sábado, 21 de abril de 2007

Mistura Completa

Segunda feira passou na 2 um documentário muito interessante do luso-canadiano Nicholas Fonseca intitulado Bien Mélanger (Mistura Completa).

O documentário, realizado em 2006, é uma crítica ao desinteresse canadiano na integração efectiva das comunidades migrantes, ou seja, questiona uma certa forma de multiculturalismo.

O termo multiculturalismo tem originalmente uma conotação positiva: refere-se a uma coexistência enriquecedora de diferentes culturas; uma posição intelectual aberta e pluralista, baseada no respeito da diversidade e na rejeição de preconceitos.

Existe ainda uma segunda acepção que, como os seus primos no léxico pós-moderno, «etnicidade», «minorias», «comunitarismo» ou até mesmo «identidade», aprisiona os indivíduos a uma identidade cultural ou religiosa em que muitas vezes esses indivíduos não se reconhecem. Isto é, enquanto se debate academicamente o necessário «reconhecimento das identidades», na realidade do quotidiano o problema das minorias «étnicas» não se situa de forma alguma a esse nível. Os problemas dessas minorias não são problemas de identidade não reconhecida, são normalmente mais prosaicos e têm a ver com integração, exclusão social, igualdade de oportunidades, etc.. Problemas que não só são perpetuados como são agravados nesta acepção do multiculturalismo que de certa forma preconiza a estagnação das ditas minorias étnicas.

O problema da identidade é abordado pelos entrevistados no documentário do luso canadiano em que os participantes dizem algo como «Ninguém esperava que eu pudesse evoluir, mudar, absorver outros pontos de vista como indivíduo». Isto é, criticam o «multiculturalismo» associado a um modelo comunitarista, em que os cidadãos não são tratados como indivíduos iguais em direitos e deveres numa convivência pluralista, mas sim como membros de «comunidades culturais» fechadas e condenadas a coexistirem separadamente.

De facto, o comunitarismo como teorizado por Charles Taylor, Michael Walzer e Alasdair McIntyre supostamente valoriza a comunidade como um bem em si, assim como a igualdade e a liberdade, sendo o espaço no qual os indivíduos se podem exprimir e partilhar valores. Mas muitos dos seus críticos vêem nesse conceito a teorização dos guetos. Na realidade, este comunitarismo pós-moderno corresponde a um bloqueio cultural que subentende a incapacidade dos membros de algumas «comunidades culturais» em transcender os limites de sistemas construídos num imaginário pós-colonialista à Homi Bhabha e traduz-se num modelo humano limitado e fundamentalmente pobre. Modelo implícito à crítica do Desidério no post «Ensino pimba e discriminação social».

Um exemplo recente do que quero dizer com este comunitarismo em que a ética e os direitos políticos de alguém são indissociáveis da sua identidade cultural ou religiosa aconteceu na Alemanha, em que, citando o Corão, a juíza Christa Datz-Winter negou o pedido de divórcio feito por uma mulher muçulmana que se queixava da violência do marido. A juíza declarou que os dois vieram de um «ambiente cultural marroquino em que não é incomum um homem exercer um direito de castigo corporal sobre a sua esposa». Isto é, como na sua «comunidade religiosa» a violência conjugal é supostamente sancionada pelo versículo 34 da quarta surata do Alcorão - «Se receias que a mulher se rebele, ameaça-a, atira-a para a cama e espanca-a» - para a pós-moderna juíza as mulheres muçulmanas estão sujeitas não à lei do país mas ao código de conduta desta «comunidade», definido normalmente pelos mais «puristas», isto é, pelos mais integristas ou fundamentalistas.

Esta acepção do multiculturalismo e das comunidades «étnicas» associado ao fanatismo de uma minoria e aos actos abomináveis de terrorismo cometidos por essa minoria, permitiu o desenvolvimento de um discurso de rejeição do multiculturalismo que na realidade esconde xenofobia - a islamofobia principalmente - e um desejo de exclusão política e social dos imigrantes. Discurso normalmente debitado pelos que defendem o nacionalismo, com aceitação crescente na Europa, ou a superioridade de uma religião - o cristianismo - em relação ao islamismo. Ironicamente este discurso é facilitado por alguma esquerda que o combate já que é fácil aproveitar o léxico pós-moderno dessa mesma esquerda para identificar toda uma comunidade «étnica» ou «religiosa» com os comportamentos de uma minoria.

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