Só a boa recepção (que agradeço!) do meu ensaio "Einstein e a Religião", que publiquei neste blog, me leva a publicar um outro ensaio de carácter mais longo do que é usual. Este escrito sobre Francis Bacon saiu numas obscuras actas de uma Escola de Verão de Cascais: submeto-o agora à consideração dos bons leitores deste blog, pois ele aborda alguns dos temas que por aqui têm passado.
O Renascimento foi o tempo do alvorecer da ciência tal como a conhecemos hoje. Se na Antiguidade grega principiou essa maneira de discutir e convencer alguém que consiste em usar a lógica e em admitir o erro quando existir falta de lógica só no Renascimento fica, sem ambiguidades, reconhecido o papel da observação da Natureza e da experimentação para se chegar a um acordo a respeito do mundo.
Sir Francis Bacon (Lord Verulam), filósofo, político e jurista inglês que viveu de 1561 a 1626, é o autor da conhecida asserção “saber é poder”. Mais exactamente, Bacon escreveu “Nam et ipsa scientia potestas est” (“Porque o próprio saber é poder”) em “Religious Meditations”. E desenvolveu o dito em “Novum Organum”, a sua obra principal, publicada em 1620, que pretendia substituir o “Organum” de Aristóteles e era parte de um projecto maior intitulado “Instauratio Magna”: “O conhecimento humano e o poder coincidem; quando não se conhece a causa não se consegue produzir o efeito. Só se vence a Natureza obedecendo-lhe; e o que na observação funciona como causa na obra funciona como regra”. O saber sobre a Natureza correspondia a um poder efectivo sobre ela.
Bacon fez a apologia da ciência mas não foi um cientista. Recusou o sistema de Copérnico, que na sua época triunfava, ainda que a custo. Escrevia de uma forma aforística e normativa que tinha mais a ver com a política e a jurisprudência do que com a filosofia natural (o médico William Harvey afirmou ironicamente que Bacon escrevia filosofia de um modo adequado ao cargo que ocupava, o de Lorde Chanceler). É espantoso até o modo como ignorou o papel da Matemática como linguagem da ciência, que foi apontado de forma exemplar por Galileu, e como ignorou ou menosprezou os trabalhos de alguns seus ilustres contemporâneos como Harvey e Kepler. Não conhecia a teoria de circulação do sangue de Harvey, apesar de ter sido tratado pelo próprio Harvey! A sua obra de filósofo não é excessivamente original se se referir apenas a metodologia da indução, que ele teorizou em “Novum Organum” mas não inventou. Bacon foi, antes do mais, um arauto, um prosélito da ideia e da importância da ciência, e alguém que no momento certo - a revolução do Renascimento - chamou a atenção para o papel essencial da observação e da experiência no alargamento do conhecimento humano. Foi um crente não apenas na eficácia social da ciência - no tal poder associado ao saber - mas também nas possibilidades ilimitadas da empresa científica e tecnológica. Abriu assim a via a vários optimistas do saber, como os enciclopedistas do século XVIII, que tanto o admiravam, e até os popperianos do século XX, que não se esquecem de o invocar apesar das emendas que fizeram ao método indutivo.
Que a pregação do valor da ciência efectuada por Bacon continua actual é manifesto por exemplo na obra de Sir Peter Medawar, um popperiano confesso e Prémio Nobel da Medicina em 1960 pelos seus trabalhos no domínio da imunologia. Tanto em “Conselhos a um Jovem Cientista” como em “Os Limites da Ciência”, dois livrinhos muito esclarecedores para saber o que é a ciência hoje, Medawar faz várias alusões a Bacon e à atitude baconiana. Chama a atenção para a simbologia de clara expansão da ciência que aparece na capa de uma edição de “Novum Organum”, onde se representam duas caravelas a passar as colunas de Hércules (a entrada do Mediterrâneo). O dito “Plus Ultra” (Mais além) substituiu no tempo dos descobrimentos o anterior “Ne Plus Ultra”, segundo o qual nada existia para além da Ibéria e que figurava no brasão da família real espanhola. Na capa do livro está escrito “Muitos passam - e assim a ciência é alargada”, uma passagem bíblica retirada do profeta Daniel. Para Medawar, “não há limite para o poder da ciência responder a questões do tipo das que a ciência pode responder. Esta é a maior glória da ciência, porque pressupõe que qualquer coisa que é possível em princípio pode ser feita se a intenção para a fazer for suficientemente forte e prolongada”. Estão devidamente salvaguardadas as questões, por vezes inquietantes, que não são do âmbito da ciência embora possam vir a propósito da ciência.
