domingo, 21 de agosto de 2016

NOS PALCOS DA CIÊNCIA


Sebastião Formosinho é professor jubilado de Química da Universidade de Coimbra. Tive recentemente o prazer de apresentar no Rómulo - Centro Ciência Viva da Universidade de Coimbra o seu livro mais recente Nos Palcos da Ciência: uma apreciação estética da heterodoxia científica. O livro é a versão alargada da "última lição" que o autor proferiu em 20 de Setembro de 2013 no anfiteatro principal do Departamento de Química da sua Universidade, entre muitos colegas e amigos (tive a oportunidade de lá estar). É, de certo modo, um resumo da sua trajectória científica e nele o autor faz um balanço da controvérsia que o seu "modelo dos estados de intersecção" (em inglês Intersecting State Models, ISM) e a "teoria de efeito túnel", mais o primeiro do que a última, por ter enfrentado um paradigma instalado na comunidade química, da autoria do químico canadiano Rudolph Marcus, que lhe valeu o Prémio Nobel da Química em 1992. A proposta que Formosinho fez com os seus colaboradores foi considerada uma heterodoxia científica e é esta a história dessa heterodoxia que ele conta no seu livro mais recente, servindo-se de um argumentário vindo das artes. Contra ventos e marés o ISM, a ideia "bonita" do autor, conseguiu afirmar-se, tendo-se já espraiado por várias dezenas de publicações.

O Prof. Formosinho foi meu professor nos idos de 1973-1974, na cadeira de Química Geral: tinha chegado dois anos antes da Royal Institution de Londres, onde tinha feito o doutoramento com  George Porter, Prémio Nobel da Química de 1867 (com Manfred Eigen e Ronald Norrish). Boa parte da Química que eu sei devo-a a ele. Depois disso, tem sido um colega e amigo com quem já escrevi dois artigos, um no Boletim da Sociedade Portuguesa de Química sobre a recepção da teoria quântica em Portugal e outro sobre a "religião cósmica" de Einstein, em sair em breve na revista Estudos do CADC. Não sendo eu químico, foi bondade sua ter-me pedido para apresentar Nos Palcos da Ciência.

A carreira do autor é muito diversificada: inclui as normais componentes científica e pedagógica (para além de professor de uma multidão de alunos, é autor de manuais não só para o ensino superior como para o básico e secundário), mas também uma componente política (foi, embora por pouco tempo, Secretário de Estado do Ensino Superior), de gestão académica (dirigiu o pólo de Visei da Universidade Católica), técnica (foi membro da Comissão Científica Independente, que estudou a Co-Incineração de Resíduos Industriais Perigosos, muito badalada no final do século passado a propósito da cimenteira de Souselas), de empreendedorismo (registou patentes e iniciou startups) e cultural (tem uma série de livros entre a ciência, a filosofia  e a teologia, a meias como o padre Oliveira Branco, vários artigos sobre história e sociologia da ciência, e artigos artigos sobre bibliometria científica). Um autêntico homem do Renascimento, portanto. Marcos de uma longa e fértil longa e fértil trajectória académica foram recompensas públicas como o prémio Artur Malheiros da Academia de Ciências de Lisboa (1972), a medalha Ferreira da Silva da Sociedade Portuguesa de Química (1984), o Prémio Gulbenkian de Ciência (1994), o prémio de Estímulo à Ciência da FCT (2004) e o prémio Inventa da Caixa Geral de Depósitos (2011). 

