segunda-feira, 30 de abril de 2007
ENTREVISTA A GUILHERME VALENTE
Entrevista inédita com o editor da Gradiva
Trabalhou em grandes editoras antes de criar a sua própria editora...
Passei por essas editoras em momentos muito diferentes da minha vida, da vida cultural, social e política do país. Na Europa-América e na Dom Quixote a questão social e política era um imperativo, um imperativo intelectual e moral. Uma preocupação sempre presente nos livros que queríamos editar. Formei-me na edição com um grande editor, o Francisco Lyon de Castro, uma recordação que guardo com muita saudade.
Quando foi isso?
Foi na década de 60. Também a Dom Quixote, posteriormente, com o Carlos Araújo -- outra figura da edição portuguesa cujo convívio foi também marcante para mim -- teve um papel importante no esclarecimento de muitos cidadãos, até aí afastados da política, para uma tomada de consciência crítica da situação que se vivia (em Portugal e no mundo, note-se). Para a Presença fui já com um conhecimento técnico mais elaborado e abrangente da actividade editorial. Foi outra experiência muito interessante, uma interacção muito enriquecedora com o Francisco Espadinha, um outro grande editor, com uma grande cultura, com uma visão global muito lúcida da actividade de edição, como o futuro viria a provar e hoje é evidente.
A sua formação tinha sido em Filosofia, não foi?
A minha formação fez-se com o interesse pelos livros, a filosofia, a literatura, o conhecimento; com a banda desenhada e os livros de aventuras que o meu pai me lia à noite quando eu ainda não sabia ler e desejava tanto poder lê-los. Com os seus ideais e o seu exemplo, que me foram transmitidos expressivamente por amigos dele que muito me ajudaram. É isto que um ensino público pré-primário universal tem de proporcionar também às crianças pobres. É assim que se promoverá, de facto, a igualdade de oportunidades, não nivelando por baixo e cretinizando todos, como vem acontecendo no básico e secundário, que é onde são «lançadas as sementes», com dizia há dias na RTP2 João lobo Antunes. Passei a minha vida desde jovem envolvido em movimentos culturais, desde o liceu, em Leiria, com gente notável da minha terra, à volta, designadamente, de um suplemento cultural, o “Pinhal Novo”, que terá marcado uma época na vida cultural e política da cidade.
Depois foi o trabalho nas editoras e o encontro, o trabalho e o convívio intelectual e humano inesquecíveis, na Universidade, com um homem e um professor admirável, A. Sedas Nunes.
Licenciei-me em Filosofia e fiz uma pós-graduação em relações interculturais. Da preocupação com o país que caracterizou a juventude da minha geração, da obsessão muito antiga em compreender as causas do nosso atraso e dependência endémicos, resultou a consciência da necessidade de promover a cultura científica, o que viria a determinar o a criação da Gradiva e a marcar o seu projecto editorial.
Sente-se parte da geração de editores formada por Lyon de Castro e por Espadinha?
Quando fui para a Europa-América era um jovem e o Francisco Lyon de Castro já era um grande senhor. Comecei cedo a ter responsabilidades na edição. Acho que, de certa forma, atravessei gerações de editores.
Que diferenças há entre as gerações de editores?
Antes do 25 de Abril, a questão política era, como já referi, um imperativo para os grandes editores com quem trabalhei. Depois do 25 de Abril, -- foi essa e é essa uma das virtudes da liberdade -- pôde emergir e manifestar-se a diversidade dos interesses, facto que iria reflectir-se na variedade da edição. Para mim chegara o tempo de tentar travar o combate pela cultura científica, de procurar participar no combate pelo conhecimento, pela educação.
Houve amigos que me diziam que não teria sucesso com os livros de divulgação científica, por a cultura portuguesa parecer ter, digamos, «horror à ciência», mas precisamente por isso era necessário publicá-los. E foi um êxito. A Gradiva fez aquilo a que os especialistas chamam «oferta criativa»: criar um público para os nossos livros. O que fizemos na realidade foi revelá-lo. Contei com a ajuda entusiasta de um pequeno grupo de amigos admiráveis, a que se foram juntando novos amigos de novas gerações, mantendo o ideal aceso. O mesmo diagnóstico sobre a realidade portuguesa, os mesmos grandes valores, as mesmas preocupações aproximaram-nos. Cito três da primeira hora que são exemplos: Carlos Fiolhais, José Mariano Gago, Jorge Dias de Deus.