Bacon parece crer, como a maior parte dos cientistas, no carácter ilimitado do conhecimento científico e, portanto, da empresa científica. Em ciência haverá sempre mais mundos a explorar. Já o físico contemporâneo Richard Feynman tem algumas dúvidas sobre a infinidade das leis da Natureza que há ainda para descobrir. Escreveu no final de “O Que é a Física”: “Não podemos continuar a descobrir cada vez mais leis.(...) Podemos dar-nos por muito felizes por vivermos numa época em que ainda se fazem descobertas. É como a descoberta da América - só foi efectuada uma vez. Vivemos na época da descoberta das leis fundamentais da Natureza e estes dias jamais voltarão. É algo de apaixonante, de maravilhoso, mas esta excitação vai acabar.” Feynman apressa-se a acrescentar que o futuro nos reserva outros interesses, como a relação entre fenómenos na Biologia ou a exploração de outros planetas, o que significa afinal que a ciência não acaba para ele. Ninguém se atreve a dar por terminada a ciência.
Em que medida o saber foi poder no Renascimento? Refiro, apenas, a este propósito os exemplos de três cientistas contemporâneos de Bacon: os já citados William Harvey, Johannes Kepler e Galileu Galilei. O primeiro médico inglês, o segundo astrónomo alemão e o terceiro físico italiano. Todos eles conheceram o poder e privaram com os poderosos da sua época.
Desde sempre os médicos foram detentores de poder por mais precário que fosse o seu saber sobre o corpo humano. William Harvey, a quem creditamos hoje a descoberta do papel do coração na circulação do sangue, chegou a médico da corte inglesa, tendo servido a James I a quem assistiu no falecimento. Passou depois a médico do filho, Charles I, com quem estabeleceu uma relação de grande confiança. Parece que os animais de caça da coutada real estavam ao dispor do cirurgião para todos os actos de experimentação que entendesse úteis. Talvez não tivesse aprendido como funciona o coração se não tivesse desfrutado desse privilégio...
A vida de Kepler, o indagador da harmonia nos céus, foi assaz atribulada. Kepler foi astrónomo do imperador do Sacro Império Romano-Germânico Rudolfo II e de outros que lhe sucederam mas foi obrigado, para conseguir viver decentemente, a redigir almanaques e horóscopos. Kepler era um defensor do sistema de Copérnico e serviu-se dele para efectuar horóscopos, que talvez lhe conferissem mais poderes sobre os súbditos do reino do que o emprego imperial. Prever o futuro tem sido em todos os tempos uma fonte de poder. Não deixa de ser curioso que uma das principais razões do triunfo do sistema heliocêntrico foi o ter permitido a elaboração de horóscopos “melhores” do que os baseados no sistema de Ptolomeu. Kepler invocou em defesa da sua actividade de perscrutador dos desígnios dos astros que “Deus deu um modo de vida a todas as suas criaturas: aos astrónomos deu a astrologia”.
É bem conhecida a história do conflito de Galileu com o poder da Igreja Católica. Assim, é talvez mais interessante relembrar a relação do sábio com o poder temporal. O telescópio tinha sido inventado por um holandês desconhecido mas Galileu aperfeiçoou-o e dirigiu-o para os céus em 1609. Antes disso, porém, dirigiu-o para a Terra e mostrou como se podiam enxergar navios à distância muito antes de serem vistos à vista desarmada. Na descrição do seu biógrafo Stillman Drake, “ofereceram-lhe um título vitalício de professor com quase o dobro do salário actual quando ofereceu o seu instrumento ao doge”. Mais tarde, quando aperfeiçoou ainda mais o instrumento e conseguiu observar os satélites de Júpiter, ganhou o lugar de matemático-chefe e filósofo (isto é, físico) na corte toscana. Ver ao longe é, decerto, uma forma de conquistar poder.