Não sendo especialista em química não posso apreciar devidamente a sua contribuição para essa ciência que deixou em quase duas centenas de artigos e em alguns manuais científicos.  Mas, ao ler Nos Palcos da Ciência, fiquei com uma ideia mais nítida da controvérsia que o modelo do ISM provocou e dos méritos dos seus proponentes, O principal autor fez questão, ao longo dos anos, de anunciar ao país e ao mundo as dificuldades que foi encontrando em publicar o modelo e suas aplicações nas revistas científicas, em geral devido a pareceres negativos dos referees. Conhecia os seus livros em que ele foi tratando esse assunto:
- Nos Bastidores da Ciência. Resistência dos Cientistas à Inovação Científica, Gradiva, Lisboa, 1988. - O Imprimatur da Ciência. Das Razões dos Homens e da Natureza na Controvérsia Científica, Coimbra Editora, 1994.
- Nos Bastidores da Ciência: 20 anos depois, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2007.
- Uma intuição por Portugal, Artez, Coimbra, 2009 (em cujo lançamento colaborei no Museu de Ciência da Universidade de Coimbra).
Confesso que, de início, fiquei admirado com o desprendimento com que o autor publicava as frases por vezes nada simpáticas dos referees. Normalmente quando recebemos muitos pareceres negativos abandonamos o caminho por onde íamos (os cientistas aceitam o primado da avaliação por pares, que apesar de todos os defeitos que possa ter, ainda é o melhor dos métodos de avaliação)Depois passei a admirar a convicção e a persistência do autor. O ISM deve ser a teoria científica moderna de autores portugueses sobre a qual existem mais materiais à disposição dos historiadores de ciência. Em Nos Palcos da Ciência há uma fotografia de pareceres impressos em folhas A4, a maior parte de rejeição, que formam uma pilha de mais de 7 cm! Está publicada a história praticamente toda do ISM, os falhanços e os êxitos, as rejeições e os apoios. É um exemplo invulgar de enfrentamento de um paradigma instalado na ciência: Marcus e seus seguidores olham para a cinética química (a parte da química que estuda a velocidade das reacções) de uma certa maneira, ao passo que Formosinho e colaboradores olham de outra. A filosofia da aproximação é diferente e as duas reclamam a descrição fenomenológica de um grande conjunto de reacções. Algumas são tão bem descritas por uma como por outra, outras mais por uma ou  outra.

O mote para a apresentação do ISM em Nos Palcos da Ciência (repare-se que de 1988 para 2015 o modelo passou dos bastidores para os palcos...)  é, como foi dito, o da apreciação estética. O químico Jorge Calado, no seu monumental livro Haja Luz (uma obra-prima da divulgação científica, já em 3.ª edição) escreveu que o "pitoresco, o belo e o sublime representam uma hierarquia de experiências estéticas, de intensidade e qualidade crescentes".

Pois, servindo-se dessas palavras inspiradoras, Formosinho mostra como o ISN  foi fazendo o seu caminho ao longo das últimas décadas. O livro pressupõe que o leitor tenha alguns conhecimentos de química, recorrendo aqui e ali a fórmulas matemáticas, mas mesmo quem não esteja dentro dos meandros da cinética química, pode-se deixar embalar pela música da narrativa. As palavras "pitoresco", "belo" e "sublime" vão aparecendo em sucessão. Pitoresco quando uma grande quantidade de dados empíricos eram descritos por um modelo simples (com poucos parâmetros), belo quando o mesmo modelo, devidamente ampliado, passou a descrever dados que outros modelos rivais não conseguiam (uma "dupla região invertida" num gráfico, como a bossa de um camelo, em vez de uma simples região invertida) e sublime, quando, aumentando o domínio de aplicabilidade, os belos se foram sucedendo "em harmonia e consistência".

É curioso referir que a ideia dos modelo nasceu de preocupações pedagógicas: ela veio à luz do dia em 1986 num manual universitário da Fundação Gulbenkian com o título Estrutura e reactividade Molecular, escrito a meias com António Varandas. Escolhendo variáveis adequadas, vários pontos experimentais caíam sobre linhas rectas. Os relatórios de referees foram, porém, arrasadores quando a proposta chegou à caixa de correio de revistas especializadas. A teoria de Marcus estava bem estabelecida e daria, de resto, em breve um Nobel ao seu autor.  Depois ocorreu uma pausa. Escreve Formosinho de uma forma que poderá surpreender alguns leitores:
"O exercício da actividade política como secretário de estado veio-se a revelar útil para a minha investigação, pois permitiu atenuar obstáculos conceptuais que eu mesmo tinha desenvolvido".
Normalmente, os ex-governantes queixam-se do tempo tirado à ciência... Mas há mais: um dos avaliadores sugeriu a certa altura que os autores se afastassem do assunto durante um tempo e Formosinho confessa que seguiu esse conselho! Mas o "bichinho" estava lá e em 1991 voltou. Trabalhos feitos em colaboração com Luís Arnaut permitiram chegar ao patamar do "belo", algo para lá do "pitoresco". Em 2003 eles e outros colaboradores publicaram um artigo na prestigiada revista Journal of the American Chemical Society que pode ser considerado um ponto de viragem na história da teoria (os autores festejaram com um bolo com o nome das iniciais da revista inscrito na cobertura).  E depois não tardou a chegar o "sublime". Em 2007 dois artigos sobre o ISM passaram a ser referidos num manual clássico de química orgânica (o Carey e Sundberg, na sua 5.ª edição) e Formosinho, Arnaut e Burrows publicaram um manual sobre cinética química (Chemical Kinetics. From Molecular Structure to Chemical Reactivity) na célebre editora Elsevier (a editora do último livro de Einstein), que passou a ser adoptado por sítios improváveis como, por exemplo, a Universidade de Turku na Finlândia.

