segunda-feira, 23 de abril de 2007

RÓMULO NO PORTO



Recensão, ligeiramente editada, de um livro que foi publicada hoje no suplemento "Das Artes e das Letras" do jornal "O Primeiro de Janeiro", onde escrevo sobre livros quinzenalmente (rubrica "Os Meus Livros"):

Acaba de sair, do prelo da Editora da Universidade do Porto, um belo livro de grande formato dedicado a esse extraordinário personagem da nossa cultura científica que foi Rómulo de Carvalho. Intitula-se “Rómulo de Carvalho na Universidade do Porto 1928-1931” e é seu autor (embora a indicação esteja demasiado discreta) o Professor de Física da Universidade do Porto José Moreira de Araújo. O design e a fotografia, que são componentes essenciais do livro (o que os ingleses chamam um “coffee table book”), são de Rui Mendonça.

O livro, apesar de lançado há poucas semanas, tem data de 2006, o ano em que se comemoraram os cem anos do nascimento do professor e poeta. Este ano comemoram-se os dez anos do seu falecimento, estando previsto para breve a publicação do seu volume de “Memórias”, que é dedicado aos seus tetranetos (bisnetos já ele tem, mas tetranetos ainda não!).

Rómulo de Carvalho apesar de ter nascido em Lisboa e de ter aí iniciado o seu curso superior estudou na Universidade do Porto durante os quatro anos que estão indicados no título desta obra. Mais tarde foi professor do ensino secundário no Liceu Nacional de D. João III, hoje Escola Secundária José Falcão, em Coimbra (o liceu onde, “in illo tempore”, estudou Antero de Quental). Mais tarde haveria de se mudar para a sua terra natal, onde foi durante muitos anos professor no Liceu Pedro Nunes.

Carvalho (que só nos seus tempos de Coimbra se estreou como poeta António Gedeão) iniciou os seus estudos superiores na Escola Politécnica de Lisboa em Outubro de 1925, nas vésperas da revolução de 28 de Maio de 1926 que conduziu ao Estado Novo. Frequentou aí o curso preparatório para Engenharia Militar, profissão para a qual nunca mostrou a menor vocação. Filho de uma família que não era rica, a carreira militar era, na época, a possibilidade de mais cedo aceder a uma situação de independência económica. Mas Carvalho não simpatizou com os seus professores militares, que davam aulas numa pose bélica ainda que não envergassem as suas fardas… Escreveu ele nas suas “Memórias” ainda inéditas:

Primeiro os generais e os coronéis a ensinarem-me as leis da gravitação universal, as fórmulas das vitaminas, as equações do 4º grau e os triângulos esféricos, de espada dirigida ao peito; depois o general Fomes da Costa a cavalo, acampado em Sacavém, preparando a sua entrada gloriosa em Lisboa”.

E foi por uma certa aversão aos militares que, em 1928, se mudou para o Porto, para um curso bem diferente, a licenciatura em Ciências Físico-Químicas. Escolheu ser professor:

“Iria para o ensino. Igualmente me interessavam as Letras e as Ciências, e em qualquer desses sectores ensinaria com prazer. Mas não valeria a pena voltar atrás, ao Liceu, para frequentar o Curso Complementar de Letras, podendo aproveitar o de Ciências, de que já tinha diploma. Seria por aí o caminho. Das Ciências, todas me agradavam, mas preferi a Física e a Química porque implicavam trabalhos de mãos e recurso às Matemáticas, concretamente utilizadas. Foi esse o meu destino (…)”.

Mais tarde haveria de declarar, ena Universidade de Évora, numa cerimónia de entrega do grau de doutor “honoris causa”, que não quis ser um qualquer professor, mas sim um professor do ensino secundário. Chegou a receber um convite para ser assistente na Universidade do Porto, mas declinou-o. Ainda das “Memórias”:

“Não me inclinava a trocar o convívio dos adolescentes pelo dos barbados. Nunca me arrependi da decisão”.

