sexta-feira, 13 de abril de 2007

O que diria Alexander von Humboldt?

Chegou-me às mãos um livro publicado entre nós em 2006, que foi financiado pelo Fundo Social Europeu, Governo da República Portuguesa e POFDS, sobre as “competências transversais” que os sujeitos devem evidenciar à saída dum determinado nível de ensino. De entre essas competências, que são quarenta e uma, e estão devidamente arrumadas numa grelha, detive-me, mais ou menos ao acaso, em meia dúzia delas. Pedia ao leitor que as lesse com atenção:
“Comunicação oral”, definida como “transmitir informação a outras pessoas de forma eficaz. Capacidade para comunicar informação e ideias através da fala, de forma a que os outros compreendam”;
“Comunicação escrita”, definida como “escrever de forma eficaz de forma a que os destinatários da escrita compreendam a mensagem. Capacidade para comunicar informação e ideias através da escrita, de forma a que os outros compreendam”;
“Numeracia”, definida como “capacidade para adicionar, subtrair multiplicar ou dividir rápida e correctamente (…)”;
“Autonomia”, definida como “capacidade para resolver problemas e enfrentar situações sem necessidade de perguntar a outras pessoas (…)”;
“Autocontrolo”, definida como “capacidade para controlar os seu afectos. Pensar antes de agir perante uma situação menos positiva (…)”.

Em jeito de adivinha, pergunto ao leitor: que nível de ensino está em causa? Não, não é o primeiro ciclo do Ensino Básico. Poderá parecer, mas não é. Nem se trata do seu segundo ou terceiro ciclos. E também não se trata do Ensino Secundário… Trata-se do Ensino Superior. Mais claramente: na perspectiva de empregadores e diplomados do nosso país, os diplomados do Ensino Superior devem evidenciar as competências acima referidas!

A incredulidade levou-me a consultar vários planos de estudo de cursos superiores, recentemente produzidos nas nossas Universidades, tendo percebido que as competências aí enunciadas são do mesmo teor. Encontro recorrentemente “adaptação à mudança”, “liderança”, “trabalho em grupo”, “aprender a aprender”, “persistência”, “motivação”, “desenvolvimento dos outros”, “gestão de conflitos”, “inovação”, “dominar estratégias de estudo”, “auto-afirmação”, “reflexão”, “aceitar e respeitar as ideias dos outros”, “conviver com a multiculturalidade”. Já o “saber” é difícil de encontrar nessa panóplia de designações e, quando surge, está quase sempre associado àquilo que se designa por “saber-fazer” e “saber-ser”.

Resta-me concluir que o “saber” tornou-se uma “competência” esquecida ou, pensando melhor, proscrita no e para o ensino superior?

Feita esta pergunta, era inevitável que, por contraste, me lembrasse da orientação que, no século XIX, Alexander von Humboldt, traçou para a Universidade, e na qual constava, como intenção primeira, o saber e a sua constante procura. Ainda que, como assinala Alain Renault, o golpe de génio deste alemão tivesse sido afirmar que a investigação e o saber dela decorrente, poderia apontar para uma finalidade prática, recusou que esta finalidade, traduzida em termos de utilidade profissional, pudesse ser o fim último da Universidade.

Lembro que esta ideia revolucionou e, em simultâneo, salvou a Universidade Ocidental, tendo permitido a algumas instituições atingirem a excelência que hoje se lhes reconhece. Mesmo aceitando a necessidade de, na actualidade, a revisitarmos de modo crítico nos pormenores que a concretizam, não devemos, pura e simplesmente, ignorá-la ou negá-la.

Não devemos, de facto. Mas não o estaremos já a fazer? Em lugar desta ideia “tradicional” não estará a despontar ou, mais do que isso, a instalar-se no seio da Universidade, uma lógica de carácter pós-moderno, assente no questionamento das “próprias concepções de racionalidade, verdade, objectividade e realidade que foram dadas como garantia do ensino superior, tal como têm sido dadas como garantias, em geral, da nossa civilização”. Estas palavras são de Jonh Searle que, num artigo de 1999, explica admiravelmente a convivência desarmoniosa, crispada, implícita, confusa entre duas subculturas que convivem paredes-meias.

Salienta este filósofo que o mais grave nessa convivência, não é que a primeira seja questionada - isso é inevitável e vantajoso -, mas sim o facto de não haver debate académico claro, razoável e sério sobre os fundamentos, a validade e as consequências de cada uma delas. Desta maneira, num ambiente intelectual difuso, por razões nem sempre descomprometidas com as forças políticas vigentes, é a ideia de Universidade como lugar de saber e da sua construção que sai a perder: vê-se afastada, ou pior do que isso, marginalizada, desprezada e relegada das decisões sobre o ensino superior.

Penso que será esta a conclusão que o leitor tirará se folhear o tal livro que me chegou às mãos e que, a seguir, se identifica.

Maria Helena Damião

Documentos referidos no texto:
Cabral-Cardoso, C; Estêvão, C.; Silva, P. (2006). Competências transversais dos diplomados do ensino superior: perspectivas dos empregadores e dos diplomados. Guimarães: TecMinho/Gabinete de Formação Contínua.
Renault, A. (1997). Universidade e cultura. Lisboa: Colibri/Faculdade de Letras de Letras da Universidade de Lisboa.
Searle, J. (1999). Racionalidade e realismo: o que está em jogo?. Disputatio 7 (November).

3 comentários:

Bruce Lóse disse...

O que diria Alexader von Humboldt não iremos saber, inquestionável é ver o esplendor da quarta classe salazarista a intumescer nas barbas do pandemónio. Foi como aluno que conheci duas universidades e é como "sujeito transversalmente competente" que tenho exercido em empresas de fôlego multinacional, por isso estou em condições de comparar o mercantilismo dos dois lados da barricada: é o mesmo. Pior do que o mercantilismo, decorrente da auto-preservação das licenciaturas e do rateio (regateio?) orçamental, julgo eu, é a síndroma do professor-trepador que, no conjunto dos professores-trepadores, subverte o universo de excelência e idoneidade que os seus colegas bloggers se propõem aqui recordar. Mas sou um pessimista. No ensino, como na escola, quanto mais velho é o dia maiores são as sombras (salvo a piroseira).

Anónimo disse...

A ideia da Universidade como lugar de saber está desde logo posta em causa pela forma de governação das universidades portuguesas herdada do PREC, a saber, as universidades são geridas em modelo de autogestão por uma "cooperativa" (amigável e cúmplice) de professores, estudantes (que no moderno jargão português são chamados "alunos", para serem adequadamente infantilizados) e funcionários não-docentes. Neste modelo autogestionário, no qual naturalmente o proprietário das universidades (o Estado) não está presente, porque abdicou do seu poder, o saber dá lugar às cumplicidades, aos arranjinhos e aos equilíbrios de poder.

Desde há muito que as universidades portuguesas deixaram de ser entendidas como lugares de saber para passarem a ser vistas como escolas de um nível um bocadinho mais elevado e nas quais os "alunos" (nome moderno para os estudantes) são já, supostamente, adultos. O financiamento das universidades é aliás assegurado em função do número dos seus "alunos", como é natural e próprio numa escola.

Luís Lavoura

Anónimo disse...

Gostaria de salientar um equívoco: O idealizador da concepção de Universidade moderna, ocidental, é o Wilhelm Von Humboldt (Filólogo, Diplomata e Filósofo), irmão do Alexander (naturalista).

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