O título "08/03/08" de um livro que a Oficina do Livro publicou 2016 é uma data mas o subtítulo esclarece, para quem não
se lembra da data, o que se passou nesse dia: a “Grande Marcha dos
Professores”. Tratou-se de uma manifestação de quase cem mil professores
na Baixa de Lisboa, do Marquês de Pombal à Praça do Comércio, em protesto contra a política educativa de Maria de Lurdes Rodriguesa, ministra da Educação de José Sócrates. Segundo a
badana foi “a maior manifestação de uma classe profissional em tempos de democracia”. Pela primeira vez foram
usados em proifusão os meios digitais para a mobilização das “hostes”: blogues, emails, SMS.
O autor, Paulo Guinote, é um bem
conhecido professor do ensino básico. Era na altura o
responsável pelo blogue “A Educação do meu umbigo”, o blogue mais lido sobre educação. Não só usou o seu blogue para a mobilização como esteve lá, pelo que o seu relato é
em primeiríssima mão. Como o autor diz logo
no início: “Não é uma narrativa neutra (...) É um olhar para um acontecimento a
partir de dentro para quem esteve no meio dele, com convicção.” Agora consultou
os registos da Internet da época, os recortes de imprensa, fez entrevistas a
professores (55 questionários
recolhidos), jornalistas e até, sob anonimato, a um funcionário do ministério. Guinote conseguiu assim uma bem documentada memória do que se passou
nesse dia e nos tempos que o precederam. Em causa estava o novo estatuto dos
docente e a avaliação do desempenho docente. Lembro-me bem desses tempos conturbados:
o mal estar nas escolas atingiu proporções extraordinárias. O tom era muito áspero de
parte a parte. O escritor e cronista Manuel António Pina (entretanto já
falecido) perguntava no JN: “Porquê tanto ódio, tanto desprezo, tanto ressentimento
contra a figura do professor?”
Nas ruas de Lisboa, proveniente de todo o país, transbordou a
indignação colectiva. Havia uma plataforma sindical (os sindicalistas
principais, incluindo Mário Nogueira, aparecem nas ilustrações do livro à frente da manif) mas os protestos excediam largamente o enquadramento sindical.
A ideia dos manifestantes era apear a ministra e mesmo, se possível, o governo,
apesar de muitos deles serem da área do PS. Mas o que ficou afinal do dia 08-03-08?
Os professores ficaram com uma mão quase vazia. A 12 de Abril era celebrado
um memorando de entendimento entre o ministério e a plataforma sindical, em
que a ministra, a troco de algumas
cedências, esvaziava os protestos. Guinote lembra que muitos
professores não se sentiram representados pelo memorando assinado pelos
sindicatos. Um blogue de um professor apresentava numa fotomontagem a ministra como uma bruxa a
dar uma maçã envenenada. “Mal-empregada manifestação”, comentava um outro professor,
denotando o tom geral de desilusão.
Em epílogo Guinote revela que, em Julho de 2019, esteve na Livraria
Almedina do Saldanha, na apresentação de um livro da ex-ministra (já tinha sido
substituída por Isabel Alçada) na qual ela deixava para memória futura a sua versão do que se passou na sua pasta. Viu, por isso, o cortejo de políticos que sempre
acompanham os seus correligionários que lançam livros. Comprou um exemplar e
verificou que a ex-governante omitia por completo a grande
contestação que tinha sofrido. Escreve ele:
“Foi uma espécie de encerramento da um ciclo da minha vida pessoal e profissional. (...) Porque confirmei muito do que tinha entrevisto à distância em 2008 e 2009: um enorme consenso da maioria do arco da governabilidade e suas extensões académicas em defender Maria de Lurdes Rodrigues e a sua política de 'reformas' em confronto aberto com os professores. A 'firmeza' elevada a qualidade em si mesma, quase que independentemente do mérito e da forma demagógica como se enunciavam as 'causas' ”.
Foi há oito anos e já houve a troika depois disso, que também não foi nada simpática para os professores, que no final ficaram muito desiludidos com Nuno Crato. Hoje, nas escolas, resta ainda desse tempo uma atmosfera de desilusão pela forma como os
professores eram e continuam a ser tratados pelos políticos. Está em vigor uma “avaliação”
de professores mas é uma burocracia de faz-de-conta, em que todos perdem tempo, que serve apenas para salvar as aparências. O livro não pergunta, dada a data em que foi escrito, mas pergunto eu: não é irónico ver hoje,
desfeito o antigo “arco da governabilidade”, juntos pela geringonça quem esteve em 08/8/08
dos dois lados da barricada?
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