O livro não é então um produto?
Conheci, de facto, quadros de editoras que me pareceram ver o livro como um «produto». Não sei onde trabalham hoje...
Há nos editores a este respeito um abismo geracional?
Acho que há modas, entusiasmos e receios.
Há dias um colega e amigo, o António Lobato de Faria, disse algo com que não estou de acordo e talvez venha a propósito da questão que coloca. Para ele, cito de memória, não faz sentido a existência de editoras de “vão de escada”. Não subscrevo, de modo nenhum, esta ideia, que me choca. As editoras de "vão de escada” fazem muita falta, desempenham um papel essencial. Não me importaria de pertencer a uma associação de protecção das editoras de “vão de escada”. Manifestação da paixão pelos livros, foram e são, frequentemente, fontes de criatividade e diversidade editorial. São fundamentais na sociedade plural para cujo desenvolvimento quero trabalhar.
Do mesmo modo, também não estou certo de que ele tenha razão quando afirma ser a concentração empresarial inevitável. E não é, seguramente, desejável. Estou de acordo, claro, quando diz que as editoras são empresas, que têm de ser bem dirigidas....
Que diferença faz a Gradiva?
Permita-se-me pensar que a Gradiva, também a Gradiva, tem a sua identidade própria. Continua a ser, deliberadamente, uma editora de média dimensão, por isso as personalidades do editor, para o bem e para o mal, dos seus quadros e principais colaboradores são marcantes. Na Gradiva toda a gente, toda, tem consciência do que temos feito e sabe o que vamos fazer. Acho, sinceramente, que, tal como outras editoras, temos um estilo próprio, que o público identifica e, francamente, tem apreciado. Uma diferença, que julgo ser cada vez mais notória, é não editarmos apenas ficção, que é o que vejo, sobretudo, a encher as livrarias.
O nosso grande objectivo, o que desejamos, é contribuir para a promoção do conhecimento e do espírito crítico e isso passa pela leitura de bons livros de todos os géneros e realiza-se significativamente, na minha opinião, no relevo que temos dado à cultura científica. A ciência e a democracia, cultivadas frequentemente pelos mesmos grandes homens, e o desenvolvimento emergiram e cresceram juntos, com o livro e a liberdade.
Conte-nos como criou a Gradiva...
O projecto editorial foi meu, mas resultou do convívio e do debate de ideias com muitas pessoas, da suposição de que uma editora como a que pensávamos seria necessária. O próprio Prof. Sedas Nunes, que tentara, em várias ocasiões, levar-me para a Universidade, encorajou o projecto da Gradiva. Como me dizia -- permitam-me que recorde essas suas palavras ditadas pela amizade, claro -- era mais necessário um bom editor do que mais um bom professor.
Lembro-me que, na altura, o Francisco Espadinha, com amiga preocupação, me advertiu ser muito difícil fazer uma editora sem sólidos recursos financeiros. Mas conseguimos. Fizemos a Gradiva sem um tostão, vivemos sempre com o dinheiro que ganhámos e continuamos a ser hoje absolutamente auto-suficientes. Mais uma prova de que as editoras de “vão de escada” não são casos condenados à partida, que a liberdade é uma fonte de imprevisível novidade.
Como assegura a qualidade das obras que publica?
O especialista de qualquer especialidade não é, enquanto tal, claro, um editor. O editor é alguém que, independentemente da sua própria especialização e dos eventuais interesses académicos que possua, deve ter uma formação intelectual e cultural que lhe permita dialogar com as várias especialidades. Tem de ser capaz de avaliar as necessidades culturais da sociedade em que vive e para a qual trabalha, de avaliar e descodificar os pareceres do grupo de consultores em que se apoia. A Gradiva beneficia, a Gradiva foi e é, como já referi, o resultado da ajuda, do convívio e da interacção intelectual inestimável de um grupo notável de amigos, igualmente fascinados pela edição: Mais exemplos: Nuno Crato, Jorge Buescu, Paulo Crawford, Desidério Murcho, A. Manuel Baptista, Paulo Gama Mota, Jorge Lima, vários outros e, claro, a fantástico equipa permamente da Gradiva, dos serviços editoriais aos fantásticos serviços comerciais que temos. Mas, como se compreende, devem ser minhas as decisões, são, de facto, meus os erros.