Passados trezentos anos, em que medida o saber é poder? O poder justifica a aquisição de saber? Quais são os limites que existem ou devem ser colocados ao poder que advém do saber? Quais são os perigos da ciência a evitar por aqueles que os sabem? Poderá de todo ser contida a nossa hubris de saber?
A estas grandes e inquietantes questões a ciência não pode responder porque lhe são exteriores. Limitemo-nos, portanto, a discorrer sobre elas. Convém lembrar que a ciência está hoje para muita e boa gente associada, para não dizer confundida, com os chamados benefícios e malefícios da ciência. Encontramos um sintoma desse mal estar social no livro “O Mundo de Sofia - Uma Aventura na Filosofia”, do norueguês Jostein Gaarder, que conheceu um grande sucesso editorial. Gaarder não se esqueceu de referir Bacon no capítulo dedicado ao Renascimento. Depois de aludir aos três instrumentos que marcaram esse tempo - a bússola, a tipografia e a espingarda - um personagem de Gaarder apresenta uma história sumária da ciência e da técnica (o facto de falar para uma menor, Sofia, não o isenta da acusação de simplismo): “No Renascimento iniciou-se um processo que havia de levar finalmente os homens à Lua, embora também a Hiroshima e a Chernobyl. (...) O desenvolvimento técnico que se iniciou no Renascimento deu origem à máquina de fiar e ao desemprego, a medicamentos e a novas doenças, ao desenvolvimento da agricultura e à destruição da Natureza, a novos recursos práticos como máquinas de lavar e frigoríficos mas também à poluição do meio ambiente e ao problema dos resíduos industriais”.
A distância que vai da ciência do Renascimento ao desastre de Hiroshima parece-me tão grande como a que vai do âmbar, que os antigos gregos sabiam ter propriedades eléctricas, à cadeira eléctrica, que ainda hoje é usada para executar condenados. Mas vale a pena determo-nos um pouco nas relações entre ciência e poder a propósito do acontecimento que determinou o fim da Segunda Guerra Mundial. Com o projecto Manhattan, o poder político norte-americano com o apoio dos seus aliados conseguiu reunir em Los Alamos a nata da sociedade científica não só dos anos quarenta como também deste século. Um general, Leslie Groves, dirigiu o projecto cuja responsabilidade científica era de um brilhante físico teórico, Robert Oppenheimer. Uma prodigiosa concentração e aceleração de esforços fez com que o fenómeno da cisão do urânio, anunciada em 1939, no início da guerra, a viesse a terminar escassos seis anos depois (Otto Hahn, o químico germânico descobridor da cisão, veio a tomar conhecimento de Hiroshima num campo de prisioneiros inglês e mal podia acreditar que a história tivesse andado tão depressa). Contudo, a motivação dos membros da equipa de Los Alamos era a mais diversa: para uns, quiçá a maioria, tratava-se apenas de um desafio científico-técnico; para outros, porventura mais conscientes politicamente, era a necessidade de fazer, e fazer primeiro que o inimigo que tinha invadido a Europa e tentava invadir o mundo, algo que era possível. Se fosse perguntado a qualquer deles poucos anos anos se pensavam que era primeiro possível e depois desejável libertar a energia do minúsculo núcleo atómico, a resposta teria sido unânime e negativa. Lord Rutherford, o físico neo-zelandês descobridor do núcleo, achou a ideia de extrair energia nuclear pura e simplesmente disparatada. Escusado será lembrar que a decisão de largar a bomba foi dada pelo presidente Truman, poucos dias depois de ter tomado posse, e não por Groves e muito menos por Oppenheimer. Este último veio mais tarde a afirmar - “Nós, os físicos, conhecemos o pecado” -, exteriorizando um incontornável sentimento de co-responsabilidade que só por si define o seu grande humanismo e carácter.
