Meu texto para o jornal escolar «O Mocho" das escolas de Canas de Senhorim (curiosamente colaborei com um jornal com o mesmo nome no meu tempo de Faculdade em Coimbra):
Se há um livro de ciência que resisto bem o tempo é Cosmos, do astrofísico norte-americano e divulgador científico Carl Sagan, professor na Universidade de Cornell.
Saído no original inglês em 1980 e traduzido em português em 1984 como um
dos primeiros títulos da colecção «Ciência Aberta» da Gradiva. Há várias
edições, que tiveram muitos leitores. Tenho num lugar especial da minha
biblioteca a edição portuguesa de grande formato e ricamente ilustrada que a Gradiva
publicou em 2001, que tem um prefácio especialmente escrito para a edição
portuguesa de Ann Druyan, a viúva do autor, que tinha falecido em 1996. O livro
foi um grande êxito internacional tal como a série televisiva, baseada no conteúdo
do livro em 13 episódios, emitida pela PBS, a televisão pública dos EUA, e
retransmitida entre nós pela RTP (existe uma edição em DVD e podem-se encontrar
os episódios no Youtube). Portanto, livros impressos e séries audiovisuais
podem não ser inimigos, mas antes companheiros.
O livro de Sagan é muito abrangente. Trata de tudo, como o título promete.
O cap. 1 («As Costas do Oceano Cósmico», isto é, a superfície do nosso planeta)
começa assim: «O Cosmos é tudo o que existe, existiu ou existirá. A mais
insignificante contemplação do cosmos emociona-nos, provoca um arrepio,
embarga-nos a voz, causa-nos a sensação suave de uma recordação distante. Sabemos
que nos estamos a aproximar do maior de todos os mistérios.» Se é certo que o
Cosmos, ou Universo, é um grande mistério, não é menos certo que temos desvendado
várias facetas dele. Por exemplo, sabemos hoje que teve um início há 14 mil milhões
de anos e que tem evoluído. Há 3,5 mil milhões de anos surgiu a vida na Terra. Não sabemos como é que a vida surgiu, mas
sabemos que os núcleos de carbono, o elemento químico que está na base da vida,
foram fabricados no interior de estrelas, que depois explodiram. Há uns seis
milhões anos apareceram os primeiros hominídeos. E, há cerca de 300 mil anos,
surgiu em Africa a nossa espécie, o Homo sapiens, a única espécie capaz
de penetrar nos mistérios cósmicos. O livro, em 13 capítulos, tantos quantos os
episódios da série, é um excelente resumo do que sabemos sobre o Cosmos.
De todos os capítulos destaco o 11 («A
persistência da memória»), no qual o autor nos transmite que, quando a informação
no genoma deixou de ser suficiente para o funcionamento dos seres vivos, a evolução
«inventou» cérebros, capazes de guardar e processar informação. A nossa espécie
tem o cérebro mais desenvolvido de todos os animais que o possuem. Foi ela que,
há cerca de dez mil anos, começou a armazenar informação fora do seu corpo,
primeiro em pedras, ossos ou madeiras e depois em papiros e papel. Os livros em
papel impresso surgiram primeiro na China por volta do século VIII, mas, tendo o
papel aparecido cedo na Europa graças à intermediação dos árabes, foi preciso
esperar pelo século XV para a impressão em papel ser reinventada no Velho
Continente. Os livros espalharam-se então rapidamente pela Europa e pelo mundo e,
nos séculos XVI e XVII, ajudaram à difusão do método científico, o modo que criámos
para interpelar o Cosmos. Hoje, graças à ciência e tecnologia, dispomos de uma
gigantesca biblioteca digital, a Internet. A história humana e a história
cultural estão, nesta obra de Sagan, integradas na grande história cósmica.
No cap. 13 («Quem pode salvar a Terra?), o autor fala dois prejuízos que temos
causado ao nosso planeta. E chama a atenção para a nossa responsabilidade.
Repare-se no modo eloquente como terminar: «Somos a encarnação local de um
Cosmos que toma consciência de si próprio. Começámos a contemplar as nossas
origens: pó de estrelas meditando acerca das estrelas; ajuntamentos organizados
de dez mil biliões de biliões de átomos analisando a evolução dos átomos;
descobrindo a longa caminhada através que, pelo menos para nós, levou ao
aparecimento da consciência. Devemos a nossa lealdade às espécies e ao nosso planeta.
Somos nós que nos responsabilizamos pela Terra. Devemos a nossa obrigação de
sobreviver não só a nós próprios, mas ao Cosmos, vasto e antigo, de onde
despontámos.» É um belo final de um belo livro, que nos fala do mundo e do
nosso lugar nele. O público menos jovem vai gostar de o reler e o mais jovem de
o ler.
Carlos Fiolhais
Professor emérito de Física da Universidade de Coimbra
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