O desafio para nós é editar bons livros em todas as áreas, mas livros que tenham ou possam fazer leitores. Um livro que se publica mas não tem leitores não é apenas um prejuízo económico, é também uma má escolha cultural, um erro de prioridade. Também no trabalho de um editor como nós se deve, talvez, adoptar o critério da «igualdade na consideração de interesses», tão bem apresentado na obra de Singer, Ética Prática, que editámos.
Deve ser difícil a um editor ter uma grande obra e não a publicar porque não se vai vender...
Certamente. Vamos, é claro, avaliando em cada momento as disponibilidades que temos. Os recursos são sempre limitados e é necessário geri-los tendo em conta não só a continuidade dos projectos, mas também as responsabilidades laborais, sociais, da empresa e do empresário. Sinto fortemente essas responsabilidades e honrá-las e valorizá-las é para mim muito gratificante. Realiza-me igualmente. Ao contrário do que acontece na gestão do Estado – mas não devia acontecer, claro -- na gestão privada os erros doem e pagam-se. Não entendo como podemos tolerar que desempenhem funções governamentais, «gerirem» desperdiçando a riqueza que todos nós produzimos, esta gente sem competência, sem experiência de trabalho e liderança onde a vida é a sério, que inunda todos os governos que temos tido. Não admira que aconteça o que acontece.
Os grandes editores estrangeiros disseram-me sempre ser este o negócio mais difícil do mundo. Há quem diga que editar é um palpite, mas não é assim, evidentemente. Talvez seja um palpite informado por um complexo de factores. Também por isso é uma actividade particularmente lúdica e tão fascinante. Na realidade muito depende de nós. Por isso nunca me preocupei muito com aquele receio da entrada de editoras estrangeiras em Portugal. Sinceramente, se fosse mais novo e não tivesse esta vontade de meter noutras coisas, levaria mesmo a Gradiva para Espanha...
Os grupos estrangeiros estão aí, mas não são totalmente portuguesas -- a Presença, entre as de grande dimensão, por exemplo, e a Gradiva (perdoem-me a vaidade, é um dos meus defeitos, e o juízo em causa própria...), entre as empresas de média dimensão -- as editoras mais interessantes e sólidas?
Costuma dizer-se que um autor marcou uma geração. Acho poder dizer-se com maior propriedade que os editores podem marcar gerações. A Europa-América, a Portugália e a Livros do Brasil, marcaram a minha geração, várias gerações. George Steiner dizia que o editor é como um professor, um professor que chega a mais gente!
É isso que tem acontecido com a sua editora?
A Gradiva que, como já disse, não se confunde comigo. Há pouco tempo um jovem cientista português, Ivo de Sousa, recebeu um prémio nos EUA e o "Público", a Teresa Firmino, suponho, perguntou-lhe porque tinha ido para Física. Respondeu que tinha sido por causa dos livros de ciência da Gradiva. Quando contactámos o João Magueijo, autor de Mais Rápido que a Luz perguntámos-lhe se conhecia a Gradiva e ele respondeu «Se conheço a Gradiva? Cresci com a Gradiva!”. E poderia citar recorrentes testemunhos. Houve uma época em que me diziam serem os alunos de Física do Técnico designados por «geração Gradiva». Tudo isto é evidentemente muito gratificante para todos nós, sobretudo para mim que estou a envelhecer... Quando um editor consegue publicar um livro que faz leitores é um sentimento de realização indescritível! Sucedeu isso agora no género em que mais desejávamos que isso acontecesse, um livro para crianças: os livros do Capitão Cuecas põem os miúdos (7-10 anos) irresistível e comprovadamente a ler. Em todo o mundo. E os míudos que lêem não têm problemas na escola, nem mesmo na desmotivadora, triste, escola que continuamos a ter.
Um livro científico pode ser considerado uma obra de literatura?
O Harold Bloom e, mais recentemente, o Ian McEwan (num artigo que o Expresso traduziu) afirmaram que a grande literatura aparece hoje sobretudo em livros que não se apresentam especificamente como literários, particularmente nas obras de cultura científica, e referiram vários nomes quase todos, aliás, editados pela Gradiva.