Com Hiroshima ficou demonstrado o enorme poder da ciência - podia mesmo acabar com um conflito mundial. Mas o esforço de guerra trouxe também outras contribuições científico-técnicas (o radar, o computador, etc.) sem as quais o mundo moderno seria decerto bem diferente (não haveria aviação, automação, etc.). E ficou claro que a ciência tinha de ter um poder ou poderes externos a ela. Tinha de ser ao mesmo tempo apoiada e vigiada. Foi a partir da Segunda Guerra Mundial que os estados se passaram a interessar de forma visível pela empresa científica e que os governos, que num sistema democrático representam os cidadãos, passaram a apoiar directamente a investigação tanto fundamental como aplicada. Os resultados estão à vista de todos: vivemos, de facto, num “admirável mundo novo” que dispõe de medicinas cardíacas ultrasofisticadas, de previsões rigorosas de movimentos de planetas e satélites, e de observações com radiotelescópios que chegam aos confins do universo observável; vivemos também num mundo onde nos espreitam perigos de que antes não suspeitávamos. Estes resultados são julgados de maneira diferente. Sofia aprende que a ciência é um Dr. Jekyll e um Mr. Hyde, que trata de dia e mata de noite. Outros aprenderão melhor, o assunto é controverso…
Poder-se-á pensar que no século XVII, Francis Bacon não terá entrevisto o “admirável mundo novo” que aí vinha. Contudo, em 1627, um ano depois da sua morte, foi publicada “The New Atlantis”, obra de ficção onde descrevia uma ilha utópica habitada por uma comunidade avançada. Aí os princípios da filosofia natural de Bacon eram praticados sob direcção estatal. Essa prática era realizada na chamada Casa de Salomão por uma sociedade de sábios que pretendiam nada mais nada menos do que o “conhecimento das causas, e movimentos secretos das coisas; e o alargamento das fronteiras do domínio humano até à efectivação de todas as coisas possíveis”. Terá sido aqui que Medawar se inspirou para dizer que tudo aquilo que se pode fazer há-de um dia ser feito se houver vontade suficiente.
Nessa ilha fantástica, para lá das portas de Hércules e para lá ainda do Perú, a investigação científica e tecnológica estava perfeitamente organizada, havendo uma preocupação clara com as aplicações e o uso destas para benefício da sociedade em geral. A organização dessa nova Atlântida poderá ter servido de base à fundação da Royal Society, em Londres, que se viria a concretizar em 1662, escassas décadas depois do romance de Bacon.
Repare-se que a utopia da Nova Atlântida não consistia em fazer todas as coisas mas apenas todas as coisas possíveis, isto é, as coisas permitidas pelas leis da Natureza, cujo respeito era pressuposto ao contrário do que acontece noutras obras de ficção científica. E o que, apud Bacon, permitiam as leis da Natureza? Os exemplos que encontramos de antecipação científica são, de facto, extraordinários. Conta Bacon:
- Em cavernas profundas efectuavam-se “refrigerações e conservação dos corpos”. Além disso, imitavam-se aí minas naturais para produzir novos metais artificiais. Trata-se, sem dúvida, de uma premonição da moderna criogenia e da ciência de materiais. A aspiração de imortalidade, que é tão antiga como o homem e que pode ser considerada a “pedra filosofal” da Medicina, reaparece noutra passagem, onde Bacon fala de poços e fontes artificiais, algumas das quais com água, chamada “água do paraíso”, muito boa para a “saúde e prolongamento da vida”.
- Torres extremamente altas eram usadas, por exemplo, para a “vista de diversos meteoros - como ventos, chuva, neve”, etc. Alguns desses sítios eram habitados por eremitas, com instruções precisas sobre o que deviam observar. O correspondente moderno serão talvez os satélites meteorológicos, que têm a vantagem em relação às torres de dispensar tripulação... A visão de Bacon ia mais longe pois fala da simulação do tempo, ao referir casas espaçosas onde se imitavam fenómenos meteorológicos (o correspondente moderno serão os túneis de vento), e do controlo do tempo, ao referir “máquinas para aumentar e reforçar os ventos em várias direcções”.
- Em jardins cultivavam-se árvores e flores que “crescem mais rapidamente do que no seu curso natural”. Afirma Bacon: “Também fazemos artificialmente com que sejam muito maiores do que na Natureza e os seus frutos maiores e mais doces, ou de sabor, cheiro, cor e forma diferentes dos naturais. E muitos deles são feitos de maneira a ter uso medicinal”. É a antecipação das modernas genética, biotecnologia e farmacologia. O que foi dito para o reino vegetal aplica-se também ao reino animal, incluindo a criação de animais para experimentação, tão antiga pelo menos como Harvey mas que é hoje alvo de controvérsia. “Encontramos meios de fazer misturas e copulações de vários tipos, que produziram novas espécies (...) Não fazemos isto ao acaso, mas sabemos à partida de que maneira e mistura, e de que espécies as criaturas surgem”.
