Meu texto para o livro «Desinstalação do Medo», publicado pelo Festiva Literário da Lousã - Maratonas da Leitura, que este ano versou precisamente o medo.
O medo é a coisa mais natural do mundo. É um mecanismo evolucionário que propicia a sobrevivência, em situações de «lutar ou fugir» («fight-or-flight»). Os nossos antepassados tiveram medo em situações de perigo, tendo lutado e vencido, ou fugido, protegendo-se. Somos descendentes daqueles que, enfrentando o medo de uma maneira ou de outra, adquiriram valiosas experiências que transmitiram a outros.
A curiosidade, que consiste em enfrentar o desconhecido, é também a coisa
mais natural do mundo. Em muitos casos, os nossos antepassados deixaram a
curiosidade vencer o medo, tendo assim feito descobertas. Um exemplo famoso
ocorreu com o genial polímata italiano Leonardo da Vinci. Foi uma experiência
de infância marcante que o próprio relata num dos seus livros de anotações (o Codex
Arundel), guardado na British Library, em
Londres, num excerto escrito por volta de 1480, quando tinhs menos de 30 anos.
Costumando ele passear em criança por montes da Toscânia, encontrou um dia a
abertura de uma caverna. Há, de factos grutas perto de Anchiano, na comuna de
Vinci, província de Florença, onde nasceu, como filho ilegítimo de um notário
florentino e de uma jovem camponesa provavelmente ex-escrava. Atentemos no seu
depoimento: «Tendo vagueado entre rochas salientes, cheguei à entrada de uma
grande caverna, em cuja entrada fiquei parado algum tempo, espantado. Avançando
e recuando, tentei enxergar alguma coisa lá dentro, mas a escuridão impedia
qualquer visão. Subitamente, fui assaltado por duas emoções contrárias, medo e
curiosidade – medo da ameaçadora gruta escura e desejo de ver se existia alguma
coisa maravilhosa lá dentro».
A curiosidade venceu o medo. No pequeno Leonardo já existia a curiosidade
que se manifestou prodigamente ao longo da vida. E ele foi recompensado: o
rapaz encontrou o que diz ser um fóssil de baleia nas paredes da caverna.
Leonardo escreve, num discurso dirigido à baleia: «Oh, quantos cardumes
aterrorizados de golfinhos e grandes atuns fugiram diante da tua fúria
insensível, enquanto açoitaste com barbatanas velozes e ramificadas e a tua
cauda bifurcada, criando no mar tempestades que açoitavam e submergiam navios.»
Continua, num tom filosófico: «Ó tempo, veloz destruidor de todas as coisas,
quantos reis, quantas nações desfizeste? Quantas mudanças de estado e de
circunstâncias se seguiram desde que este maravilhoso peixe [sic]
ocorreu aqui neste recesso sinuoso e cavernoso? Agora, desfeito pelo tempo, jaz
pacientemente neste lugar fechado, com os ossos despojados e nus, servindo de
armadura para a montanha colocada sobre ti».
Esta divagação sobre a História Natural reconhece o papel, avant la
lettre, do fenómeno da evolução. Tal reconhecimento é corroborado pelos seus
vários desenhos de fósseis nas páginas do Codex. Há quem diga que o
relato reminiscente da infância é uma invenção do artista. Mas são mais os que
defendem que se tratou de uma experiência real, uma descoberta precursora das
muitas outras que, em adulto, fez na Natureza, com o seu apurado poder de
observação, e que sublimou nalgumas das suas obras de arte. Entre os seus
quadros, está uma representação de São Jerónimo à entrada de uma caverna,
começada, embora não acabada, também cerca de 1480.
Sem poder apresentar meios de prova, prefiro a segunda hipótese. Certas
experiências da infância marcam-nos para o resto da vida, podendo mesmo ser
traumatizantes. Como já alguém disse: «O que se
passa na infância não fica na infância». Por exemplo, o medo do escuro, semelhante ao de Leonardo à entrada da gruta, pode
ficar para a vida adulta como uma fobia (o nome científico é «nictofobia»). É
absolutamente natural ter medo do escuro em criança, pois é bom recear o que
não vemos e que, por isso, nos é desconhecido. A caverna é, de resto, uma boa
metáfora para o desconhecido (basta pensar na caverna de Platão). Uma cavidade natural
pode ser um lugar perigoso: por exemplo, o escuro pode esconder um poço de
grande profundidade; ou pode ocultar um animal que nos pode atacar ou mesmo
comer; ou pode ainda encobrir um ser humano hostil. De facto, na cultura de
vários povos, incluindo os dois povos ibéricos, existe o mito do bicho ou
figura humana que ataca crianças no escuro, chegando ao ponto de as comer. As
histórias desse «bicho-papão» incutem o medo nos petizes, levando a que estes
aceitem certas interdições: «Se não te portares bem, vem aí o papão.» O medo é
um poderoso dispositivo disciplinador. Por outras palavras, as culturas
inventaram meios de instalar alguns medos.
