu estudar em laboratório até onde são capazes de ir pessoas normais que se limitam a obedecer" (p. 229). E foi assim que aconteceu há 53 anos na Universidade de Yale:
"... participaram quarenta sujeitos com idades compreendidas entre os vinte e os cinquenta anos, que se apresentaram em resposta a um anúncio de jornal. As suas profissões iam desde carteiro e professor até ao engenheiro e vendedor (...).
Um sujeito crítico e uma «vítima» (comparsa do investigador) recebiam a seguinte explicação: «Presentemente sabemos muito pouco acerca do efeito de punição na aprendizagem, por se não terem realizado praticamente nenhuns estudos verdadeiramente científicos com sujeitos humanos. Por isso, estamos a juntar uma série de adultos com diferentes ocupações e idades, e estamos a pedir a alguns deles que sejam professores e a outros que sejam aprendizes. Queremos saber que efeito pessoas diferentes têm umas nas outras, enquanto professores e aprendizes, e qual é o efeito que a punição terá nesta situação. Portanto, pedirei a um de vós para ser professor e a outro para ser aprendiz. Alguém tem alguma preferência?»
O sujeito crítico e o comparsa tiravam à sorte (...) e ao primeiro calhava sempre ser professor (...) eram levados para uma sala (...) e o aprendiz era atado a uma «cadeira eléctrica»
Muito sumariamente, numa encenação criada, era dito ao «professor que seriam dadas tarefas ao «aprendiz» (por exemplo, memorização de pares de palavras) e, caso este respondesse errado, deveria aplicar-lhe choques eléctricos de intensidade crescente, podendo chegar aos que faria perigar a vida. O «professor» teria de operar numa máquina com interruptores organizados por ordem de voltagem.

A partir da aplicação de um certo patamar de «voltagem», os «professores» tendiam a protestar, recusando-se alguns a continuar, mas eram estimulados pelo investigador. Também queriam saber, caso acontecesse alguma coisa de mal ao «aprendiz», de quem era a responsabilidade, ao que o investigador respondia que seria inteiramente sua, deles, «professores». Ainda assim, muitos continuavam (trinta e cinco em quarenta), chegando a «aplicar» a voltagem capaz de matar.

A observação (directa e em vídeo) do comportamento dos sujeitos revelou uma tensão progressivamente mais acentuada: "suavam, tremiam, riam nervosamente, mordiam os lábios e murmuravam continuamente. Muitas vezes diziam que tinham de parar e... continuavam" (p.223).

Milgram não se ficou por esta experiência, fez muitas outras (sobretudo variações desta), das quais tirou diversas conclusões que em muito contribuíram para assombrar a imagem que temos da condição humana.
Uma delas é a seguinte (as palavras são do próprio investigador, que não ficou indiferente a essas mesmas conclusões): "uma proporção substancial de pessoas faz o que lhe mandam, qualquer que seja o conteúdo do acto e sem entraves de consciência, desde que considerem que o comando é emitido por uma autoridade legítima" (p. 235).
Apesar dos problemas éticos que, desde o início, esta experiência levantou pelo tipo de manipulação que envolveu (submetida agora a uma comissão de ética em investigação, certamente não seria autorizada), vale a pena (voltar a) pensar nela, no caso, pela mão do cinema.

Afinal, em certos aspectos a arte, pela liberdade interpretativa que lhe é característica, pode explorar aspectos do humano que a ciência, com todas as suas (necessárias) amarras de objectividade não pode.

Referência bibliográficaGarcia-Marques, L. (1997). Influência social. In J. Vala & M. B. Monteiro. Psicologia social (pp. 201-257). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.


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