- Havia fornos de vários tipos, “que guardam uma grande variedade de fogos (...). Mas acima de tudo dispomos de calores que imitam o calor do Sol e de outros corpos celestes”. Existiam ainda “instrumentos que geram calor apenas a partir do movimento” (uma antecipação do conceito de calor que só apareceu no século passado com a Termodinâmica). Se substituirmos a palavra calor por energia, vêm-nos logo à mente os modernos meios de produção de energia, incluindo a fusão nuclear artificial que, de facto, imita na Terra a produção de energia no Sol mas que ainda não tem rentabilidade técnico-comercial.
- Em certas casas faziam-se “demonstrações de todas as luzes, radiações e cores”. “Representamos também todas as multiplicações de luz, que transportamos a grandes distâncias, e fazemos tão finas de modo a discernir pequenos pontos e linhas”. Pensamos logo nas variadas técnicas que hoje dispomos com base na luz laser, incluindo a transmissão por cabos ópticos. Bacon fala ainda de telescópios, para “ver objectos distantes, no céu e em sítios remotos”, e microscópios, para ver “corpos pequenos e minúsculos de uma forma perfeita e distinta” (lembremos que o microscópio foi obra de um holandês obscuro em 1590).
- Noutras casas praticavam-se e demonstravam-se “todos os sons e o meio de os gerar”. Pode-se aqui pensar nas tecnologias de alta fidelidade e na síntese computacional de sons. E na linguagem artificial: Bacon diz que “representamos e imitamos todos os sons articulados e letras, e as vozes e notas de bestas e pássaros”. E ainda nas telecomunicações: “Temos todos os meios de transmitir sons em caixas e tubos, em linhas e distâncias estranhas”.
- Noutras casas ainda preparavam-se “máquinas e instrumentos para todos os tipos de movimento”. Bacon não se esquece de referir instrumentos de guerra, “novas misturas e composições de pólvora, fogos inextinguíveis a lavrar no mar e fogos de artifício de toda a variedade” (haverá aqui uma premonição de Hiroshima?). “Imitamos também voos de aves, e temos várias modalidades de voo no ar. Dispomos de navios e barcos para andar debaixo de água”. Associamos esta última descrição à moderna tecnologia militar, incluindo os poderosos meios aéreos e navais hoje disponíveis.
- Existiam casas encerrando ilusões dos sentidos, onde “se representam todos as formas de malabarismo, falsas aparições, imposturas e ilusões, e falácias”. Podemos hoje associar hoje essas casas à simulação computacional e à realidade virtual. Mas Bacon é cauteloso sobre as ilusões: “Mas nós detestamos todas as imposturas e mentiras, de tal modo que proibimos severamente os nossos companheiros, sob pena de ignomínia e castigo, de mostrar alguma obra ou coisa natural de modo adornado, mas apenas pura tal como é, sem qualquer afectação de estranheza”.
- Finalmente, havia uma “casa matemática, onde são representados todos os instrumentos, tanto de geometria como de astronomia”. Esta casa singular e isolada é quase a única concessão à ciência pura.
