terça-feira, 10 de abril de 2007

O ALQUIMISTA


Fez este ano dez anos que faleceu Rómulo de Carvalho. Permito-me, com esse pretexto, invocar (desde Edimburgo, no Festival Internacional de Ciência) a memória do grande Mestre, recuperando um texto que um dia publiquei no "Jornal de Letras":

Visitei há tempos o velho Liceu Pedro Nunes (chamo-lhe Liceu porque é mais simples e bonito do que escola secundária!). O Laboratório de Física impressiona como documento vivo de uma época. Nos armários estão arrumadíssimos instrumentos de Física, duma época anterior à electrónica e aos computadores mas muitos deles ainda funcionais e úteis. Encostados nas estantes, os manuais escondem entre as capas o seu saber de antanho mas eterno. Na parede, em letras garrafais, Luís de Camões adverte-nos sobre o valor da experiência. Esse foi o espaço onde durante muitos anos Rómulo de Carvalho professorou. Paira o seu espírito tanto nos utensílios que inventariou e manipulou em inúmeras demonstrações, nos livros que escreveu, e até, quiçá, na escolha da incrição mural do poeta.

Não tive a sorte de ser seu aluno e de ter assistido às experimentações de Física que ensinaram o funcionamento do mundo a gerações sucessivas. Habitei, adolescente, um laboratório no Liceu Normal de D.João III, um cenário de semelhantes prestidigitações científicas (segundo a lenda, existiu aí uma “esfera metade cobre, metade estanho e metade bronze”...). Mas sinto-me aluno do Mestre, tanto quanto se pode ser (e pode!) pelas interpostas pessoas dos livros. Não havendo esses livros, provavelmente não teria penetrado nos laboratórios universitários para decifrar com curiosidade alguns mistérios da Física, e, não havendo o seu exemplo de “vulgarizador”, alguém que torna vulgares as coisas mais invulgares e invulgares as coisas mais vulgares do universo, possivelmente não me teria atrevido a proselitar a ciência para toda a gente. Os pequenos livros da colecção “Ciência para Gente Nova”, da extinta editora Atlântida, revelaram ciência nova a gente pequena, numa prosa de tal frescura e elegância que deixou marca maior. Com eles, ficámos a gostar de ciência. A nova ciência de Curie, Rutherford e Bohr apareceu-nos aí acessível, o que constituía uma verdadeira vantagem já que as geringonças do laboratório, apesar de versáteis, não permitiam interrogar o átomo e os manuais escolares teimavam em permanecer desactualizados. A velha ciência, nomeadamente a ciência de Arquimedes, Galileu, Faraday apareceu-nos também aí desempoeirada, nítida e inteligente. Quem não conheça a “Física no Dia a Dia”, acorra à livraria ou hipermercado porque, sorte nossa!, existe enquanto não esgotar o volume (Relógio de Água, 1995).

Os mestres reconhecem-se pela difícil virtude da claridade, pela sageza de extrair a gema do essencial da ganga perturbadora em volta. As ciências físico-químicas têm, de facto, a reputação popular de ininteligibilidade e tédio mas Carvalho fez e faz essa fama parecer uma evidente injustiça.

Numa estrevista publicada na “Gazeta da Física”, Revista da Sociedade Portuguesa de Física (vol. 16, fasc.1, 1993), Rómulo de Carvalho expõe o truque da sua pedagogia: “Estimular é saber tirar proveito das coisas, saber encantar, digamos, pôr as coisas em relevo, mesmo as coisas insignificantes (...) Tornar pensáveis as coisas habituais que não se pensam”. É obra de verdadeira alquimia, ao alcance de muito poucos.

Carvalho fê-la, ao longo de longas décadas, com a perseverança e modéstia de um alquimista ignoto. No “Poema do Alquimista”, um dos “Poemas Póstumos” (1983), António Gedeão declara, intimista:

Eu não sou o Alquimista de Dusseldorf.
Eu não quero tudo.
Eu quero apenas,apenas transmutar esta chatice em flores.”

3 comentários:

Jorge Moniz disse...

Imprescindível é também o manual de história que ele fez para o próprio filho, escrito à máquina e desenhado a lápis de cor.

Cristina Gomes da Silva disse...

Imperdível!

António Almeida disse...

Não temos prestado as devidas homenagens ao Rómulo de Carvalho. Muitos de nós escolheram as ciências devido as seus PEQUENOS livros : a coleção "Ciência para Gente Nova" e os dois volumes de física para o povo, (caros amigos).
Aguardo ansiosamente a publicação das suas memórias. Espero também que o filho, Frederico de Carvalho, consiga obter aprovação do Ministério da Educação para publicar os livros inéditos que aí se encontram.
Da minha breve leitura de as "Lições de Física experimental", julgo que nos encontramos perante um livro não datado e que poderá proporcionar momentos agradáveis de conhecimento.

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