domingo, 8 de abril de 2007
SOBRE HUMANOS E OUTROS ANIMAIS
A vida é feita de baixos e altos. Ora estava eu, há pouco tempo, num dos meus raros momentos em baixo quando deitei mão a um livro que põe em baixo qualquer um. Eu só não fiquei porque já estava. Paradoxalmente ia a bordo dum avião e, por isso, fisicamente em alto, embora psicologicamente em baixo. O livro intitula-se Sobre Humanos e Outros Animais, foi publicado pela Lua de Papel e é seu autor o inglês John Gray, um ideólogo de direita que foi apoiante de Margareth Thatcher e é hoje professor na London School of Economics (ver aqui uma sua entrevista a uma revista brasileira).
O livro é um panfleto anti-humanista: defende a tese bastante estranha de que o homem é um animal essencialmente destruidor e que não tem nem pode ter qualquer esperança. Eu que que me considero um humanista, informado pelos valores iluministas do saber e da possibilidade de progresso baseado nele (valores esses mesclados com os da democracia, da liberdade e da tolerância), acho essa ideia completamente aberrante. Já não lia nada tão aberrante desde os ataques à ciência escritos pelo filósofo Paul Feyerabend. Eu não concordo com Gray quando ele diz que "o conhecimento não nos torna livres, deixa-nos como sempre fomos, presas de toda a espécie de loucuras". Nem quando ele diz que os "seres humanos são como qualquer outra praga animal". Nem quando ele diz que "a 'humanidade' não existe". Nem ainda quando ele diz que a ciência é uma forma de religião: "os crentes seculares - arrebatados pela sabedoria convencional da época - mostram-se presas de dogmas avessos à crítica."
Que nos oferece o autor como filosofia de vida? Nada, rigorosamente nada. Não fazer nada porque nada vale a pena. Mas o niilismo nunca conduziu a sítio nenhum, ao contrário do esclarecimento e da vontade. Não é que eu desconheça a destruição que o homem é capaz de fazer e na qual John Gray põe a tónica. Não, não sou um optimista ingénuo. Mas um cientista é, por definição, um optimista. Alguém que acha que o ser humano é capaz de saber mais e, com base no conhecimento ampliado, empreender e, solidariamente, viver melhor. O homem pode ser um animal, mas é um animal de causas e a as suas causas podem ter efeitos. A história, embora feita de baixos e altos, tem mostrado essa possibilidade. Eu não gostaria nada de ser um servo da gleba na Idade Média e muito menos de ser um escravo egício. Muito provavelmente nem sequer estaria vivo com a idade que tenho!
É curioso como Gray cita Fernando Pessoa ("O gato espoja-se ao Sol e dorme ali. O homem espoja-se à vida, com todas as suas complexidades, e dorme ali"), mas Pessoa são tantas pessoas (a frase é de Bernardo Soares) que facilmente ele encontraria uma citação contrária do mesmo autor. Podia, com maior coerência, ter citado José Saramago, que também assume uma atitude radical sobre o ser humano (ele declara que somos umas "bestas" e que "não temos solução", numa entrevista publicada na última revista "Egoísta") . Ora eu, pelo meu lado, simpatizo com partes de Pessoa, mas não simpatizo com as diatribes de Saramago, nomeadamente quando ele diz que a ciência agrava os males do mundo.
Enfim, a tese de Gray vale como uma provocação à qual se pode responder na prática. O meu avião (mas não mostram as viagens de avião a capacidade de progresso e de ganho de liberdade?) aterrou e eu fui, com esperança, fazer o que queria fazer. Cheguei fisicamente abaixo, mas achei que era a altura de, psicologicamente, voltar ao alto. O deprimente livro teve pois um efeito anti-deprimente. De resto, como pode alguém em baixo fazer alguma coisa?
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15 comentários:
Pelos vistos o John Gray conseguiu escrever este livro. Se calhar não estava suficientemente em baixo...?! Parece q hodiernamente é moda dizer-se o q os outros gostam de ouvir/ler para justificarem os males de que padecem a sua vida, a sua sociedade, o seu mundo, o seu mal-estar. Será q o senhor Cinzento entrou nessa onda? Prefiro tb o optimismo e a crítica construtiva. Mas mesmo assim fiquei com vontade de dar 1 vista de olhos ao dito texto. Nem q seja uma leitura oblíqua. Obg. Um abraço. Lu
Aconselho a leitura desta entrevista ao prémio nobel da economia em 2005.