Como tenho vindo a dizer, na obra de João Lobo Antunes estão talvez as mais belas páginas de expressão literária dos nossos dias. Poderia citar no mesmo registo António Damásio, e também Jorge Buescu, os nomes que agora me ocorrem, e, claro, o Carlos Fiolhais, com a sua força comunicadora e sensibilidade, e o Nuno Crato, que cultiva um português que já pouca gente escreve, textos que deviam ser lidos nas nossas escolas.
Que opinião tem do Plano Nacional de Leitura?
Muito boa. E à partida estava muito céptico. Só o facto, posterior, de saber que seria dirigido por uma pessoa com a experiência, a isenção, a seriedade da Dra. Isabel Alçada me fez esperar para ver. É que estava habituado à inutilidade das acções do Estado no âmbito da promoção do livro e da leitura. O Plano traz uma novidade que enfrenta uma das fixações mas ignorantes e bloqueadoras na cultura portuguesa: a redução do livro à obra literária. Não fazendo essa confusão, o Plano vai ser uma revolução na actividade das bibliotecas escolares e no próprio sistema de ensino. E os resultados virão, se entretanto a nomenclatura dos «especialistas» do Ministério não despedir a Dra. Isabel Alçada.
Então não se tem de começar com a literatura?
A escrita é, talvez, a mais extraodinária invenção humana, como escreveu Carl Sagan, e o livro (que o computador não substituiu, é um instrumento único na transmissão do conhecimento, de todo o conhecimento). Além disto, há muita gente que começa a ler e se apaixona pela leitura com obras não especificamente literárias. Eu, por exemplo, comecei a ler com livros de banda desenhada. O meu filho começou a ler, cedíssimo, com livros sobre bichos. Hoje é um cientista e leitor da grande literatura. Ler é um exercício muito difícil! Quando se inicia a aprendizagem da leitura, para fazer esse exercício, resistir à preguiça e insistir, é necessária uma forte motivação. Obrigar as crianças a ler os livros que os adultos apreciam sobre os temas que a estes interessam é o que leva muitos miúdos a afastarem-se da leitura. É preciso descobrir livros que os miúdos queiram ler.
Identifica-se com a posição de Nuno Crato sobre a educação nacional?
Não me identifico, partilhamos as mesmas ideias, somos companheiros no mesmo combate. Defendo desde há muito, como ele defende, por exemplo, um regime intensivo de exames, recurso indispensável para mudar o sistema educativo (responsabilizar os estudantes, pais, professores direcção das escolas, ministério). Mas não foi por defendermos, de um modo geral, as mesmas ideias que publiquei os livros de Nuno Crato. Editamos as obras que veiculam ideias que entendo ser relevante conhecer e discutir, sem que tenha, evidentemente, de me identificar com elas.
Como é que explica o sucesso do livro sobre o “eduquês”?
Eu e o Nuno Crato falámos para milhares de professores durante os últimos anos. Os professores começaram a perceber o logro de que têm sido vítimas. Não só os professores, também os alunos mais esclarecidos e responsáveis.
Que logro é esse?
O logro do facilitismo, de se considerar, hipocritamente, aliás, que as desigualdades diminuem com o nivelamento por baixo, da falta de exigência, a ideia de que a escola é uma brincadeira, e não um esforço pelo qual tem que se passar para se poder progredir pessoal e socialmente. O logro do conjunto de teorias que temos designado pelo termo «eduquês», que, agora, toda a gente percebe o que é e considero estarem hoje, com a actual ministra (melhor, com o actual ministério, porque a ministra me parece não perceber muito bem o que anda a fazer) -- mais à solta do que nunca.
O problema é do ministério ou é antes dos ministros?
Há o secretário de estado e esta nomenclatura que domina o ministério e continua a impor-se aos ministros. Uma espécie de União Nacional dos «especialistas» a lutarem para manter o poder e o emprego. Apesar da aparência que está a iludir muito boa gente, a actual ministra identifica-se com eles ou, ignorantemente, serve-os, como transparece mesmo de afirmações que vai fazendo. Parecendo que está a mexer em tudo, não tocou em nada do que era essencial ser alterado: a ideologia que sufoca a escola, frusta o trabalho dos professores, corrói e inviabiliza o país.
