quarta-feira, 6 de agosto de 2025

O PAPEL DO EUCALIPTO

 



Meu prefácio para o recente livro «Conhecer o Eucalipto, O que importa saber», da Navigator:


O papel dos Chineses era feito principalmente de tecidos, embora pudesse incorporar resíduos

vegetais. Foi só com a Revolução Industrial, na viragem do século XVIII para o XIX, que se

inventaram no Reino Unido máquinas que usavam madeira para fabricar papel. Depressa

se verificou que as árvores vindas da Austrália forneciam ótima madeira para essa finalidade.

Datam de 1829 as primeiras plantações de eucalipto em Portugal, que tiveram lugar na Quinta

da Formiga, em Vila Nova de Gaia. O nosso país teve um papel pioneiro na produção de papel

a partir de madeira de eucalipto. Em 1920, na fábrica de Caima, em Albergaria, Aveiro, já se fazia

pasta de papel a partir de madeira de eucalipto pelo método do sulfito. No ano de 1956 em Cacia,

ainda em Aveiro, a Companhia Portuguesa de Celulose, precursora da atual The Navigator

Company, fazia pasta de papel a partir de eucalipto por um processo mais eficiente

que o do sulfito, denominado kraft, que significa forte. Foi uma inovação mundial: tratava-se

de “cozinhar” as fibras da madeira de um modo que se revelou extremamente fecundo. Essa

inovação ajuda a explicar o lugar saliente que Portugal tem hoje no mundo na produção

industrial de papel. A espécie dominante em Portugal no fornecimento da indústria do papel

é o Eucalyptus globulus: dá um senhor papel, branco e resistente.


Quando olho para um altaneiro eucalipto (a árvore mais alta da Europa está na Mata de Vale

de Canas em Coimbra, perto da minha casa) não posso deixar de pensar nas resmas de papel

que ele potencia, seja para livros, seja para periódicos seja ainda para outros dos múltiplos fins

do papel. Sou um obsessivo leitor de papel, muito mais do que de ecrã. Aprendi a ler pelos

jornais e formei-me, para além dos manuais escolares, com a ajuda dos livros de bibliotecas,

bem antes de proliferarem computadores pessoais entrelaçados na Internet. Uma das maiores

honras que tive na vida foi a de ter sido responsável pela Biblioteca Geral da Universidade

de Coimbra, que inclui a Biblioteca Joanina, uma das mais belas do mundo, que guarda

desde 1728 numerosos livros antigos, alguns dos quais remontam ao século XII. No vizinho

Departamento de Física da Universidade, onde ensinei durante mais de quatro décadas, criei

de raiz o Rómulo, uma biblioteca de cultura científica que tomou o nome de Rómulo de Carvalho,

o professor de Ciências Físico-Químicas que foi também poeta com o nome de António

Gedeão. E, recentemente, a Câmara Municipal de Coimbra presenteou-me com a concessão

da antiga Estação Elevatória de Coimbra, situada no Parque da Cidade, para albergar a minha

biblioteca pessoal, que doei ao município. Essa coleção de mais de três dezenas de milhares

de volumes ficará num espaço público à disposição de toda a comunidade. Os livros alinhados

nas bibliotecas, feitos de papel, são extraordinários meios de garantir memória, de ligar gerações

separadas no tempo, de construir coletivamente o nosso futuro. Inspiram-nos a fazer melhor

do que foi feito. Não estamos certos acerca de quanto durarão os suportes digitais, mas sabemos

que os livros de papel existem há muitos séculos, estando carinhosamente guardados nas nossas

bibliotecas. Fico feliz por ter guardado uma biblioteca multicentenária e criado outras duas

que espero se tornem longevas.


Deve para o leitor estar nesta altura clara a minha alta consideração pelo Eucalyptus globulus.

Sem ele não teria aprendido o que aprendi, nem escrito o que escrevi, procurando retribuir

um pouco do muito que recebi. É-nos muito útil o papel que essa árvore nos dá para lermos

e escrevermos livremente o que nos aprouver, manuscrito ou impresso. E a essa utilidade

acresce a das embalagens, que são hoje a principal aplicação do papel no mundo: por exemplo,

os sacos de papel substituem com vantagem os de plástico. Mas o uso do eucalipto na nossa

vida vai muito para além do papel, em sentido literal: a madeira, do eucalipto como

a de outras árvores, serve para biomassa combustível, para a construção civil e para o mobiliário.

Por exemplo, para fazer as estantes onde colocamos os livros.


Apesar de serem bem conhecidos os méritos do eucalipto, que acima resumi, há toda uma série

de acusações que sobre ele pendem. Por exemplo, que secam solos ou que favorecem

os incêndios. Algumas delas serão injustas, como sustenta este livro. Uma certa opinião pública

fez do eucalipto um bode expiatório de muitos males que acontecem nos campos em vez

de culpar a nossa incúria da Natureza. A floresta plantada, que é mais de dois terços da floresta

portuguesa, quando bem gerida, permite fornecer todo um conjunto de produtos, como os acima

referidos. Colhida a madeira, as árvores voltam a crescer, como acontece com qualquer outra

cultura agrícola. E nessa floresta tem de estar a de eucalipto.


Para além dos seus produtos materiais, as florestas plantadas fornecem-nos benefícios

inestimáveis: sequestram o carbono (um processo precioso num tempo de aquecimento global),

garantem condições de biodiversidade, protegem os solos da erosão e proporcionam-nos locais

aprazíveis de recreio. É inefável o prazer de passear numa floresta, como em Coimbra a de Vale

de Canas, enchendo os pulmões de ar puro e sentindo aqui e ali o odor de óleos essenciais (que

também podem ser aproveitados). Assim como o prazer de ler um bom livro sentado a sombra

de uma vetusta árvore.


Muito se tem escrito acerca do eucalipto. Há verdadeira e falsa ciência no que se diz sobre essa

árvore. A delimitação entre as duas, que nem sempre é fácil dados os vários mitos arreigados,

deve ser procurada. As ciências florestais têm feito um bom caminho e têm ainda um longo

percurso à sua frente - infelizmente têm sido impulsionadas pelos fogos que têm consumido

partes de um planeta sobreaquecido. Se hoje não temos mais benefícios das florestas,

os culpados somos nós, que não temos sido capazes de gerir bem as extensas manchas verdes

do nosso território. Quando a população trocou as serras pelas cidades, ficaram grandes áreas

do interior ao abandono.


Neste livro, baseado num manancial de literatura científica, o leitor encontrará informações

em linguagem simples dadas por um conjunto de peritos, que foram congregados no Fórum

do Eucalipto que decorreu em Lisboa em 2024. O debate sobre o eucalipto foi oportuno e deve

continuar, na comunidade científica e no público em geral, tentando sempre aproximar a primeira

do segundo. Espera-se que, escorado por este livro, esse debate fique mais esclarecido.


Carlos Fiolhais

Professor emérito de Física da Universidade de Coimbra

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