quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Educar para fazer face à "máquina de esquecer" - 2

Continuação da entrevista realizada a Zygmunt Bauman - Desafios pedagógicos e modernidade líquida. A pergunta de Alba Porcheddu era a seguinte:
"Qual é então o papel dos profissionais da educação de hoje diante dos novos desafios postos pela passagem da modernidade sólida àquela líquida? E quais exigências pedagógicas resultam proeminentes? Qual é portanto o papel da educação e de seus profissionais?"
(...) Retomando Gregory Bateson (1976), relembremos que a "aprendizagem terciária" (que promove a formação de competências de modo a desmantelar os esquemas cognitivos aprendidos antes), reduz os alunos ao nível do plâncton, transportado por ondas casuais e sem encontrar um lugar onde permanecer ou apoiar-se para resistir à maré. Desse modo a aprendizagem terciária parece se situar no polo oposto em relação à deuteroaprendizagem, o aprender a aprender. Esta, de fato, segundo Bateson, poderia permitir aos discentes "lançar bases sólidas", integrando as noções adquiridas a novos conhecimentos, permitindo a eles prosseguir pela trajetória escolhida em todas as circunstâncias, até nas mais voláteis. Se a deuteroaprendizagem torna a conduta dos alunos autônoma, a aprendizagem terciária está destinada a confundir-lhes e a tornar seu comportamento heterogêneo. 
A aprendizagem terciária não deixa um sedimento duradouro, uma base sólida sobre a qual se pode construir, tampouco conhecimentos que podem sedimentar-se e crescer durante o curso dos estudos. O processo de aprendizagem terciária (presumindo-se que se possa falar de processo em tal caso) é uma sucessão infinita de novos inícios, devida antes de tudo ao rápido cancelamento dos conhecimentos pregressos, mais que à aquisição de novos conhecimentos; parece uma espécie de cruzada contra a manutenção e a memorização dos conhecimentos. 
A aprendizagem terciária poderia, assim, ser definida como um dispositivo antimemória. É por isso que Gregory Bateson a definiu como uma patologia, uma formação cancerígena que cresce nutrindo-se no corpo da instrução e, se não extirpada, leva à sua destruição. 
Contudo, o pressuposto sobre o qual se funda o veredicto de Bateson não reina mais; em uma modernidade líquida se tornou por assim dizer contra-factual. A aprendizagem terciária parece provavelmente patológica, entre surto de loucura e potencialmente suicida, só porque combina com o argumento de que a vida de cada um, inconstante e relativamente breve, é inscrita em um mundo estável e imperecível. Em uma modernidade líquida, contudo, a relação entre a vida e o mundo sofreu uma reviravolta; se parte agora do argumento contrário, no qual a vida do indivíduo, relativamente longa, é dedicada à sobrevivência em condições frágeis e voláteis através de uma série de "novos inícios" sucessivos. [...] 
Os praticantes de uma vida fatiada em episódios, cada um dos quais com um novo início e um fim brusco, não têm necessidade de uma educação que busque lhes fornecer os instrumentos idôneos para um mundo invariável (ou para um mundo que se move a uma velocidade inferior em relação àquela do conhecimento ao qual deveria estar ligada) (...). Não nos preocupamos com a velocidade impressionante com que o conhecimento muda de ritmo, o conhecimento precedente envelhece e o novo, recém-nascido, é destinado a envelhecer do mesmo modo: a volatilidade do mundo líquido, parcamente integrado e multicêntrico, faz com que cada um dos episódios sucessivos dos projetos conduzidos na vida requeiram uma série de competências e informações que tornam vãs as competências pregressas e as informações memorizadas. 
Aprender quantidades excessivas de informações, procurando absorvê-las e memorizá-las, aspirando tenazmente à completude e à coesão das informações adquiridas, é visto com suspeita, como uma ilógica perda de tempo...
[...] Tudo isso contradiz a verdadeira essência da educação centrada na escola, que notoriamente prefere um rígido programa de estudos e uma sucessão predefinida no processo de aprendizagem. 
Na modernidade líquida os centros de ensino e aprendizagem estão submetidos à pressão "desinstitucionalizante" e são continuamente persuadidos a renunciar à sua lealdade aos "princípios do conhecimento" (sua existência, para não falar de sua utilidade, é sempre posta em dúvida), valorizando ao contrário a flexibilidade da presumida lógica interna das disciplinas escolares. 
As pressões provêm seja do alto (do governo que pretende acompanhar os caprichosos e voláteis movimentos no mundo econômico), seja de baixo (dos estudantes, expostos igualmente às caprichosas demandas do mercado de trabalho e desconcertados por sua natureza aparentemente casual e imprevisível).
Outro fator, a perda do tradicional monopólio das instituições escolares no papel de tutoras do conhecimento e da relativa partilha de (ou concorrência por) de tal papel com os fornecedores de software para computador, revigora tais pressões. Um efeito muito evidente dessas pressões, verificado pelos teóricos e integrantes do sistema educacional, é o evidente deslocamento de ênfase do "ensino" à "aprendizagem". 
Imputar aos estudantes a responsabilidade de determinar a trajetória do ensino e da aprendizagem (e, portanto, de suas consequências pragmáticas) reflete a crescente falta de vontade dos alunos de assumir compromissos de longo prazo, reduzindo assim o leque de opções futuras e limitando o âmbito de ação.
Outro efeito evidente das pressões desinstitucionalizantes é a "privatização" e a "individualização" dos processos e das situações de ensino e aprendizagem, além da gradual e inexorável substituição da relação ortodoxa professor-aluno por aquela de fornecedor-cliente, ou aquela centro comercial-comprador. 
Este é o contexto social no qual estão obrigados a trabalhar atualmente os educadores.

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