domingo, 14 de agosto de 2016

A Colecção Privada de Acácio Nobre


Patrícia Portela é uma das escritoras mais originais da geração pós 25 de Abril (nasceu em 1974), Distingue-.se na exploração de relações entre as artes (não apenas literárias, mas também performativas) e a ciência e a técnica. Escreveu, entre outros, Para Cima e não para Norte (2008) sobre um mundo bidimensional e Wasteband (2014) sobre uma viagem espacial, obras sem paralelo na literatura portuguesa contemporânea. Além de escritora, Portela é performer e alguns dos seus livros estão associados a experiências em palco. 

A Colecção Privada de Acácio Nobre (2016), saído na Caminho, é o seu último livro. É de difícil caracterização: talvez ficção histórica, mas cruza-se com ficção científica e ficção artística. A autora inventou um personagem, Acácio Nobre (1869?-1968: uma figura centenária ou quase!), e apresenta-o através de um meticuloso arquivo de documentos e objectos. Nobre é uma espécie de génio ignorado, inventor, designer de jogos geométricos e puzzles, pintor, artista de vanguarda e pedagogo (pugna pela introdução de Kindergartens em Portugal centrados no desenvolvimento dos talentos artísticos das crianças). A narrativa - que é, no fundo, uma biografia de Nobre -  assenta na descrição do espólio, entrecortado por explicativas notas de rodapé, a trasncrição do testemunho de uma  amante de Nobre, que integrou o selecto Clube de Amigos de Acácio Nobre, que tem o hábito de dizer três asneiras em cada duas palavras, e uma “cronologia acaciana”, que mostra o desenrolar do mundo ao longo da vida de Acácio (a maior parte são dados da Wikipédia, mas  há ficção em quase todos os anos: Acácio tem o condão de se intrometer na vida de artistas como Fernando Pessoa, Mário de Sá Carneiro, Sofia Delaunay, etc. A vida do artista é mirabolante, não havendo qualquer preocupação de verosimilhança: passa, por exemplo, a Segunda Guerra Mundial disfarçado de freira num convento belga e morre em Paris no Maio de 1968, convencido que está no meio de uma revolução libertadora em Portugal. A autora joga na ilusão entre o real e o virtual, mas o leitor desprevenido que pense que Acácio tenha alguma realidade depressa se desilude. 

Acácio Nobre, aqui resgatado do “esquecimento”, é apresentado como um visionário, um Steve Jobs lusitano muito antes do tempo. Leia-se, do espólio, a carta que ele escreve a 27 de Outubro de 1899 a João Franco, ministro e secretário de Estado do Reino:

 "Acredito que a arte e a ciência produzem mudanças fundamentais na sociedade e que, através de uma educação específica, poderemos construir um espaço onde surjam artistas e cientistas pioneiros que se unam para transformar um século. Sobre o que esta educação pode ser (e já está a ser!), relembro-lhe que um pouco por toda a Europa as tendas de efeitos óticos são cada vez mais populares e têm participado de forma indireta e preciosa na educação social e na revolução das ideias. Ai se a política ousasse, na figura de V. Excelência, aliar-se à arte e à ciência nesta vontade de dominar o abstrato... 

O entusiasmo declarado e oficial de Vossa Excelências pela próxima Exposição Universal dá-me mostras dessa possível união; aliás, aproveito para lhe dar a conhecer a minha primeira máquina para ver e sentir a 4 dimensões dedicada a David Brewster”. 

Esta, como outras obras da autora, foi primeiro apresentada em palco antes de surgir entre as capas de um livro, cheio de fotos a preto e branco de escritos e objectos do espólio, que incluem puzzles, um vídeojogo num osciloscópio antigo, microarte (arte para ser vista ao microscópio) e até uma peça de joalharia que seria um brinquedo sexual. A parafernália de objectos acacianos é tão delirante quanto a vida do ignorado Nobre, que partilha o nome com o pseudo-intelectual conselheiro inventado por Eça. 

Em resumo, um livro muito original e estimulante. Pode-se recolher nele muita indormação sobre as artes e as ciências no final do século XIX e início do século XX. Mas há algumas falhas na informações sobre factos reais, como quando se fala de uma “filha única” de Karl Marx (de facto, teve quatro), se diz que Roentgen descobriu a radiação electromagnética (descobriu os raios X), que a Fundação Gulbenkian foi criada em 1953 (foi-o em 1956), que a primeira emissão da RTP foi em 1957 (foi em 1956, embora ainda experimental), ou que o sincrotão de protões do CERN começou a funcionar em 1960 (começou em 1959). Ma isto são pormenores que não diminuem o interesse deste surpreendente livro.

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