No século X um escriba de Constantinopla (actual Istambul) copiou textos de Arquimedes para um livro que é hoje a mais importante fonte das obras do sábio de Siracusa, o Palimpsesto de Arquimedes.
Cerca de duzentos anos depois, durante a quarta cruzada, Constantinopla foi invadida e saqueada. O papel era escasso na época e o manuscrito de Arquimedes foi reciclado num livro de orações, o Euchologion. Para isso, a encadernação inicial foi destruída, o texto original raspado das folhas de pergaminho, estas rodadas 90º e reescritas (palimpsesto significa livro «raspado» no sentido de reutilizado).
O documento foi mantido pela Igreja até ser doado a uma biblioteca de Constantinopla, onde foi encontrado em 1906 pelo filólogo Johan Ludvig Heiberg. Com uma lupa, Heiberg conseguiu identificar os textos de Arquimedes sob as orações. Heiberg fotografou as páginas e publicou uns anos depois o que conseguiu decifrar. Na época, a descoberta mereceu honras de primeira página no The New York Times, em 16 de Julho de 1907, com o título «Importante descoberta literária em Constantinopla.»
O Palimpsesto contém 7 tratados de Arquimedes, entre os quais a única fonte original em grego de «Dos corpos flutuantes» e a única cópia integral de «Do método relativo aos teoremas mecânicos», obra da qual apenas alguns trechos eram conhecidos. Este tratado parece indicar que Arquimedes já intuía alguns princípios do cálculo diferencial e integral, cuja invenção é atribuída a Newton e Leibniz na segunda metade do século XVII. Nesta obra Arquimedes apresenta ainda uma concepção do infinito mais avançada do que se esperaria - especialmente se pensarmos que os seus contemporâneos inventaram o termo apeirofobia (fobia do infinito), horror infiniti que continuou durante a Renascença e mesmo até nos tempos modernos. Um dos textos divulgados por Heiberg era um excerto de um tratado intitulado Stomachion que intrigou os matemáticos que o analisaram, já que parecia apenas um quebra-cabeças pueril.
Mas o quebra-cabeças Stomachion, de que não existem mais fontes, demorou quase um século a ser decifrado já que pouco tempo após descoberto o manuscrito desapareceu. Reapareceu nos anos 1930 numa colecção privada em Paris e só a partir de 1998, data em que foi vendido por 2 milhões de dólares a um coleccionador privado, que o cedeu ao Museu de Arte Walters, em Baltimore - pode ser novamente estudado.
O palimpsesto encontrava-se à época em muito mau estado, com alguns trechos praticamente ilegíveis. Uma equipa multidisciplinar dedicou-se à tarefa complicada de recuperar o texto grego original, escrito há mil anos nas páginas de um livro que ao longo da sua história foi bastante maltratado. Tarefa complicada utilizada na recuperação de outros documentos milenares, em que a química tem um papel não despiciendo.
A cargo de Reviel Netz, da Universidade de Stanford, e Nigel Wilson, da Universidade de Oxford, ficou a tarefa de ler, analisar e traduzir o texto recuperado. A maior surpresa do palimpsesto foi certamente o Stomachion, que se revelou um tratado de análise combinatória, um campo que muitos pensariam ter a idade das ciências da computação.
O livro de Reviel Netz e William Noel «The Archimedes Codex: Revealing The Secrets Of The World's Greatest Palimpsest», pode ser encomendado (sai já para o mês que vem) na Amazon.
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13 comentários:
Muito obrigado pela sugestão. Já está encomendado!
Mesmo muito obrigado pela informação! Também já encomendei o livro. Estou com em pulgas para o ler. Não sabia que a análise combinatória tinha sido inventada por Arquimedes.
Fenomenal! Para mim, estudante de Física, é um acontecimento pelo qual estava à espera há já algum tempo.
Obrigadíssimo pelo "reminder".
Estimada Palmira
Apesar do enorme interesse do seu Post, não pude deixar de notar que existe um "Lapsus Dactilograficus" logo no início do mesmo. Onde se lê Séc. XX, conceteza que queria dizer apenas "Séc. X".
De resto gostaria de deixar aqui mais uma vez os meus parabéns pelo vosso magnifíco Blog. Apesar de eu ser de uma área completamente distinta das cobertas pelo Blog, confesso que desde que o Desidério mo deu a conhecer, tenho passado largas horas neste Blog, completamente imerso nos vossos completíssimos Posts e comentários.
Bem hajam.
oops:
Obrigado Fernando Caria pela gentileza de me indicar o typo que já corrigi.
O nome alemão Ludwig escreve-se com um w, não com um v. O w lê-se v em alemão. O v lê-se f.
Luís Lavoura
"durante a quarta cruzada, Constantinopla foi invadida e saqueada"
Este excerto do texto parece-me pouco preciso. Dá ideia de que a invasão e o saque foram desastres naturais, sem autores humanos, que caíram sobre Constantinopla. Os autores da invasão e saque não são identificados, o crime fica sem atribuição. Seria mais adequado, em minha opinião, ter escrito: "na quarta cruzada, os cruzados invadiram e saquearam Constantinopla".
Luís Lavoura
Luís Lavoura
Tanto quanto sei o dinamarquês Johan Ludvig Heiberg nunca se naturalizou alemão, pelo que não vejo razões para alterar a grafia original do seu nome :-)
Não tem muito a ver com este palimpsesto em causa (notícia fascinante — não tinham nem ideia), mas isto dos palimpsestos, da 4.ª Cruzada e do saque de Constantinopla trouxe-me à lembrança «Baudolino», livro de Umberto Eco de há uns 6-7 anos, que recomendo vivamente.
... E já agora também "As Cruzadas Vistas Pelos Árabes", de Amin Malouf.Livro ligeiro em estilo jornalístico, que é uma boa iniciação para ver o "outro lado da história".
Deixem-me acrescentar que a tradução portuguesa desta obra está prevista para muito breve, a sair nas Edições 70.
Até agora pensava-se que a análise combinatória tinha começado a ser estudada por Al-Khwarizmi e seus sucessores. Esta é uma grande descoberta para a história da teoria dos números.
este livro e muito interressante porque e chique
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