La verità sola fu figliola del tempo. (A verdade é filha do tempo), Leonardo da Vinci.
O post do Desidério sobre relativismo recordou-me Epicuro e a sua influência em Thomas More, o escritor e estadista inglês canonizado em 1935 como mártir da Igreja Católica em defesa da liberdade de pensamento e patrono dos políticos.
More foi lorde chanceler, o mais alto posto judicial em Inglaterra, de 1529 a 1532. More foi, porém, destituído do cargo de chanceler por ter discordado de Henrique VIII sobre a separação da Igreja inglesa da autoridade do Papa, tendo sido preso e decapitado em 1535.
A filosofia de More encontra-se claramente exposta no seu livro «Utopia» (o livro, escrito em 1516, foi recentemente reeditado pela Gulbenkian). Aí se apresenta uma sociedade ideal (segundo os padrões da época, na Utopia há escravos, pena de morte, castigos corporais e completa submissão das mulheres aos homens), com a tónica na justiça e igualdade para a maioria dos cidadãos. Igualmente inovador para a época foi o facto de More ter preconizado a tolerância religiosa. Com efeito, os habitantes da Utopia professam diferentes crenças, desde a adoração de forças da Natureza até a crença num único Deus. Todas as religiões são respeitadas, não existindo conflitos entre elas porque não há uma religião oficial do Estado, uma condição necessária (mas não suficiente) para a existência de tolerância religiosa.
Pouco conhecida é a influência que More recebeu de Epicuro, nomeadamente a nível da ética e do direito. Isto é, especialmente na Utopia, encontramos o retorno do epicurismo (e também da filosofia estóica) no sentido ético e do direito, temperados com contribuições platónicas - Platão era o filósofo favorito de More.
No entanto, ainda hoje «epicurismo» é considerado um termo pejorativo - um desregramento de costumes, como vem nos dicionários - embora nada possa estar mais longe da realidade epicurista que essa descrição. Ignorada por muitos, a moral epicurista preconiza a virtude, não um fim em si mesmo mas o meio de atingir a felicidade humana, sendo a justiça um instrumento indispensável na obtenção dessa felicidade. Assim, para Epicuro o direito deve prescrever as acções que propiciem a felicidade ao maior número de pessoas e penalizar aquelas que são prejudiciais ao bem estar colectivo.
A máxima de Epicuro, transmitida por Diógenes Laercio,«O direito natural é uma convenção utilitária feita com o objectivo de não se prejudicar mutuamente», afirma o carácter essencialmente mutável da justiça. Este carácter convencional que o epicurismo atribui à justiça, que poderia ser tomado como relativista, foi o percursor da teoria do contrato social. Isto é, o relativismo como entendido por Epicuro é o motor da construção de uma sociedade melhor e mais justa, não é o relativismo descrito pelo Desidério.
Como dizia recentemente Henri Peña-Ruiz, não se pode confundir «uma discussão livre com a generalização do relativismo: a distinção entre crença e conhecimento deve ser bem marcada, sob risco de se inaugurar um novo tipo de obscurantismo, ou de fazer a cama a novas tiranias.»
É esta distinção entre crença e conhecimento - distinção para que a redescoberta de Epicuro foi determinante e que está na base da nossa sociedade - que o pós-modernismo relativista esbate, propiciando o florescimento de fundamentalismos sortidos.
Para os interessados em explorar o epicurismo, o Desidério acaba de publicar na Crítica a apresentação de uma antologia de textos de Epicuro.
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7 comentários:
Cara Palmira
De facto, Tomás Moro, lutou pelo que de melhor a vida contém: a liberdade de pensamento! Das coisas mais belas que o mistério da vida transporta. Pena é que, nem sempre essa beleza seja partilhada, acarinhada e bem compreendida pelos nossos pares.
Como me dizia há dias, não temos que concordar com tudo o que os outros dizem, escrevem ou pensam. Devo dizer que, essa é para mim, também, a beleza da democracia que muitos esquecem quando estão em jogo outros interesses, sejam eles de natureza económica, política, ideológica ou até mesmo os egoisticamente pessoais. O facto de termos diferentes posturas em relação a questões diferentes, é acima de tudo, do meu ponto de vista, enriquecedor. As diferenças e a diversidade são um dom maravilhoso de complementaridade se conseguirmos construir verdadeiras pontes de tolerância. A colaboração entre as partes, é imperativa para conseguirmos alcançar esse objectivo comum, que deveria ser (como me disse há dias)"tornar o nosso um país melhor". Mia Couto (2005) fala dessa necessidade. Diz o autor que o maior empobrecimento de um país "provém da falta de ideias, da erosão da criatividade e da ausência de debate produtivo. Mais do que pobres, tornamo-nos inférteis".