Na sociedade perfeitamente organizada de habitantes da Nova Atlântida, Bacon distinguia os “mensageiros da luz”, que traziam o conhecimento de outros países, os “depredadores”, que coleccionavam experiências dos livros, os “homens-mistério”, que coleccionavam experiências das artes mecânicas, os “pioneiros” ou ”mineiros”, que realizavam as experiências, os “compiladores”, que faziam a análise dessas experiências, os “beneficiadores”, que procuravam as aplicações, os “homens-luz”, que projectavam novas experiências com base nos resultados anteriores, e os “inoculadores”, que realizam estas novas experiências. Finalmente, havia os “intérpretes da Natureza” que, sempre com base experimental, realizavam “grandes observações, axiomas e aforismos”: chamar-lhes-íamos hoje os físicos teóricos. Os sábios não podiam dispensar um grupo numeroso de noviços, aprendizes, servos e ajudantes. Eram necessárias reuniões, para decidir quais as invenções, descobertas e experiências que deviam ser publicadas e quais as que não deviam: “todos faziam um juramento para esconder aquelas que achávamos melhor manter secretas; embora algumas destas revelássemos às vezes ao estado e outras não”. Associamos esta descrição à moderna hierarquia científica: num número do “CERN Courier”, boletim do Centro Europeu de Investigação Nuclear, assemelham-se as grandes equipas científicas num laboratório internacional à sociedade da Nova Atlântida; o grande acelerador seria uma nova Casa de Salomão. Pensamos também nos processos de aprendizagem, prática e transmissão da ciência, aos quais são imprescindíveis os estudantes de licenciatura, mestrado e doutoramento, por um lado, e os técnicos, ajudantes de laboratório e operários, por outro. E, por último, associamos a descrição de Bacon ao modo hodierno de publicação científica, com a peritagem efectuada por referees, e às actuais questões de ética que surgem, por exemplo, na relação entre cientistas e governantes, entre o saber e o poder.
Em resumo, a visão baconiana assenta no empirismo encarado como colecção e exposição de factos, na organização minuciosa da actividade científica e na ênfase dada às aplicações da ciência. Parece uma visão moderna, até porque foi realçado aquilo que ficou e não aquilo que passou (ficaram de lado asneiras crassas como, por exemplo, a geração espontânea de animais no ar). Mas o que resta hoje, de facto, de tudo isso? Qual é a verdadeira actualidade da profecia de Bacon? Vejamos os principais problemas.
Embora os protocolos experimentais sejam a fonte de inspiração e o instrumento de validação das ciências naturais, Bacon é demasiado empirista para os tempos que correm: na ilha perdida experimentava-se e demonstrava-se tudo e mais alguma coisa quando a experiência, como Bacon de resto eventualmente admite, exige ideias que a guiem e a ajudem, teorias que a enquadrem e a julguem. No CERN, as grandes experiências procuram decifrar forças fundamentais e princípios de simetria mais na tradição de Kepler e Galileu do que na de Bacon. Quanto à organização da ciência que foi descrita ela também se nos afigura demasiado extensa e rígida, embora nos grandes projectos de carácter militar como o de Los Alamos ou nos grandes laboratórios civis como o CERN a coordenação de esforços seja condição necessária de eficácia. As sociedades científicas modernas, como o Instituto de Física britânico, são associações que congregam pessoas individuais com interesses afins e não organismos que estabelecem e conduzem programas concretos de pesquisa. Finalmente, quanto ao sentido aplicado do conhecimento, reconheça-se que Bacon se revelou aí mais um político e jurista do que um cientista. Não é difícil encontrar ainda hoje dirigentes que pretendem favorecer certas aplicações da ciência que parecem tiradas do catálogo de Bacon. E até alguns universitários que julgam que o seu ofício consiste primordialmente em promover a indústria, o comércio e o concomitante lucro. Infelizmente, persiste um equívoco a respeito das aplicações da ciência que porventura remonta aos tempos renascentistas.
Esse equívoco consiste em ver e julgar a ciência apenas pela utilidade dos seus frutos mais visíveis, quer dizer, pelos benefícios e malefícios que consegue transmitir à sociedade. Bacon não fez o elogio da ciência inútil, não louvou a casa da Matemática com a intensidade com que soube realçar por exemplo “os fogos inextinguíveis a lavrar o mar”. Vejamos, paradoxalmente, como Oppenheimer, o cientista-chefe do projecto Manhattan, faz o elogio da ciência inútil, no seu livro “Ciência e Saber Comum”: “Consideramos razoável e justo que a protecção da ciência pela sociedade se baseie no poder crescente derivado do saber. (...) Mas nós sabemos também quão pouco desse saber novo e profundo que alterou a face do mundo, que modificou - e cada vez mais e mais profundamente deve modificar - a visão do mundo pelo homem, resultou de uma busca de fins práticos ou de um interesse de exercer o poder que o saber confere. Para a maior parte de nós, na maioria desses momentos em que nos sentíamos mais livres de corrupção, era a beleza do mundo da Natureza e a estranha harmonia da sua ordenação que se impunham ao nosso espírito, que nos amparavam, nos inspiravam e guiavam”.
