Divulgo a vida e obra de Jacinto Rodrigues, professor jubilado da Fac. Arquitectura_da Univ. Porto:
Este é um livro sobre o pensamento do filósofo, teórico do urbanismo e ecologista António Jacinto Rodrigues (1939), professor jubilado da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto. Comecei por o conhecer através de um livro que me espantou: A Conspiração Solar do Padre Himalaya. Esboço biográfico dum pioneiro da ecologia (Árvore, 1999). É uma biografia, investigada exaustivamente, do inventor português Manuel António Gomes, mais conhecido
por Padre Himalaya (1868-1933), que deu origem ao filme A Utopia do Padre
Himalaya (2024), realizado por Jorge António. O livro revela uma identificação
estreita entre o autor e um visionário que, há mais de um século, promoveu as
energias renováveis, ao inventar um forno solar, para além de ter sido um adepto
de naturopatias, como a hidroterapia, e de métodos de educação baseados na
prática agrícola. Rodrigues reavivou a memória de um dos portugueses mais
notáveis de sempre, pelo seu pioneirismo em modos de vida que hoje
são modernos. O Padre Himalaya foi o autor de outras ideias revolucionárias
para a época – como o aproveitamento das energias eólica, hídrica e das
marés, a construção antissísmica, a pesquisa de minérios, a nutrição animal, a
chuva artificial e a plantação em furos abertos por explosivos. E foi uma figura
cosmopolita: além dos Estados Unidos, visitou em missões de estudo e trabalho
países como a Alemanha, o Reino Unido, a França e a Argentina. A fama
internacional foi-lhe granjeada com o Grand Prize atribuído ao forno solar – o pirelióforo
na Exposição Universal de Saint Louis (Missouri), nos Estados Unidos, em 1904.
Mas, como muitos inovadores, ficou injustamente esquecido.
Tendo, a partir do referido livro, ficado curioso sobre o autor da monumental
biografia, percebi logo que estava em presença de uma figura que pedia meças
ao seu biografado. O trajecto de vida de Jacinto Rodrigues é absolutamente
extraordinário. Nascido em Luanda numa família de colonos, veio para a
metrópole estudar – cursou Filosofia em Coimbra, dizendo cobras e lagartos do
ambiente académico de então –, tendo sido apanhado pela crise universitária
de 1962. Tornou-se um resistente antifascista, num percurso que o haveria de
levar ao exílio em Paris. O Maio de 1968 reforçou a sua consciência política
revolucionária, que, como em tantos outros, apontou para a simpatia com o
maoismo. Interessado pela ocupação do espaço urbano, estudou em Paris Sociologia, Urbanismo e Literatura (como diz o Sérgio Godinho, que também andou por Paris, «isto anda tudo ligado!»), revelando desde logo o seu pendor multidisciplinar e a versatilidade do seu pensamento. Regressado a Portugal com
o 25 de Abril de 1974, completou uma licenciatura em Filosofia na Universidade
do Porto e um doutoramento em História da Arte na Universidade Nova de
Lisboa, para se tornar professor na Faculdade de Arquitectura da Universidade do
Porto, onde, ascendendo, fez a agregação em 1991, com um trabalho sobre teoria
da arquitectura. Autor de mais de duas dezenas de livros, alguns deles publicados
em França e Espanha, formou muitos estudantes, que ficaram marcados por ele.
Um dos estudantes que orientou no mestrado e doutoramento é precisamente
Miguel Santiago, que em boa hora se decidiu abalançar ao empreendimento que
é esta colectânea de textos do seu mestre. É um trabalho que nos permite entrar
no pensamento muito rico de um docente universitário nada convencional que
esteve sempre atento ao mundo e preocupado com ele. O seu tema central tem
sido a necessidade de sustentabilidade na arquitectura, seja em áreas urbanas seja
em áreas rurais, em várias regiões do mundo: a Angola onde nasceu, o centro
da Europa onde cresceu politicamente, ou o Norte de Portugal, onde assentou
na maturidade. O ser humano, ao ocupar a Terra, tem por dever respeitá-la,
procurando conviver com ela de uma forma o mais sã possível. Como Rodrigues
diz numa entrevista, estética, ética e técnica têm de estar juntas.
Não há muito tempo, numa minha ida ao Norte, tive oportunidade de conhecer
pessoalmente Jacinto Rodrigues. Fiquei encantado não só com a sua desenvoltura
física e intelectual, verdadeiramente invulgar para a idade que já leva, mas
também – e principalmente – pela sua afabilidade. Já sabia que era um homem
sábio. Fiquei também a saber que era um homem bom. Tendo-lhe dito que possuía
o seu livro do Padre Himalaya, respondeu-me logo que fazia questão de me
oferecer um exemplar autografado, o que fez in situ, acrescentando-lhe o grosso
volume Padre Himalaya Antologia de Textos Inéditos (Câmara Municipal de
Arcos de Valdevez, 2013, em colaboração com Rosa Oliveira, sua companheira),
que eu, para minha vergonha, não conhecia. Percorrido o novo livro, aumentou
ainda mais a admiração que já nutria pela sua curiosidade e génio investigativo.
Gosto de pessoas que não largam o seu objecto de estudo.
Agora, quando me foi pedido para prefaciar esta sua obra, achei que, apesar da sua área central – o bem-estar humano – estar distante da minha – os mistérios
da física –, não me podia eximir, até porque me cabia retribuir a oferenda
intelectual que me tinha feito com as suas descobertas sobre o Padre Himalaia.
Essa aceitação, confesso que rápida porque intuitiva, proporcionou-me o grande
bónus de poder conhecer melhor, com o material que me foi dado e que o leitor
aqui encontra, uma história de vida notabilíssima (vide as entrevistas que deu no
Cap. I ou as descrições das viagens no Cap. VI), para além de me confrontar com
a sua ideia de mundo e de ser humano nos muitos artigos aqui reunidos (vide os
capítulos intermediários), graciosamente polvilhado de desenhos seus que, para
nosso prejuízo, estavam inéditos. É nessa obra de vida, enciclopédica e magistral,
que convido os leitores a entrar. Não darão o tempo por perdido. Encontrarão,
como eu, um caminho multiforme, mas unido pela coerência estética, ética e
técnica do autor. Encontrarão «unidade na diversidade», nas palavras do poeta
William Wordsworth, que é uma indiscutível marca não só da arte como da
ciência. E apreciarão o sentido de solidariedade com o seu semelhante que ele
tem sabido desenvolver ao longo da sua vida. É um professor que generosamente
partilha connosco – seus discípulos através das páginas do livro – lições de
cidadania e integridade.
Perceberão, enfim melhor, que a utopia de vida feliz no nosso planeta, que
alimentou a mente do Padre Himalaya, é também a sua. A arquitectura vai muito
para lá da arquitectura: é arte e é também vida. Veja-se o caso do movimento
Bauhaus iniciado em 1919 por Walter Gropius na República de Weimar e extinto
pelos nazis em 1933, que Rodrigues tratou num dos seus livros. O impacto desse
movimento deve-se à sua feliz conjugação entre arte e vida. Foi Gropius que
disse: «A mente é um guarda-chuva. É mais útil quando está aberta». Este livro,
ao mostrar-nos a mente muito aberta de Jacinto Rodrigues, abre-nos também a
nossa.
Carlos Fiolhais
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