Há uma identificação ou subordinação da ministra à nomenclatura como nunca se verificou antes. Marçal Grilo, Oliveira Martins e Júlio Pedrosa, este na sua passagem muito breve pelo ministério, não varreram o "eduquês", mas a sua estatura intelectual e académica, experiência profissional, espírito crítico e sensatez permitiram-lhes travar as manifestações mais delirantes da praga.
Tem então uma visão céptica do futuro da educação...
Vai ter de mudar e eu esperava que isso acontecesse com José Sócrates. Não é possível adiar mais e ele percebe seguramente onde está a essência do problema.... Os próximos resultados vão ser piores e José Sócrates sabe que não há desenvolvimento nem diminuição das desigualdades sem outra escola, um ensino que desafie alunos e professores, que qualifique e forme, que leve todos tão longe quanto possível.
E que eco enontra nos alunos e nos professores?
Estive em Leiria com o Nuno Crato e o Carlos Fiolhais, que também está envolvido neste combate. Eram mais de 200 alunos do 12º ano e dos primeiros anos do ensino superior. Fiz-lhes uma pergunta, a pergunta mais importante que poderiam fazer a si próprios: porque são os piores alunos da União Europeia? Compreenderam como têm sido vitimas de uma ideologia cretinizadora, que se implantou no sistema educativo por ser fácil e «útil» para muita gente: para eles próprios, para os pais, para os maus professores e para o ministério, por nada exigir a ninguém. Foi uma sessão inesquecível que terminou com a consciência empolgante do que está em causa. Sejam exigentes, pedimos-lhes, exijam a mudança. Aplaudiram de pé.
Talvez por isso, o debate com 300 professores para que tinha sido convidado insistentemente pela vereadora socialista da Câmara de Torres Novas marcado para uns dias depois teve de ser desmarcado. É que esses professores foram convocados oficialmente, para esse dia à mesma hora, para uma acção de formação, com presença obrigatória.
Um mês antes, a presença combinada de Nuno Crato num debate no Politécnico de Leiria fora vetada por um dos grupos participantes. E há mais. A besta totalitária, tal como Umberto Eco a apresenta num livro belíssimo, Cinco Escritos Morais (Difel), continua entre nós.
Se os nossos jovens não são menos dotados geneticamente do que os outros, qual é o problema?
Os nossos jovens não são menos dotados à partida do que os outros. Há muitas manifestações da qualidade da nossa gente, não há povos menos inteligentes do que os outros. O que falta na nossa escola é alma Faltam grandes desafios aos professores, aos alunos e mesmo aos pais.
A Gradiva além da ciência já apostou na ficção científica...
Foi um fracasso, também temos alguns... Um amigo, que aprecio muito, o João Barreiros, louco por ficção científica levou-me a fazer uma colecção muito bonita, cartonada, com excelentes tradutores, excelentes livros, mas eram livros para meia dúzia de leitores, e não nos podíamos dar ao luxo de fazer isso naquela época. Tenho muita pena, espero um dia ter outra oportunidade.
A boa ficção científica contribui para a promoção da cultura científica e fazer uma boa colecção é sempre um projecto que dá prazer a um editor. O Contacto de Carl Sagan suscitou a investigação à volta da questão do que se designa por «buracos de vermes». Contou igualmente o meu interesse pelo género de que fui na juventude leitor entusiasta. Devorei os livros da belíssima colecção «Argonauta» do grande editor Sousa Pinto, fundador da Livros do Brasil, leitura que contribuiu também para a minha formação intelectual e para o interesse pela ciência. O que o João Barreiros fez foi acordar esse meu interesse, mas a colecção não era viável, como ele percebeu. Havendo outros editores a praticar o género, decidimos acabar.
E os autores portugueses estão ao nível dos estrangeiros?
