A palavra paradigma entrou nos discursos políticos, confere-lhes sofisticação ou, pelo menos, quem a usa julgará que sim. Tendo sido central num debate epistemológico ocorrido no passado século, adquiriu um sentido que está longe de corresponder àquele lhe é dado por parte de quem se quer referir a uma mudança que, não raramente, é declarada como profunda para que tudo fique na mesma. Assim, salvo raras excepções, a cada reforma do sistema educativo, anuncia-se, como convém, uma mudança de paradigma, que deixa o essencial como estava. Não me refiro à retórica que a anuncia, essa há muito que estabilizou naquilo que Sacuntala de Miranda designou por "ocedeísmo" (ver aqui); refiro-me à sua efectiva concretização.
Neste século vejo duas mudanças efectivas - de matriz ocedeísta - que talvez se possam designar, ainda que de modo não muito preciso, por mudanças de paradigma.
A primeira, que aconteceu num dos governos PS e pareceu, à altura, mais ou menos inocente, foi o corte com a organização curricular por conteúdos disciplinares, passando a ser por "competências": as "metas de aprendizagem" que lhe davam forma, seriam usadas a par dos programas; seguiram-se, num governo era PSD, as "metas curriculares" ainda com manutenção dos programas; de volta ao governo PS criaram-se as "aprendizagem essenciais" e revogaram-se os programas. Este, que é PSD, mantém essa opção.
A segunda mudança, em curso (ver
aqui), é conduzida pela "visão" de alcançar, "valor social e económico". A escola e os seus profissionais, terão de se concentrar, acima de tudo, nisso. As aproximações neoliberais e hiperliberais têm sido regra em reformas curriculares levadas a cabo por governos mais à esquerda e mais à direita, contudo este mostra-o sem subterfúgios. De modo compatível, dá primazia à "educação" financeira e para o empreendedorismo.
O actual governo, como consta no slide acima reproduzido, sabe bem onde quer chegar: levar os alunos da escola pública a adquirirem competências úteis, funcionais no mercado de trabalho. O "paradigma tradicional" de ensino, que coloca a tónica no conhecimento escolar e no aperfeiçoamento humano, está, pois, superado. Resta saber onde chegaremos com a mudança de paradigma em que laboramos há décadas e que agora vemos consolidado.
Só falta, como diz uma articulista do
Público, Ana Ferreira, que, "em nome da superação de «anacronismos» e da «eliminação de redundâncias», criar o megaministério da Economia, Educação e Inovação, onde a
Educação passe a mediar Economia e Inovação” (ver
aqui).
6 comentários:
Esta aridez na caixa de comentários, sem um único professor a dar uma palavra de apoio e reconhecimento a Helena Damião, é confrangedora.
Chamemos-lhe paradigma, lema, ou imposição tirânica, a vida nas escolas EB 1,2, 3 + S + JI só pode andar para trás quando lhe impõem a estupidez:
Desautorizar o professorado é melhorar o aprendizado!
Por exemplo, um aluno pode dizer, num exame de física e química, que o gás mais seguro para encher dirigíveis é o hidrogénio, desde que na sua justificação indique que o referido gás é incombustível, o que dá toda uma coerência à sua resposta, que, segundo os critérios de correção ministeriais, obriga o professor a atribuir a cotação máxima.
Não revelo aqui casos reais, e muito mais graves do que o exemplo apresentado, de promoção da ignorância científica, porque é proibido.
Em todos os aspetos, o professor do ensino secundário, outrora tratado por doutor, perdeu a sua autonomia pedagógica e científica. Sem professores, não há escolas!
Os professores estão cansados. Desistiram de lutar contra a gestão não democrática dos Agrupamentos e das Escolas Não Agrupadas.
«Gerar e transformar talento e conhecimento em valor social e económico» é, agora, a finalidade assumida do sistema educativo.
Apetece-me dizer que há uma ironia, não muito fina, de resto, no facto de um sistema refletir sobre outro sistema que exige validação constante, aliás, que exigem validação constante.
A minha crítica toca num ponto: a tendência dos sistemas educativos (e não só) de se protegerem através de métricas, metas e objetivos que, muitas vezes, ignoram a realidade vivida por quem está dentro deles.
Vejamos o paradoxo: mesmo quando há sucesso individual, professores inspiradores, alunos resilientes, o sistema parece mais preocupado em manter a sua própria narrativa de eficácia do que em reconhecer e apoiar as exceções que não se encaixam nos moldes. E isso gera frustração, alienação e até uma certa forma de resistência silenciosa.
Há quem diga que o sistema educativo não tem de se preocupar se falha por falta de talento, ou de visão, mas por excesso de ambição. Talvez o problema não esteja nos professores ou nos alunos, mas na obsessão por validação institucional. Nem sempre as utopias são boas conselheiras. As utopias podem ser como faróis, mas também podem cegar e podem ser fatais se estiverem no promontório errado. Elas inspiram, sim, mas também podem induzir para o abismo ou aprisionar quando se tornam dogmas ou quando ignoram o mundo real em nome de um ideal inalcançável.