Ma grande folle de soeur,
Espero que consiga ouvir a música do Tony Carreira ao mesmo tempo que leia os livros de Paula Bobone e Lili Caneças, com o mesmo optimismo e sentido crítico que aqui refere.
Boas audições e leituras e boas construções de crítica que eu terei o prazer de derrubar!
:-)
Rolando Almeida
Eu não enveredo pelo pessimismo do autor John Gray, mas não há dúvida que o conhecimento pode aprisionar-nos e até destruir-nos.Veja-se a este respeito a ciência que nos deu em parte o domínio da natureza mas ao mesmo tempo instrumentaliza-a e concebe-a como uma matéria que importa explorar
em vez de um ser que urge inteligir.
Também me parece que vive-se hoje um excesso de conhecimento, apetecendo dizer que é feito do conhecimento que se perdeu com a informação, que é feito da sabedoria que se perdeu com o conhecimento.Às vezes parece que o conhecimento é como uma montanha em cima dos nossas costas que torna difícil
a mínima faísca de originalidade.
Cumprimentos.
Caro Carlos Fiolhais:
Confesso que não li o livro em apreço, já tinha lido a entrevista que linka e ouvi a entrevista ao Carlos Vaz Marques na TSF.
Percebo o que diz quando se refere ao pessimismo dele que é de facto profundo, mas a mim não me incomoda. Ele de facto apoiou a Margaret Tatcher mas também apoiou o Tony Blair (em tempos), por isso não sei se o John Gray se considera de direita.
Quanto à opinião dele sobre a ciência eu tenho uma leitura muito diferente, suponho que ele concorda com o Carlos que a ciência traz progresso material. Aquilo que ele salienta é que a ciência em si não traz progresso civilizacional, de resto isso não é novidade. Um bom case study são as discussões entre os cientistas durante a segunda grande guerra e a guerra fria sobre o armamento nuclear.
O que me seduz na realidade é o pessimismo antropológico dele. Há teorias que alegam que a personalidade humana é uma construção, uma espécie de máscara que permite à pessoa contemplar-se sem grandes angustias. Curiosamente a mim o pessimismo antropológico do John Gray também não me causa grande angustia.
Caro Anónimo,
refere:
"não há dúvida que o conhecimento pode aprisionar-nos e até destruir-nos.Veja-se a este respeito a ciência que nos deu em parte o domínio da natureza mas ao mesmo tempo instrumentaliza-a e concebe-a como uma matéria que importa explorar
em vez de um ser que urge inteligir."
Discordo com a sua afirmação e tenho um argumento intuitivo para esclarecer: seria o mesmo que escrevessemos aqui sobre o objecto "faca" e nos estivessemos a lamentar sobre a quantidade de assassinatos feitos com facas. Ainda assim poderíamos afirmar que são muitos mais os que usam a faca para cortar batatas para a sua alimentação.
Que se faça um mau uso da ciência, tal não desbeneficia em nada a ciência. Era também o mesmo que eu dar com o meu telemóvel na cabeça do vizinho e, de seguida, afirmar: "Vês no que dá a ciência?". Faz isto sentido? Argumentar desta forma não produz quaisquer resultado útil.
Rolando Almeida
Caro Rolando Almeida
Eu não me refiro ao mau uso da ciência mas à atitude intrínseca da ciência perante o mundo. Poderá encontrar-se essa atitude originária em Descartes, na razão omnipotente que geometriza, quantifica e, com isso, empobrece a nossa visão do mundo.
Quero tb que fique claro que não nego o carácter libertador da ciência, apenas digo que devemos refrear o nosso entusiasmo no progresso da ciência e do
conhecimento e referir que esse progresso tem de ser acompanhado do respectivo progresso moral.
Olá Silvestre,
Explicado. mas o que diz em relação a Descartes é falso. É evidente que Descartes estava à procura de uma crença fundacional que pudesse justificar o conhecimento. Mas daí a afirmar que geometriza a razão, comete-se um exagero tão grande tal como se dissessemos que David Hume geometriza a experiência ou Kant procura geometrizar experiência e a razão. É claro que a ciência não é um saber acabado, mas como referia Einstein, «é a coisa mais preciosa que temos». De resto, acreditar em deus é geometrizar a vida humana e acreditar que o Benfica é o maior clube português será geometrizar o futebol. E é por esta razão que penso que o argumento do Silvestre falha.
