Continuação do texto O discurso actual sobre a escola: sete slogans para justificar uma verdadeira revolução
Não obstante a linguagem modernizada patente no discurso que dá corpo ao designado “movimento da revolução digital” (digital revolution), que sintetizar no texto antes publicado, vemo-lo ressurgir com regularidade no já longo percurso dos sistemas de ensino, ficando a ideia de que a escola se encontra numa constante e pungente crise, que, claro está, importa superar depressa e com afincado empenho.
Se recuarmos à anterior passagem de século, do XIX para o XX, aí encontramos o “movimento da educação nova a declarar a inutilidade e inadequação da escola antiga, formalista e intelectualista, advogando, nessa linha, a sua substituição por uma escola moderna, naturalista e para a vida. “A escola activa vencerá a escola tradicional”, afirmou Ferrière (1920/1934), consubstanciando o que ficou conhecido por revolução copernicana na educação.
Não tendo esse intento sido, à altura, completamente concretizado, haveria de ressurgir em réplicas mais ou menos notadas, como sejam as que aconteceram nos pós-Grandes Guerras e no pós-Maio de 68. Apesar da passagem do tempo, em qualquer uma delas se acusou a escola de fechamento a necessidades, interesses e expressões individuais, étnicas, culturais e sociais, e, de modo muito particular, aos problemas do mundo que tinha obrigação de ajudar a resolver.
Em resultado, foi ganhando forma e consistência um discurso que, na sua matriz, não se afasta substancialmente daquele em que me detive no texto anterior, sendo uma das suas características mais distintivas a declaração de que o aluno é capaz de construir o seu próprio conhecimento.
Apesar dos intermináveis equívocos que esta declaração sempre gerou, foi em grande medida por causa dela que gradativamente se introduziram alterações nos currículos e na avaliação, nos papéis do professor e do aluno, nas abordagens pedagógico-didácticas e, também, tecnológicas.
As consequências nem sempre positivas que tanto esse discurso mais recuado como as suas concretizações sugeriam, muitas delas confirmadas por investigação, desencadearam uma contra crítica que se expressa do seguinte modo: o sentido da educação tem de ser sempre o da perfectibilidade humana; não deve a escola desistir de instruir e terá de continuar a concentrar-se no conhecimento “poderoso” que permite a construção da inteligência; os métodos e os recursos não devem ser escolhidos em função da agradabilidade que possam colher junto dos alunos mas das garantias de aprendizagem que dão; o professor terá de continuar a ser o adulto responsável pela educação dos mais jovens pois estes não se educam sozinhos nem uns aos outros...
Estas são algumas das premissas/recomendações que têm sido trazidas a lume por autores consagrados das mais diversas áreas ligadas à educação e que convém não negligenciar.
a verdade, elas baseiam-se num trabalho de reflexão e de pesquisa empírica que tem feito avançar com segurança o ensino, introduzem a dúvida e a ponderação, tão necessárias na acção pedagógica e, acima de tudo, obrigam a uma interrogação sobre a verdadeira função educativa da escola.
Ora, é precisamente esta abordagem, necessariamente dependente de um estudo demorado e aprofundado, que vejo omitida na retórica, imposta nas mais diversas frentes, sobre a denominada “escola do futuro”.
O que está em causa é uma escola alicerçada na tecnologia com vista à preparação tecnológica das novas gerações, tendo por justificação o argumento de que a sociedade em que vivemos é tecnológica. Trata-se de um raciocínio redundante e reducionista, que conduz a um paradigma educacional “centrado na tecnologia” (technology-centred) (Mayer, 2010).
O foco não é o aluno – como acontecia no paradigma da educação nova –, apesar de se fazer crer que sim, nem as capacidades cognitivas que, com sustentação em conhecimento abstracto, lhe permitem pensar, no sentido mais amplo da expressão. Enfim, não é a consciência humana que se pretende ajudar a formar mas algo perigosamente diferente: a preparação de sujeitos, entendidos como “capital”, “recurso” ou “matéria prima”, para que, com flexibilidade e rapidez, assegurem o funcionamento do mundo laboral e de consumo com vista à economia global, que em pouco ou nada os beneficiará (Innerarity, 2016).
Destas palavras não se deve depreender uma recusa cega da integração das novas tecnologias na educação formal, como frequentemente se quer fazer crer, trata-se, antes, de encontrar o exacto valor dessas tecnologias e estudá-lo com o rigor que a investigação científica recomenda, com vista a criarem-se condições que potenciem a aprendizagem, o que, aliás, tem acontecido com as antigas tecnologias, com destaque para o quadro e o livro, nada indicando que se devam excluir do processo de ensino.
Existe, de resto, nesta área, investigação de grande qualidade com aplicações ponderadas, que têm dado resultados encorajadores e que, por essa razão, ganhariam em ser mais divulgados no nosso país e também usados.
O debate não pode, pois, ser extremado entre a aceitação e a rejeição radicais das tecnologias no campo educativo formal; terá, sim, de ser centrado nas potencialidades que abrem para se conseguirem concretizar as finalidades que, com legitimidade, a escola deve procurar atingir: os mais elevados patamares de educação para todos (D´Orey da Cunha, 1996).