Elas permitem imaginar uma escola mais justa, mais humana, mais significativa, e isso é essencial para romper com modelos obsoletos. Mas podem ser uma armadilha perfeccionista, quando se transformam em norma. Deixam de ser horizonte e passam a ser exigência. Isso gera frustração: professores e alunos sentem-se insuficientes por não corresponderem ao ideal. A utopia, nesse caso, deixa de ser libertadora e torna-se opressiva, como bem alerta Joaquim Machado de Araújo, ao defender que é preciso “elogiar a imperfeição” e reconhecer os limites éticos de qualquer projeto utópico.
Que ela permita sonhar com uma escola melhor, sem exigir que todos a alcancem da mesma forma ou ao mesmo tempo.
Ou como escreveu Adalberto Dias de Carvalho: “A utopia educativa não é um lugar a alcançar, mas uma tensão a manter.”
A escola, como estrutura, quer provar que funciona. Mas essa prova raramente vem da escuta autêntica ou da adaptação às necessidades reais. Vem de relatórios, rankings, exames padronizados. E aí, quem não se encaixa, é visto como falha quando, na verdade, pode ser sinal de que o sistema precisa evoluir.
Sem prescindir, a escolaridade obrigatória até aos 18 anos em Portugal, ou até à conclusão do 12.º ano, é muitas vezes apresentada como um direito universal, mas na prática pode funcionar como um imperativo normativo, quase dogmático.
A ideia de que todos devem seguir o mesmo percurso escolar até determinada idade ignora: as diferenças individuais de maturidade, vocação e contexto social, a possibilidade de que alguns jovens, aos 15 ou 16 anos, já tenham uma clara inclinação para uma profissão ou área técnica, a frustração que muitos sentem por estarem “presos” a um sistema que não reconhece o seu potencial fora da lógica académica tradicional.
Talvez o sistema devesse reconhecer precocemente talentos e vocações, sem estigmatizar quem escolhe caminhos não académicos, oferecer vias técnicas e profissionais mais valorizadas, com saídas reais para o mercado de trabalho, permitir que jovens escolham com liberdade informada, e não por exclusão ou fracasso escolar.
O sistema educativo continua a exigir que todos se encaixem para poder validar-se, como se o sucesso de um jovem só fosse legítimo se passar pelo crivo do 12.º ano. E isso gera um paradoxo: a escola que deveria libertar, acaba por aprisionar.
Talvez o que esteja em falta não seja mais escolaridade, mas mais liberdade educativa. Mais confiança nos jovens, mais respeito pelas suas escolhas, e mais coragem para admitir que o sucesso não tem uma única forma. E longe de mim supor ou imaginar que existe uma intenção no facto de protelar a entrada dos jovens num mercado de trabalho cuja elasticidade vai oscilando, por vezes dramaticamente. Longe de mim suspeitar que o prolongamento da escolaridade obrigatória não serve apenas fins educativos, mas também, ou principalmente, responde a lógicas económicas e sociais mais amplas.
O mercado de trabalho não está preparado para absorver jovens em massa, sobretudo sem qualificações específicas ou sem experiência. E aqui entra a minha provocação: não será conveniente, para o sistema, manter os jovens “ocupados” na escola enquanto o mercado se ajusta?
Não é absurdo pensar que a escola, além de formar, funciona como amortecedor: Evita que milhares de jovens entrem num mercado saturado e instável. Mantém estatísticas de desemprego mais controladas. Garante que os jovens continuam a ser “ativos em formação”, o que é politicamente mais aceitável do que “desempregados”.
Mas isso levanta um dilema ético: estamos a educar para emancipar ou a escolarizar para adiar?
Talvez a escola devesse ser mais permeável ao mundo do trabalho, e vice-versa.
Talvez o caminho não seja encurtar a escolaridade, mas reconfigurá-la: integrar experiências reais de trabalho desde cedo, valorizar percursos técnicos e profissionais sem estigmas, permitir saídas e reentradas no sistema educativo com mais liberdade.
A minha crítica não é contra a escola, mas contra a sua instrumentalização mal assumida, escamoteada por uma arquitectura de argumentos que, de facto, e em geral, não se verificam e não funcionam.
Mesmo que essa finalidade de transformação do conhecimento em valor social e económico fosse o mais importante na educação, não é com Aprendizagens Essenciais, feitas de saberes vulgares e medíocres, avaliados através de grelhas repletas de domínios, rubricas, critérios, objetivos, competências e metas curriculares, entre muitos outros parâmetros com mais peso percentual na classificação final do que a sapiência escolar de antanho, garantindo assim um nível de grande ignorância, igual para todos, desde os mais pobrezinhos e miseráveis até alguns altos burgueses que, por serem muito focas, preferem a bandalheira do Estado à corrupção desenfreada dos Colégios, rejeitando portanto o clássico, e poderoso, saber escolar, e entrando em palhaçadas costistas que atingem o paroxismo com o PASEO (Perfil do Aluno à Saída da Escolaridade Obrigatória), que vamos evitar que os nossos melhores, entre novos e velhos, continuem a rumar para a Suiça, a Alemanha, ou a França, onde, com muito menos estudos, ganham muito mais do que alguns dos doutores que lhes "ofereceram" a escola para pobrezinhos em Portugal.
Enquanto não restituirem, pela via legal, autoridade pedagógica e científica aos professores, o embuste das sucessivas reformas na educação vai continuar.
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