Meu contributo para o volume «O que se passa na infância fica na infância", João Paulo Gaspar e Paulo Guerra (coords.), Editora d'Ideias, 2025:
Os físicos chamam
«transição de fase» às mudanças de propriedades de um sistema, graças ao
rearranjo da estrutura, quando muda a temperatura (ou a pressão). Por exemplo,
a água passa da fase sólida para a líquida a zero graus Celsius à pressão
normal e da fase líquida para a gasosa a cem graus. No primeiro caso, o gelo
funde e. no segundo, a água ferve. Uso a metáfora das transições de fase – há
quem lhes chame mudanças de estado – para, na minha descrição biográfica, designar
a minha entrada na escola primária, aos seis anos, e a saída da escolaridade
aos 26 anos, com a conclusão do doutoramento em Física Teórica na Alemanha. Foram,
no total, vinte anos de escola, quase um terço da minha vida até agora. Concentro-me,
neste apontamento, no primeiro dos referidos momentos, talvez o mais decisivo na
minha infância.
Nascido onde nascem
muitos portugueses a maternidade Alfredo da Costa, em Lisboa, vivi os meus
primeiros cinco anos bem acomodado no conforto do lar. O meu pai trabalhava no Quartel
da GNR, na Ajuda, enquanto a minha mãe, doméstica como se dizia na altura,
tomava conta de mim e do meu irmão, dois anos mais novo, num modesto apartamento
de um segundo andar da Calçada do Galvão. Dada a proximidade, não admira que o
meu baptismo tenha sido no Mosteiro dos Jerónimos e que sítios de brincadeira fossem os jardins a Praça
do Império, frente ao Mosteiro, e o então chamado Jardim Agrícola do Ultramar,
mesmo ao lado. Lembro-me de experimentar a emocionante experiência do eco no
túnel que faz a ligação ao Padrão dos Descobrimentos e de correr por cima da
grande Roda dos Ventos, fronteira ao monumento. Não andei no jardim de infância,
pela simples razão de essa instituição rarear na época. Tinha alguma habilidade
para o desenho: lembro-me, ainda que vagamente, de desenhar o casario de Lisboa
sobranceiro ao Tejo que se via da minha janela. E lembro-me de me ter sido oferecida
uma caderneta de cromos, acho que da Bela Adormecida, que foi talvez o
meu primeiro livro (ou terá sido a Cartilha Maternal de João de Deus,
que havia lá em casa?). Foi uma infância feliz, sem acontecimentos de maior.
Como incidente, que não foi felizmente acidente, disseram-me mais tarde os meus
pais, de ter por iniciativa própria administrado uma sobredose de um
medicamento ao meu irmão que estava doente. Valeu-me a mim e a ele uma
confissão pronta.
A memória, quando
existe, é uma grande enganadora. E eu nunca tive tendência para a exercitar,
olhando muito para o retrovisor da vida. Mas um acontecimento da infância que
me ficou marcado na mente foi a entrada na Escola Primária da Voz do Operário,
que ficava na Ajuda (não confundir com a escola homónima, que ficava na Graça).
O meu pai levou-me pela mão, confiando-me a uma senhora professora, já com uma
certa idade. Naturalmente que chorei baba e ranho, porque o meu progenitor me
estava a deixar num lugar que me era estranho, entregue a pessoas que eu não conhecia.
Mas, se de início estranhei, depois entranhei. Com a facilidade de quem já sabia
ler e escrever (ajuda do meu pai, que na altura só tinha a quarta classe),
integrei-me rapidamente no meu novo ambiente, de modo a que, passado um ano, recebi
um diploma da primeira classe que ainda hoje conservo. Precisei desse documento
porque, passado um ano da minha entrada na escola, o meu pai recebeu ordem de
marcha para Coimbra, pelo que tive de ser transferido para a Escola dos
Olivais, nessa cidade, onde fiz no tempo certo a quarta classe, logo seguida do
exame de admissão aos liceus e da matrícula no Liceu Normal D. João III.
Passar de casa para
a escola foi, para mim, uma verdadeira descontinuidade, uma transição de fase.
Nem o meu pai nem a minha mãe (que tinha só a terceira classe) sabiam quem eram
Albert Einstein ou Leonardo da Vinci, tendo sido os meus professores do liceu que
me apresentaram esses geniais personagens. Mas, antes do ensino secundário, foi
preciso perfazer o primário. Os meus pais deram-me os genes e a primeira
educação. Depois confiaram-me aos professores: confiar é a palavra exacta, pois
o meu pai se ufanava de nunca ter falado com os professores por minha causa. Como
eles confiavam, eu também confiei. Foram os meus professores, a começar logo na
escola primária, que me apresentaram o melhor do mundo e da humanidade. Estou-lhes
extraordinariamente grato: não seria nada do que sou – ou melhor, não seria
nada – sem eles. A tristeza do primeiro dia de escola rapidamente foi
ultrapassado pela alegria da aprendizagem sob a exigente tutela da minha professora
e do convívio pleno de traquinices com os meus colegas. Cada dia em que voltava
a casa tinha o cérebro mais crescido. Tal como as moléculas de água, quando a
temperatura aumenta, eu estava cada vez mais desenvolto, quer dizer, mais livre.
Carlos Fiolhais, 68 anos
Nota biográfica
Sou professor de Física emérito da Universidade de Coimbra, com o doutoramento concluído em 1982 na Universidade de Frankfurt/Main, na Alemanha. Dirigi a Biblioteca da Universidade de Coimbra. Tenho divulgado a ciência por diversos meios: livros (o último é Toda a Física Divertida, na Gradiva), imprensa, rádio, TV e Internet.
Sem comentários:
Enviar um comentário