Pessoalmente, acredito mais na utopia da ciência com valor per se e eventualmente inútil do que na utopia da ciência prática e supostamente útil. A história dos últimos três séculos mostra à saciedade que a ciência partiu sempre da simples e perene matriz da curiosidade intelectual quando mais se conseguiu multiplicar em aplicações e benfeitorias. Revelou-se fecundo aquilo que parecia estéril. A electricidade, por exemplo, circula em nossas casas porque se quis saber qual era a relação entre o magnetismo dos ímanes e o fluido eléctrico num fio. As radiocomunicações são possíveis porque se quis saber a natureza íntima da luz. O feixe laser passa nos cabos ópticos porque se quis saber as propriedades da radiação atómica. Saber mais, a ambição resumida na divisa “Plus Ultra”, é uma exigência humana, perfeitamente independente da putativa aplicação desse saber. Na expressão insubstituível de Oppenheimer: “a nossa fé é a fé de que o saber é um bem em si mesmo”. Saber é sempre melhor do que não saber. Não me perguntem, por favor, o que significa “melhor” porque é difícil explicar. Se perguntarem, invocando os crimes e as atrocidades que foram e são cometidos em nome ou por meio do saber, poderei responder com os crimes e atrocidades ainda maiores que foram cometidos em nome da ignorância. E pior do que não saber é, decididamente, não querer saber!
Partilho com Medawar e outros “melhoristas” a ideia de que o mundo tem, em média, melhorado e que ele pode ainda progredir no futuro, isto é, a vida é e poderá ser melhor para mais gente. Nesse processo, a ciência desempenha um papel único embora de forma alguma exclusivo. A ciência não é tudo mas a ausência de ciência poderá ser o fim de tudo para bastante gente. Esta visão é oposta à das teses “relativistas” do filósofo suíço Paul Feyerabend, que não aceita a ideia de progresso e menos ainda a ideia de progresso suportado pela ciência e pela técnica. É muito difícil discutir com ele mas julgo que não tem razão.
Vejamos com um exemplo concreto como o mundo está hoje diferente, melhor diria eu, devido a um progresso incidental, mais de carácter técnico que científico, obtido num grande laboratório de investigação fundamental, precisamente o CERN. Um dos protocolos nos quais se baseia hoje a Internet é a WWW - World Wide Web, a teia mundial de informação. Esse software, utilizado actualmente para todo o tipo de actividades e relações humanas, foi desenvolvido só e apenas para uma equipa de vários cientistas partilhar informação escrita e visual à distância. Hoje e afinal, os três W são usados para tornar o mundo mais pequeno e mais unido: anda-se no mundo sem se sair do sítio, de um modo que nem Bacon foi capaz de imaginar. Para obter o texto completo da sua “Nova Atlântida”, comodamente instalado no meu computador doméstico, só tive que pedir a um computador situado alhures que me dissesse o que havia na teia sobre “Francis Bacon” (só depois me apercebi que havia um pintor inglês contemporâneo com o mesmo nome, que dificultava a pesquisa: era preciso distinguir a filosofia da arte). Daí até ter o texto completo da “Nova Atlântida”, embora sem capa nem ilustrações, primeiro no disco duro e depois no papel da impressora foi um instante. Do mesmo modo, poderia ter sabido o pensamento e a obra de um outro autor clássico qualquer.
Na minha biblioteca, existem, portanto, muitos livros que lá não estão. A Internet é talvez a mais moderna das Casas de Salomão, um sítio onde os sábios como Bacon facultam o que sabem e os menos sábios como eu podem ir incógnitos à procura de sabedoria, só para a usufruir ou mesmo para a julgar. O saber continua a ser poder, e é também o poder de saber mais. O mundo transformou-se numa pequena ilha, povoada não tanto de demonstrações práticas e categóricas, mas de sabedorias permanentemente criticáveis e actualizáveis.
REFERÊNCIAS
- Bacon, Francis, “The New Atlantis”, endereço na Internet http://www.bartleby.com/3/2/
- Carrilho, Manuel Maria, “A Filosofia das Ciências (De Bacon a Feyerabend)”, Editorial Presença, Lisboa, 1994.
- Drake, Stillman, “Galileu”, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1981.