Não estão longe, certamente. Ainda não temos muitos, apesar do nosso desejo em os motivar, mas teremos cada vez mais e alguns muito interessantes. A dificuldade em conseguir publicá-los no estrangeiro residirá no facto de Portugal não ser ainda visto como um produtor de conhecimento científico, e da produção internacional, particularmente no mundo anglo-saxónico ser enorme. Mas o trabalho brilhante que está a ser desenvolvido por jovens cientistas portugueses no estrangeiro e, cada vez mais, também entre nós, vai contribuir seguramente para que se comece a reparar nos nossos autores do género. De qualquer modo Carlos Fiolhais está já editado no Brasil, tem surgido interesse de editores franceses pelos livros de Jorge Buescu e um dos livros de Nuno Crato foi-nos solicitado por um editor grego e outro norte-americano. Existem boas perspectivas de uma edição de João Lobo Antunes nos Estados Unidos -- é um grande autor em qualquer latitude.
Autores como Sagan, Dawkins, Hawking, vendem bem entre nós?
Sim, muito bem. Sagan é o autor emblemático da Gradiva. Cosmos -- uma obra admirável, imperecível, tão actual com antes nas suas mensagens essenciais (porque não volta a RTP a passar a série, a nova cópia da série? Seria um contributo singular para a educação dos portugueses) -- despertou também em Portugal inúmeras vocações. Vamos editar em Setembro, nos dez anos da sua morte, um livro inédito, agora lançado nos Estados Unidos.
É o editor do Calvin e Hobbes. Tem apostado na banda desenhada...
Calvin, Zits, os cartoons são um sucesso e Gradiva domina esse sector. Quanto à edição de banda desenhada é um antigo sonho meu. Como disse, comecei a ler com ela e os meus valores são os dos heróis da banda desenhada. É por isso que continuo, teimosamente., talvez ingenuamente, a pensar que a justiça, o bem e a verdade, acabam sempre por vencer. Mas não há público para a banda desenhada, pelo menos para a que gostaria de editar. Confirmei esta minha avaliação com a edição de Largo Winch, que considero uma da mais interessantes produções da escola franco-belga, um thriller muito bem construído e desenhado no ambiente da concorência entre grandes empresas.
Mas o maior sonho era editar toda a série do Príncipe Valente, com a qual cresci. Não o consegui, mas tenho, agora, pelo menos, a consolação de ver a Gradiva distribuir a obra, editada por uma das tais editoras de «vão de escada», a Livros de Papel, dirigida por José Vilela. Os álbuns são preparados por um homem incrível, Manuel Caldas, um especialista e admirador apaixonado da obra de Harold Foster, que dedica horas e horas a recuperar as tiras realizando a que é seguramente a melhor edição de sempre, em todo o mundo, do Príncipe Valente.
José Rodrigues dos Santos é hoje a jóia da coroa da Gradiva?
A nossa coroa só tem jóias... O José Rodrigues dos Santos é um autor que gostei muito de encontrar e que publicamos com um grande entusiasmo e empenho. Porque é autor de um género de literatura que existe muito pouco e faz muita falta em Portugal e que tem muitos méritos. É um livro que as pessoas lêem, bem escrito, uma narrativa escorreita. Não conheço autor português contemporâneo que tenha a capacidade narrativa de construção de cenários que encontramos nos livros de José Rodrigues dos Santos. As suas obras veiculam muita informação interessante e enriquecedora, prendem, agarram vários tipos leitores. Hoje mesmo, entrei num táxi e vi que o motorista tinha um livro na consola do carro, ao seu lado... A Fórmula de Deus. Estava triste, disse-me, por estar a chegar ao fim do livro, que fora lendo em todas a paragens. Queria mais. A minha filha, uma leitora compulsiva desde criança ( tenho de agradecer à Isabel Alçada, à Ana Maria Magalhães e, claro ao meu bom amigo Severino Coelho, com a sua colecção «Uma Aventura», na Caminho) manifestou um dia o mesmo sentimento quando terminava a sua primeira leitura de O Conde de Monte Cristo. É curioso que Eduardo Lourenço, que terá lido o Codex 632 com gosto, me tenha referido o José Rodrigues dos Santos como um Alexandre Dumas português...
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12 comentários:
Aproveito esta entrevista para manifestar a minha emoção de gratidão a Guilherme Valente e seus colaboradores, por quanto contribuiram para a felicidade de uma boa parte da minha vida.
Fernando Dias
Obrigado ao Rerum Natura pela entrevista. É uma ideia firme, a de Guilherme Valente! É pelos livros que também educamos.A Gradiva é um tesouro que gosto de partilhar com os meus alunos.Sem ela, tudo isto era mais pobre.