O que disse o Prof. Marcus, o autor (hoje com 93 anos) da "teoria de Marcus", sobre os trabalhos de Formosinho e colaboradores? Nada! Mas visitou Portugal por duas vezes, em 1986 e 1993, para participar em conferências científicas em Lisboa e no Algarve, mas, apesar de ter convivido de perto com o Prof. Formosinho (inclusivamente foi visita de casa), não trocou com ele quaisquer palavras sobre as teorias em conflito, a não ser umas palavras muito lacónicas de elogio da apresentação feita por Formosinho numa dessas conferências: junto à porta do elevador, disse "Sebastian, I should have said, you were very good". Enfim, dois cientistas que se respeitam ao ponto de não quererem enfrentar directamente o outro com disputas.

Por último, uma palavra sobre o papel da estética em ciência. O belo tem funcionado, em vários ramos da ciência, não apenas como um caminho heurístico mas também como um critério de validação. O poeta Keats disse que "o verdadeiro era o belo" e "o belo era verdadeiro". Em matemática essa equação poética é praticamente indiscutível. E em física, uma disciplina assente na matemática, também. Paul Dirac, o autor da mecânica quântica relativista, escreveu em 1963:
"It seems that if one is working from the point of view of getting beauty in one's equations, and if one has really a sound insight, one is on a sure line of progress. If there is not complete agreement between the results of one's work and experiment, one should not allow oneself to be too discouraged, because the discrepancy may well be due to minor features that are not properly taken into account and that will get cleared up with further development of the theory."
Hoje em dia as teorias de campos, que estão nas fronteiras do nosso conhecimento do universo, baseiam-se no conceito de simetria, um tema eterno da arte. As "teorias de tudo" reclamam ser expoentes da estética. O físico Frank Wilczek (Nobel da Física de 2004) tem um livro muito recente intitulado A Beautiful Question, onde coloca a interrogação: "o mundo é uma obra de arte?". 

O belo é hoje invocado em química e, dado o papel central da química, também em biologia. Além de Jorge Calado,  o químico Roald Hoffmann (Nobel da Química em 1981) tem enfatizado o belo na química, desligando-o da noção de simples. Declarou ele um dia ao New York Times:
"Complexity, not simplicity, is the essence of life. Take two molecules - say, dodecahedrane, a nice, simple, soccer-ball-shaped molecule, which has no use, and hemoglobin, an incredibly convoluted, complex molecule. For me, the hemoglobin is the more beautiful because of, and not despite, its complexity. Its complex form is essential for doing the complex things it has to do.
E o bioquímico americano Arthur Kornerg (Nobel da Medicina em 1959), que é citado por Formosinho em Nos Palcos da Ciência, escreveu: 
"Much of life can be understood in rational terms if expressed in the language of chemistry. It is an international language, a language for all of time, and a language that explains where we came from, what we are, and where the physical world will allow us to go. Chemical language has great esthetic beauty and links the physical sciences to the biological sciences.” 
O livro do Prof. Formosinho termina com um convite para nos curvarmos perante a beleza de um  pôr do Sol, retratado por ele próprio na capa de um livro. O belo está na natureza e, por isso, está na ciência.

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