O medo é uma resposta instintiva, emocional e fisiológica, a uma ameaça,
que partilhamos com outros animais. Charles Darwin, no seu livro As Emoções
nos Animais e nos Homens, publicado em 1872, teve a sagacidade de
notar que as emoções conferem expressões faciais e corporais semelhantes em
humanos e outros animais, principalmente primatas, os nossos primos mais
próximos na árvore da vida. Por exemplo, o medo
arregala os olhos e altera o ritmo cardíaco. Darwin fala de seis emoções
básicas comuns em várias espécies, que ainda hoje são assim consideradas: além
do medo, a felicidade, tristeza, raiva, surpresa e nojo. Bom observador, o
naturalista enfatiza a importância da comunicação de emoções para o
desenvolvimento infantil. Aprendemos emoções antes mesmo das primeiras falas e
das primeiras letras.
O medo tem, portanto, uma parte genética e outra aprendida. Na educação,
tanto em casa como na escola, ensinaram-nos a ter medo, em versões variadas do
bicho papão, mais suaves ou mais duras. Mas, através da educação, também nos
ensinam a não ter medo, contrariando os instintos biológicos mais básicos. O
medo paralisa-nos, tolhe-nos, dificulta-nos a curiosidade, impede-nos a
descoberta. A história de Leonardo ensina-nos a não ter medo se queremos
encontrar fósseis e imaginar o passado. Pessoalmente sei do que Leonardo fala,
pois fui espeleólogo em jovem e, com uma luz eléctrica
no capacete, encontrei não só restos de animais como provas de ocupação humana
remota, mas, sobretudo, um mundo encantado no interior da Terra, totalmente
insuspeito do exterior, repleto de estalactites e estalagmites. Nesse mundo
voam morcegos, uma espécie de ratos alados que vêem
com os ouvidos. São seres extraordinários, cuja
adaptação ao ambiente foi garantida pela evolução. Nas profundezas escuras das
grutas podemos até encontrar «santuários» de obras de arte rupestre, feitas por
homens pré-históricos, como por exemplo na bela Caverna de Chauvet, em Ardèche,
no Sul de França.
Não são só as crianças que têm medo. Também os adultos o têm, ou porque não
conseguiram ultrapassar os traumas da infância ou porque viveram depois novos
traumas. Sendo o medo uma reacção natural a um perigo, real ou percebido, a que
ninguém escapa completamente, já a fobia é um transtorno de saúde caracterizado
por um medo excessivo e irracional de alguma coisa, que impede a vida normal,
através da ansiedade permanente. Há quem tenha medo de aranhas (aracnofobia) e
há quem tenha medo das cobras (ofidiofobia). Há quem tenha medo das alturas
(acrofobia) e há quem tenha medo dos espaços apertados (claustrofobia). Há quem
tenha medo de estar sozinho (autofonia) e há quem tenha medo das multidões
(xenofobia). Há quem tenha medo de voar (aerofobia) e há quem tenha medo da
água (hidrofobia). Há ainda quem tenha medo de falar em público (glossofobia) e
quem tenha medo de falhar nos exames (uma das formas de cacorrafiofobia, um
nome estranhíssimo!). O catálogo de medos é longo e tanto psiquiatras como
psicólogos conhecem maneiras de eliminar ou mitigar muitos deles. Há, para além
de todos os outros, o medo da morte. Tendemos a ignorar a morte, para afastar
esse medo.
Muitos medos são partilhados por uma comunidade. Cada sociedade tem os seus
medos e também as suas fobias. Os medos colectivos têm evoluído ao longo dos
tempos. Por exemplo, desde que, em 1945, explodiu a primeira bomba atómica em
Hiroxima, passou a haver o medo de guerra nuclear, um espectro que ainda não
passou apesar de há muito ter acabado a guerra fria. É uma moderna versão do
fim do mundo. Mas há fins do mundo menos repentinos,
como é o caso das alterações climáticas do nosso planeta devido à queima por
mão humana de demasiados combustíveis fosseis, ou o perigo, mais hipotético do
que real, de uma «Inteligência Artificial Geral» que tornaria os humanos
dispensáveis. Este mito, que dá pelo nome de «singularidade» – a entrada numa
era transumana – não passa de mais uma versão do mito da criatura que acaba por
destruir o criador, muito bem retratado no romance Frankenstein, da
inglesa Mary Shelley, escrito em 1818 (tinha ela 18 anos) à beira de um lago
suíço num tempo de clima alterado pela explosão de um vulcão na Indonésia. O
Doutor Frankenstein cria um monstro, sem nome, que só se torna perigoso porque
não é bem acolhido pela comunidade humana. O homem tem medo do homem, porque
sabe que os humanos podem ser agressivos. O filósofo inglês do século XVII Thomas
Hobbes disse que «o homem é o lobo do homem.» E, em geral, um ser humano tem
mais medo dos seres humanos que, na aparêbciua, se distinguem mais dele. A
alteridade sempre espoletou desordem.