Rolando Almeida
Eu já li o livro aqui referido e confesso que tenho sentimentos mistos em relação a ele.
Por um lado parece-me que John Gray tem razão quando fala dos "dogmas seculares". É bem verdade que por vezes os cientistas têm dificuldade em aceitar que alegadas verdades ciêntificas possam ser criticadas e se comportem em relação à ciência da mesma maneira que um fanático religioso se comporta em relação ao seu manifesto de escolha.
A citação usada neste post ("o conhecimento não nos torna livres, deixa-nos como sempre fomos, presas de toda a espécie de loucuras") é outro dos pontos em que concordo com John Gray. Parece-me que a citação não está correcta (não tenho a certeza e o mais provável é estar errado). O que ele diz é que, apesar do conhecimento e da ciência nos satisfazerem algumas necessidades, eles não fazem o facto de termos necessidades desaparecer. Parecendo algo de bastante óbvio, por vezes há quem não compreenda isto.
Por outro lado, o lassez faire dele não me agrada. Um exemplo é o aquecimento global em que o que ele parece advocar é deixar-mos a terra levar o seu caminho (baseando-se para isso nas teorias de Lovelock) mesmo que isso signifique a extinção da espécie humana (e, com ela, muitas outras), que ele diz ser inevitável. Ora, se o que ele diz é verdade e somos animais como os outros, também nós temos instintos de sobrevivência e parece-me que o que devia-mos fazer era segui-los.
Para ser franco, considerei as opiniões mais "puramente" filosóficas (sobre ética por exemplo) dele bem mais interessantes.
Caro Rolando:
Queria referir-me à ideia de subjectividade moderna, do sujeito como fundador e senhor de si próprio e,consequentemente, na sua concepção da natureza como máquina que o homem tem de saber operar. Sintomático, por exemplo, é a perspectiva que Descartes tem dos animais como meras máquinas sem alma, que,aliás, decorre do dualismo corpo-mente por ele defendido.
A ciência tem na sua origem concepções como estas que, apesar de eficazes, tem deficiências graves que tem de ser corrigidas.
Em relação à questão de animais terem almas ou não uma solução interessante é a de Douglas Hofstaedter no seu livro Gödel, Escher, Bach. Está explicada no prefácio à edição do vigésimo aniversário do livro (ainda não li tudo).
Ele usa o conceito de "almas maiores" e "menores". tem a ver com o seu conceito de autoreflexão (baseado nos teoremas de Gödel). A diferença entre almas humanas e animais está na diferente quantidade de "Strange Loops" (loops autoreferenciais). Os humanos tèm mais.
PS - Alma aqui significa simplesmente o "Eu"
Sr Rolando Almeida:
Que falta de seriedade a minha! Por andar a ler e comentar textos que o senhor, se calhar, na sua clarividência e sapiência, acha que não devo ler, aconselhando-me outros que o senhor avalizou. Eu agradeço o que pessoas sábias, experientes e cultas escrevem (Por isso me despeço com um obrigado e um abraço). Parecia-me q o mote aqui era: transmissão de ideias, saber e crítica construtiva com abertura de espírito. Não sei se devo continuar a pensar o mesmo ... parece q o senhor sente prazer em derrubar? Derrubar o k? O k os outros pensam e escrevem tão livremente quanto você? Explique-me a ver se entendo. Devo ler John Gray, o Senhor Rolando Almeida, Lili Caneças, Tony Carreira ou Paula Bobone? Tenho fraco poder de entendimento.Talvez possa ser o meu mentor? O q acha?
Caro Carlos,
O livro em análise é de facto uma provocação de Gray e contém alguns excessos. Mas o seu post contém algumas imprecisões em relação ao autor. Ele não é um ideologo ou teórico da direita. Ele FOI um ferveroso apoiante de Thatcher, passou pelo New Labour, e é hoje alguém mais próximo dos ecologistas. Ele, como tantos outros desde o sex xix, desconfia do optimismo iluminista e das suas ideologias de progresso (atitude sensata?). Mas não tem necessariamente um discurso anti-ciência (ele defende, por exemplo, a mobilização tecnologica para combater o aquecimento global, a escassez de recursos energéticos, alimentares, etc...).
Um dos falhanços do livro é ele abusar de um pseudo-naturalismo (se bem me lembro, pois li o livro há uns anos, quando ele saiu em inglaterra) para falar da condição humana, abordagem que me parece deixar muito a desejar
Caro Fiolhais, discordo.
A viagem foi curta.
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