Logo no início do livro, numa nota introdutória, o autor explica que foi encontrado no espólio do Departamento de Física da referida Universidade um trabalho escolar de Rómulo de Carvalho, escrito na sua muito certinha caligrafia. Esse trabalho, que servou de ”leit motiv” ao presente livro, era um estudo de matérias não dadas nas aulas da disciplina de “Acústica, Óptica e Calor”. O trabalho sobre calores específicos (calor que um dado material pode absorver por unidade de massa), que se encontra reproduzido em “fac simile” no Apêndice 4, aborda vários conceitos e teorias de Física Moderna, nomeadamente da paradoxal teoria quântica, que na altura eram bem recentes. Escreveu a certo passo:

“A teoria dos quanta obriga-nos a combater ao seu lado pela veracidade dos resultados que com ela se obtêm, embora os princípios em que está assente, tão estranhos às concepções seculares, nos repugnem um pouco”.

Mas esse trabalho foi apenas um pretexto para uma obra muito interessante que o ultrapassa largamente. Ela conta-nos, mais em geral, como foi o percurso académico do jovem estudante no Porto e, mais em geral, como era a vida nessa época da que é hoje a maior academia portuguesa. José Moreira Araújo, cujos saber e rigor são bem conhecidos da comunidade científica portuguesa, aproveita o ensejo para descrever de forma sábia e rigorosa a instituição na época, nomeadamente os professores das várias disciplinas, os programas, as instalações, a atmosfera, etc.

Nesses anos de aprendizagem, o jovem Rómulo de Carvalho leu muito, principalmente obras de ciência e de divulgação científica estrangeiras. E também escreveu: além de trabalhos escolares como o que foi citado, escreveu “prosas e versos”, incluindo dois interessantes artigos no jornal académico do Porto intitulados “A decadência do raciocínio” e “A igualdade dos sexos”. Este último artigo foi algo polémico, por contrariar algumas posições conservadoras sobre a mulher, tendo valido uma resposta do chefe de redacção. Os trabalhos de Rómulo, na altura em que estudava no Porto, estão publicados na obra em apreço em apêndice para uma fácil memória futura. Só é pena não haver um índice do livro, com indicação dos apêndices.

A cidade do Porto deixou uma marca indelével em Rómulo de Carvalho pela vida fora. No final da sua vida, ainda nas “Memórias” que esperamos em breve poder ler na sua totalidade, o grande mestre refere-se à “mui nobre e invicta cidade” do seguinte modo:

“Gostei de viver no Porto. Era então uma cidade de sabor antigo, fiel às litografias do século XIX que me deslumbravam com as imagens da Ribeira do Douro, das casas de Miragaia, da rua de S. João, dos Clérigos e da Cordoaria, com o edifício da Relação onde Camilo curtiu as suas penas, com a Foz de António Nobre, o passeio das Cardosas e as pontes sobre o rio. Cidade burguesa, na azáfama das suas ruas sentia-se a preocupação de viver, o ânimo de lutar, a vontade de chegar até determinado ponto. As mulheres e os homens, gente do povo, não eram os que eu via em Lisboa. Tinham um cariz mais bravo, um menear mais decidido, uma voz com mais ressonância, um conjunto de caracteres que poderiam definir um outro Portugal, talvez até mais genuíno.”

Felizmente que, passados quase oitenta anos, o Porto ainda é assim!

- José Moreira Araújo, “Rómulo de Carvalho na Universidade do Porto 1928-1931”, Editora da Universidade do Porto, Porto, 2006.

3 comentários:

Anónimo disse...

«José Moreira Araújo, cujos saber e rigor são bem conhecidos da comunidade científica portuguesa, aproveita o ensejo para descrever de forma sábia e rigorosa a instituição na época, nomeadamente os professores das várias disciplinas, os programas, as instalações, a atmosfera, etc.»

Grande tirada cómica!!! O Araújo é um grande tachista! Aquela fundação!!! O museu!!! E agora o livro revisionista histórico!! Viva o fóssil do Araújo!!!

«Felizmente que, passados quase oitenta anos, o Porto ainda é assim!»

Será?? Ou deveremos chorar porque irá melhorar?

As médias de entrada nos cursos da FCUP é que não têm maneira de subiiiir... mas felizmente para muito aluno lá veio Bolonha ajudar...

Anónimo disse...

Correção:

"pose" (forma de estar) e não "posse" (haveres).

Luís Lavoura

Carlos Fiolhais disse...

Caro Luís
Já emendei, obrigado. Foi gralha!

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