Abraço
Rolando Almeida
É uma boa entrevista de um Senhor a quem a Ciência e a Divulgação Científica deve muito no nosso País...!
E, já agora, quem a fez...?
Bom artigo e bela entrevista, sim.
Mas por que razão a Gradiva ainda não publicou nenhum dos vários livros de Amit Goswami, o físico quêntico de origem indiana e professor na Universidade de Oregon?
Trata-se de uma visão diferente e bem ousada, porque não materialista, da ciência e, naturalmente, esta também vive do confronto de novas ideias e visões do mundo. Se todos afinarem pelo mesmo diapasão e formularem as mesmas hipóteses para responder às mesmas dúvidas, dificilmente temos aquilo a que se chama ciência viva, mas apenas um mero sucedâneo da religião - dogmas de fé num paradigma único - e nada mais.
Tratando-se de um autor controverso e inovador no panorama científico, Goswami tem, contudo, um estilo de escrita bem didáctico, ainda que a sua leitura exija algum mínimo conhecimento das noções básicas da nova física quântica e também, de preferência, alguma familariedade com a moderna pesquisa científica no campo dos fenómenos mentais e da consciência.
Que eu saiba, ainda nenhuma editora portuguesa publicou qualquer um dos seus 6 livros, se bem que alguns tenham sido traduzidos em brasileiro, como é o caso da sua obra emblemática "O Universo Autoconsciente" e também o mais recente "A Janela Visionária", onde o notável físico explica por que razão a realidade da consciência - e não a da matéria - é a única base do ser.
Logo, aqui fica o desafio para que a Gradiva não se deixe em breve ultrapassar por qualquer outra editora de menor prestígio e rigor científico, na divulgação de um cientista que, em minha opinião, poderá muito bem mudar o curso da história científica, ao inaugurar o novo paradigma de uma ciência idealista e não mais materialista.
Porque a hipótese por Laplace descartada, tal como a bíblica pedra rejeitada, regressa agora para fundamentar o único alicerce de toda a ciência válida: a Consciência é o vero fundamento da realidade fenomenal, a origem e o motor do universo material!
Yes, these are really great news...
Rui leprechaun
(...and not just for a chosen few! :))
Excelente entrevista. Abriu-me a porta para conhecer por dentro uma casa que já faz parte da minha rua há muito tempo: a Gradiva.
Tirei notas de muitos tópicos interessantes: desde os livros citados à magna questão do "eduquês", que outros apelidaram de "Pedabobogia"...
Pela oportunidade e pertinência, este blogue é de leitura diária para mim
Vim aqui ter pela mão de uma amigo!
Abençoada hora!!!!
Este blog vai ser, a partir de agora, uma das minhas preferências!!!
E a entrevista a Guilherme Valente deveria ser colocada em outdoor junto a todas as escolas deste País!!!
Obrigada, por ter tido a oportunidade de ler algo tão necessário, tão evidente, para todos que trabalham com jovens...e que apenas os néscios que ocupam o Ministério dito da Educação, não vêem!!!!
Fui eu que pedi uma entrevista ao Guilherme Valente para publicar neste blog, e ele enviou este texto que tinha inédito. A entrevista foi editada por mim e acaba agora de ser revista pelo próprio, tendo apenas havido mudanças de pormenor.
Carlos Fiolhais
Este senhor é fantástico!
Fiquei apaixonada pela forma como conversa.
Formidável.
Apenas tenho 28 anos, tenho o 12º ano de escolaridade, não fui mais longe por minha própria culpa, só tenho pena quando devia ter estado atento a palavras como as proferidas pelo Sr Guilherme Valente a minha mente estar "adormecida" estou convicto que o estado da nossa educação tem que mudar e vou fazer os possíveis e impossíveis para que o meu filho não cometa os mesmos erros que cometi, é uma obrigação minha(de todos nós). como o sr Guilherme disse no plano inclinado não é problema de esquerda ou de direita É PROBLEMA NOSSO!
http://dererummundi.blogspot.com/2007/04/entrevista-guilherme-valente.html
Que pena não ter tido a sorte de trabalhar numa editora que consegue sobreviver (e bem!)aos grandes grupos... Admirável!...
M. Magalhães
Alicerce em dever cumprido!
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