Referências:
- Cunha, P. D. (1996). Ética e educação. Lisboa: Universidade Católica.
- Ferrière, A (1934/1920). A escola activa. Porto: Editora Educação Nacional
- Innerarity, D. (2016). Nueve valores educativos para sobrevivir en una sociedad del conocimiento. Conferência proferida na Fundação Calouste Gulbenkian em 30 de Abril de 2016, no âmbito da Conferência Educação para o século XXI.
- Mayer, R. E. (2010). Learning with technology. In H. Dumond, D. Instance & F. Benavides (Eds.). The nature of learning: using research to inspire practice (pp. 179- 198). Paris: OCDE Publishing.
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2 comentários:
O discurso ou os discursos sobre a escola ou sobre as escolas são vitais para a própria instituição e, naturalmente, fazem parte do seu próprio metabolismo e sobrevivência. É dotada de uma espécie de função de metacognição que não desdenha de atormentar, supostamente para se salvar.
Se olharmos para as instituições públicas, em geral, militares, da justiça, da saúde…constatamos em todas a mesma necessidade de questionamento e de incessante auto-hétero-avaliação.
Não parece que, neste aspeto, estejamos perante um problema da escola, em particular, mas de um modo de ser das instituições públicas.
Ao Estado não é concedida a prerrogativa de gastar dinheiro em “inutilidades” e, não raro, é “exigido” que retire ilimitado proveito de toda e qualquer inutilidade, não apenas dos particulares mas também dos seus agentes, mormente dos danos causados por estes.
Se pensarmos nas funções do Estado como algo que DEVE realizar o “melhor” que compete em cada momento para uma determinada situação, torna-se óbvio que falar do Estado é falar de uma realidade sem qualquer analogia, por exemplo, com as funções de uma Empresa, qualquer que seja o seu ramo/área de atividade. A Empresa pode ser, não apenas inútil, como prejudicial e, mesmo assim, realizar perfeitamente o seu escopo e não está sujeita a nenhum dever de realizar o “melhor” que compete em cada momento para uma determinada situação, até porque, “o melhor”, neste caso, pode ser “o pior”, no caso do Estado.
A escola, enquanto instituição “gizada/modelada” e “tutelada/credenciada” pelo Estado, não pode escapar àquelas condicionantes funcionais do Estado e à noção que este tiver, em cada momento e situação, de “melhor”. E as escolas privadas, quanto a isto, não são mais do que escolas públicas.
De qualquer modo, não corremos risco de ser pessimistas se afirmarmos que nenhuma escola, alguma vez, será reconhecida como uma escola modelar. Talvez fossem precisos muitos modelos de escolas modelares para integrar “a melhor” escola.
Se efetivamente houvesse escolas privadas, que parece não existirem, como, em última análise, parece não existirem empresas privadas, no sentido em que dispensam completamente apoios e financiamentos do Estado, seriam elas próprias a “fazer a revolução”, as revoluções, com ou sem slogans e, naturalmente, assumindo todas as vantagens e desvantagens, prejuízos ou benefícios que achassem ser “o melhor”. Ao Estado competiria reconhecer, avaliar, fiscalizar… a qualidade desse “serviço” através de um sistema compatível de títulos académicos, profissionais, ou outros. (continua)
O que “a escola” pretende e o que cada pessoa pretende (quando pretende) ou espera (quando espera) por ser integrado na escola, nunca foi simples mas, atualmente, vai-se tornando inconciliável, até pela própria indefinição e incerteza de uma vontade e de uma política clara. A escola já não está nada certa de saber o que pretende (basta ver os discursos sobre a escola) e menos ainda como consegui-lo. Na realidade, grande parte do que a escola “deve” pretender depende do que cada pessoa pretende (quando pretende) ou possa vir a pretender…
As tecnologias são uma variável complexa, pela importância que têm per se, no modus vivendi e no modus operandi, apresentando-se como um processo de instrumentos e de soluções, teoricamente, para todos os problemas.
Os modos como a escola poderá integrar e potenciar estes recursos nas suas próprias funções de ensinar e educar, depende muito daquilo que a escola espera “melhorar” com eles. Se esperar mais ou melhor do mesmo, como formar pessoas porque quanto mais formação melhor, haja quem ame o saber pelo saber, mas constata-se que as motivações para os estudos costumam mais prosaicas, ao ponto de a primeira preocupação não ser aprender para saber, mas obter um diploma para arranjar um emprego.
Parece-me que uma boa parte dos alunos e dos formandos prefeririam que houvesse, pelo menos, tanta preocupação com a formação das suas consciências, quanta preocupação com um adequado retorno/compensação económica, social… do seu investimento na formação.
Embora tente sobrestar, por exemplo, apostando em formação profissional, se a escola disser que as saídas profissionais já não lhe competem, então, neste ponto, a escola atual não pode prometer o que a escola prometia noutros tempos que eram, aliás, de grande analfabetismo.
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