Uma moderna versão do Frankenstein provém da edição genérica. Técnicas já
existentes permitem, de facto, criar o que podemos chamar super-humanos, isto
é, seres que resistem a doenças ou têm poderes especiais como certoa super-heróis.
Como no caso do conflito nuclear e da inteligência artificial, também no caso
da biomedicina tem de haver princípios éticos e legais que limitem a acção
humana. A ciência e a tecnologia dizem o que podemos fazer, mas tem de ser a
sociedade a decidir o que se deve fazer. Como afirmou no século XVI o médico,
padre e escritor francês François Rabelais, «ciência sem consciência é ruína de
alma».
O medo é um grande mestre da vida. Sem uma história de medos não estaríamos
no patamar da «escada da vida» onde estamos. O medo das alturas é comum a todos
os mamíferos que não voam. O medo das serpentes é comum a todos os símios, que
são atacados por elas. O medo dos ratos ou de insectos é característico de
humanos e pode ter aparecido só com a Revolução do Neolítico quando ocorreu a
sedentarização e se verificou que esses animais eram inimigos das culturas
agrícolas. Surgido na história evolutiva, o medo é, nas sociedades humanas,
moldado pelas civilizações.
Muitos medos são absolutamente irracionais, como o moderno medo das
vacinas. Não falta quem diga, nestes tempos após a pandemia da covid-19, que as
modernas vacinas de ARN colocam chips no nosso corpo para nos controlar.
Este, como outros, é um medo do desconhecido:
tem-se sempre medo do que se ignora. A ciência, porém, elimina o desconhecido,
ilumina o escuro, faz-nos ver que não há nenhum bicho-papão ou, se acaso há algo que mereça esse nome, o modo de o evitar ou
destruir. Uma boa metáfora, usada pelo astrofísico e divulgador de ciência
norte-americano Carl Sagan, mas bem mais antiga do que ele, é que «a ciência é
uma luz na escuridão.» A tecnologia, filha da ciência, ajuda-nos a viver
minimizando os riscos.
De facto, a ciência e a tecnologia, que são em última análise o resultado
da nossa curiosidade, exorcizam muitos medos: vivemos melhor num mundo que
conhecemos melhor. Ainda há quem tenha medo da trovoada (chama-se «astrofobia»),
mas esta é muito menos medonha do que antes da invenção do pára-raios em 1752 pelo físico norte-americano Benjamin
Franklin, graças a uma experiência em que correu perigo de vida. Devemos ter
medo de epidemias, mas a covid-19 mostrou que o nosso conhecimento do mundo
vivo nos fornece uma segurança que não tinham os nossos avós, que sofreram a
gripe espanhola de 1918-19. Inúmeros exemplos podem ser dados. Para mostrar que
o desenvolvimento científico-tecnológico permite encarar o futuro de um modo
mais tranquilo, bastará lembrar que, no ano 1000, a Europa foi dominada por um
enorme medo do fim do mundo, baseado em superstições religiosas: pensava-se que
o milénio da vinda de Cristo seria o apocalipse, tal como descrito no último
livro da Bíblia. Hoje, sabemos bastante mais: o Universo teve um início com o Big
bang há 14 mil milhões de anos, mas provavelmente não terá fim. Quanto à
Terra, sabemos que, sem destruição humana, começou há cerca de quatro mil
milhões de anos e durará tanto quanto o Sol, mais uns cinco mil milhões de
anos. O anúncio de «fim do mundo» que ocorreu no ano 2000 já foi completamente
diferente do do ano 1000: num mundo onde Deus já não mete tanto medo, já
ninguém esperava que a vida humana fosse acabar, embora tivesse grassado o
receio de uma avaria informática na viragem do calendário. Esse dito «bug
do milénio» não aconteceu. Era um mero produto da imaginação, que tinha
substituído a razão. O bicho-papão pura e simplesmente não estava lá. Como
escreveu o pintor espanhol Francisco de Goya numa gravura de 1799: «O sonho da
razão produz monstros».
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