- Ekspong, Gosta, “ ‘Salomon’s House’: Has particle physics made Francis Bacon’s vision come true?”, in CERN Courier, vol. 36, n. 4, Jun. 1996, p. 10.
- Feynman, Richard, “O Que é uma Lei Física”, Gradiva Publicações, Lisboa, 1989.
- Fiolhais, Carlos, “Um filósofo sem razão”, in Público, 14/Fev/1992.
- Gaarder, Jostein, “O Mundo de Sofia - Uma Aventura na Filosofia”, Editorial Presença, Lisboa, 1995.
- Holton, Gerald, “Introduction to Concepts and Theories in Physical Science”, second edition, Princeton University Press, Princeton, 1985.
- Medawar, Peter, “Advice to a Young Scientist”, Harper and Row, Londres, 1979.
- Medawar, Peter, “The Limits of Science”, Oxford University Press, Oxford, 1984.
- Oppenheimer, J. Robert, “Ciência e Saber Comum”, Livros do Brasil, Lisboa, sem data.
- Simonyi, Karoly, “Kulturgeschichte der Physik”, Verlag Harri Deutsch, Thun - Frankfurt am Main, 1990.
- Teichmann, Juergen, “Wandel der Weltbildes”, Wissenschaftliche Buchgeselschaft, Darmstadt, 1983.
- Wightman, W. P. D., “Science in a Renaissance Society”, Hutchinson, Londres, 1972.
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7 comentários:
Eu deixava só uma meditação ao Prof. Fiolhais, a propósito da legitimidade ou sequer da possibilidade de tentar controlar o saber.
De um modo geral, uma tecnologia corrente (TV, Telefone, automóvel), demora uns vinte anos a chegar dos países mais desenvolvidos aos menos desenvolvidos. Mas acaba sempre por chegar. O conhecimento não conhece fronteiras.
Há uma tecnologia - a nuclear - que por meio de um esforço hercúleo se tentou conter durante dezenas de anos, conseguindo-se que ficasse confinada, primeiro, a um só país e, depois, a meia dúzia de países mais ou menos fiáveis.
Hoje, 60 anos depois, essa tecnologia está em vias de cair nas mãos de alguns dos países mais atrasados do planeta. Os países intermédios só não a têm porque não querem. Os calafrios na espinha são evidentes entre os grande dirigentes mundiais.
Mais 30 anos e, se calhar, uma bomba nuclear constrói-se numa garagem de um curioso.
O que acontecerá então?
E quando se descobrir algo ainda mais poderoso do que o nuclear?
Se um cientista amanhã descobre uma forma simples e engenhosa de produzir fusão nuclear de forma acessível a qualquer terrorista?
Não há dúvida de que o saber é poder e não restam também dúvidas de que o saber não pode ser contido. É mesmo a caixa de pandora que não pode voltar a ser fechada.
Nunca aconteceu ao Prof. Fiolhais perder o sono por causa disso?
Bolas, que isto é um texto grande demais para um blog. Não há para aí um «ler mais» no blog?
Um testamento destes não se põe num blog sem um ler mais!
Permita-me discordar da internet como meio de comunicação de conhecimento científico. Enquanto estudante universitário já, de facto, me servi da "teia" para muitos trabalhos, mas quando é preciso maior rigor científico, a informação está toda na mão das editoras como a SpringerLink que cobra 60$ (ás vezes mais) por um artigo científico publicado em revista. Ou seja, o princípio continua o mesmo: ou se tem recursos (i.e. dinheiro...) ou se fica a ver passar navios...
Retomo um comentário já aqui feito por alguém: e se um individuo qualquer cheio de sabedoria permanentemente criticável e actualizável inventasse um método expedito de construir uma bomba nuclear e espalhasse as instruções por toda a internet?
Cara Rita
tem toda a razão: devia haver um "ler mais", mas parece que ha
dificuldades tecnicas. Os
proximos textos vao ser curtinhos.
Ou então vão ser só imagens, prometo. É a maneira de compensar
um excesso ocasional...
Carlos Fiolhais
Caro José Luís Malaquias:
Tenho dormido muito bem!
adoro o poder coercivo e provocador que os meios digitais nos proporcionam, consciencia e consciencias que expressao de poder
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