Coitado do Tomás Moro e de muitos "Moros" que por aí andam e que são coerentes e zelam pela verdade... de amigos, passam a inimigos, isto se, naturalmente, discordarem das suas ideias. A tolerância é um valor muito proferido nos discursos e pouco exercitado.
Vejamos: T. Moro, aos olhos de Henrique VIII, foi-lhe reconhecida a sua competência como hábil jurista, também o prestígio e a fama de incorruptibilidade de que gozava em toda a Inglaterra. Diriamos em linguagem actual, era um profissional exemplar. Mas porque era justo, exigente e rigoroso em tudo o que fazia, nomeadamente na procura da verdade, valeu-lhe alguns dissabores.
É estranho que derrepente o Rei tenha mudado de opinião acerca de Moro. Deixaria Moro de ser bom profissional? Claro que não. Diria antes: Há verdades inconvenientes...
Admiro a coragem de T. Moro, em todo o seu desempenho e actuação perante o Rei (que por ser Rei não é infalível, erra e por isso deve ser corrigido). Mas como o parecer de Moro sobre a questão do divórcio era de que o Rei não tinha razão... começava a sua desgraça (de Tomás Moro, claro).
Tantos Moros por aí...
"Veritas filia temporis", é uma frase de Aulo Gélio, nas Noites Áticas.
Da Vinci deixou-nos muitas coisas boas, mas não essa frase.
Cara Fátima:
Mais uma vez de acordo :-)
Cara Rita:
Tem razão, Leonardo da Vinci apenas popularizou o aforismo que normalmente é-lhe atribuído.
Leonardo
Frank Zollner
Taschen
Edição do "PÚBLICO" 2004
Cap.:"Leonardo da Vinci: Vida e Obra":
"1476 Em Abril, Leornardo é anonimamente acusado de práticas homosexuais (sodomia) com o assistente de pintura de dezassete anos, Jacopo Saltarelli, que aparentemente era conhecido pelas referidas práticas. Embora a acusação tenha sido repetida em Junho de 1476, nunca houve nenhuma acusação formal - sem dúvida, por falta de provas."
Ontem como hoje, o rapazito é que era o culpado. Provas contra o Senhor nunca existiam. Ai! Casa Pia, Casa Pia!
Acho no mínimo estranho no mesmo blogue citar-se "«uma discussão livre com a generalização do relativismo: a distinção entre crença e conhecimento deve ser bem marcada, sob risco de se inaugurar um novo tipo de obscurantismo, ou de fazer a cama a novas tiranias.»"
e depois apresentar uma ideia de crença como verdade razão de liberdade e sempre contingente de uma evolução selectiva que é prefilhada por Daniel Dennett no video abaixo.
A tolerância traz implícita uma necessidade de aprendizagem, de instrução e não vamos ficar à espera que os nossos alunos aprendam por si a ser tolerantes. Essa ideia peregrina que anda por aí de que as crianças e os adolescentes é que devem escolher os seus próprios valores, é bem perigosa. Enquanto vivermos nesta ilusão arrogante de que a nossa opinião é que conta ou, mais grave, enquanto dermos às crianças e jovens a ilusão arrogante de que a sua opinião é que conta, apesar dessa opinião estar assente em nada, não vamos longe...
Qualquer leigo em questões de educação, numa leitura atenta aos documentos curriculares mais recentes (Cf. LBSE-Lei nº46/86 e DL nº6/2001) verá as ideias repassadas: (1) todos os valores são relativos, construídos, subjectivos, equivalentes; (2) os alunos possuem capacidade de auto-orientação no plano axiológico; (3) a escola não pode impor valores particulares, deve respeitar a liberdade de escolha.
A relativização dos valores é falaciosa... Por esta porta podem entrar muitos outros males… entre eles a (in)tolerância.
Há valores absolutos e universais. Neste momento, a Declaração Universal dos Direitos do Homem reúne um valioso tesouro que a Humanidade conquistou ao longo dos tempos. Podem ser melhorados, acrescentados… mas é um crime apagá-los da memória, sob o risco de voltarmos à barbárie. É preciso que a escola instrua nesses valores. Se o não fizer, é uma falha grave. Não há mal nenhum em transmitir conhecimentos, não há mal nenhum em direccionar os interesses dos alunos e não há mal nenhum em levar os alunos a assumirem valores universais.
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