«Diga-me onde mora o amor, no coração ou na cabeça?» Shakespeare in Mercador de Veneza.
A história da Medicina é indissociável da história da evolução e encefalização do Homem. De facto, é o cérebro não só alvo como razão de práticas médicas pelo menos desde o advento do homem anatomicamente moderno.
O homem é o mamífero superior cujas crias nascem mais impreparadas para o mundo, numa fase em que o seu cérebro mal começou a desenvolver-se. Isto é, nos humanos o cérebro continua a crescer com taxas próximas às fetais durante cerca de 1 ano; nos outros mamíferos (incluindo os restantes primatas) o crescimento rápido do cérebro ocorre apenas antes do parto.
O desenvolvimento de um cérebro (e crânio) maior não acarretou apenas vantagens. Por um lado, um cérebro maior necessita de mais energia - o nosso cérebro consome cerca de 1/5 da energia que produzimos - ou seja, implica uma dieta mais energética, e por outro lado para um bipedalismo eficiente a pélvis é necessariamente mais estreita.
O parto é assim um acontecimento muito arriscado nos humanos pois para além de um crânio do nascituro comparativamente maior e uma pélvis materna menor, durante o nascimento a cabeça do feto tem de efectuar uma rotação complexa. Ou seja, mesmo com o nascimento numa fase que podemos considerar fetal, a cabeça do nascituro é muitas vezes demasiado grande em relação à pélvis materna.
Na realidade, todos os nascimentos humanos poder-se-iam considerar abortamentos de fetos viáveis. Esse é quiçá o acaso da selecção natural que resultou no maior trunfo da Humanidade, aquele que distingue o ser do Homem do ser dos demais animais, já que a selecção natural privilegiou os exemplares capazes de dar à luz fetos viáveis sensivelmente a meio do tempo de gestação «normal», fetos com poucas conexões neuronais estabelecidas mas a cujo nascimento uma maior percentagem de gestantes sobreviviam. E é um trunfo que a evolução proporcionou porque o desenvolvimento cerebral extra-uterino é muito mais rico em estímulos, o que permite uma «programação» francamente mais diversa e flexível que a possível uterinamente.
Por outro lado, os perigos associados ao parto humano levaram ao desenvolvimento de comportamentos sociais únicos nos humanos, decorrentes da imaturidade da cria e da necessidade de cooperação na altura do parto - o homem é a única espécie em que a fêmea necessita auxílio na altura do parto pelas razões expostas. E esses perigos criaram ainda a necessidade do desenvolvimento de práticas que facilitassem o parto.
Existem poucos testemunhos das práticas médicas do Neolítico, embora a análise de crânios indique que já nessa altura se praticava a trepanação (perfuração do crânio), isto é, que existia uma cirurgia incipiente.
Mas é o Antigo Egipto a nossa fonte mais profícua de informação sobre a evolução da Medicina. Existem vários papiros médicos que indicam a existência de uma medicina «mística» em que diversas divindades se relacionavam com a medicina, nomeadamente Anubis, Sekhmet, Isis, Selket, Thoth e Hórus, e os médicos mais reputados eram sacerdotes. Existiam assim «especialistas» de acordo com o Deus que os médicos serviam e as escolas médicas funcionavam nos templos. A divindade médica mais importante era Imhotep (-2700/-2625), um arquitecto e alto funcionário da corte do faraó Neterierkhet-Djeser para quem construiu a primeira pirâmide conhecida, a pirâmide de degraus de Saqqara, posteriormente divinizado.
Nestes papiros é possível confirmar que, como em muitas outras mitologias, os antigos egípcios consideravam a saúde o estado natural do Homem, sendo a doença resultado de punição divina ou de acção maléfica dos mortos. Os papiros prescreviam tratamentos empíricos para doenças em que a causa era visível e tratamentos mágicos nos casos em que era impossível o diagnóstico. O papiro ginecológico de Kahun (que trata também de matemática e veterinária), escrito há quase 4 000 anos, por exemplo, descreve a primeira poção contraceptiva de que há registo histórico - eventualmente por efeito emético - à base de excrementos de crocodilo. Já os papiros médicos de Londres são quase só os papiros «místicos» de Londres uma vez que as curas são essencialmente mágicas. Também neste caso a saúde reprodutiva está em evidência na forma de uma série de incantações contra o aborto. O papiro de Ebers, com 110 páginas o papiro mais extenso, é igualmente uma mistura de medicina incipiente e mágica.
O papiro médico mais interessante de todos é para mim o «papiro cirúrgico de Edwin Smith», o único em que a parte mágica está ausente. O papiro, muito antes de Hipócrates (460-377 a.C.), considerado o pai da Medicina, tem inscrito o primeiro registo de uma luxação do ombro, mas o mais interessante deste papiro é a descrição não só da anatomia do cérebro como de problemas neurológicos decorrentes de traumatismos cranianos.
Este documento, escrito por volta de 1700 a.C., mas que contém referências a textos escritos até 3000 a.C., reporta, entre outros, 27 casos de traumatismos crânio-encefálicos. Podemos apreciar no papiro a descrição de lesões no cérebro - que apresenta «rugas semelhantes àquelas que se formam sobre o cobre em fusão» - que afectam partes distantes do corpo. O papiro contém a primeira referência às meninges, «uma membrana que recobre o cérebro», e ao líquido cefaloraquidiano - um líquido no interior da cabeça. Um dos casos relatados indica como a fractura do osso temporal do crânio provocou a perda da fala no paciente, ou seja, descreve o primeiro caso documentado de afasia, muito antes de Paul Broca o ter feito em 1861! Para além disso, o papiro de quasi 4000 anos indica que os médicos egípcios provavelmente já tinham a noção de que o cérebro controlava o movimento.
Não obstante toda a evidência empírica sobre a importância biológica do cérebro, os antigos egípcios aceitavam a primazia «mística» do coração e este - assim como outros orgãos sobrenaturalmente «importantes» como o fígado - era removido cuidadosamento durante o processo de embalsamento do cadáver e guardado num recipiente onde permanecia preservado para a viagem até ao «mundo dos mortos». O cérebro era displicentemente removido pelas narinas e deitado no lixo, o que indica considerarem os egpícios não ter o cérebro qualquer papel no «Além»!
Os atomistas escaparam a esta visão cardiocêntrica do Homem, induzida por superstições míticas que remontam aos antigos egpcíos, que foi mantida no cristianismo e persistiu até ao século XVII. Nomeadamente Demócrito classificou o cérebro como a «cidadela do corpo», o «guardião do pensamento e da inteligência». Outros pensadores como Hipócrates, Herófilo ou Galeno, colocaram igualmente o cérebro como responsável pelo ser do homem.
No entanto, a interrogação de Shakespeare permanece indelével no imaginário e léxico de muitos e é transposta para as telas de cinema em filmes como, por exemplo, Regressa para Mim, protagonizado (apropriadamente) por David Duchovny, o Mulder da série «Ficheiros Secretos».
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7 comentários:
Doutora Palmira:
Venho com muita frequência ao vosso blog. Vou gostando do que lá leio. Com prazer tenho lido o que lá vai deixando. Mas, permita-me um reparo. O seu uso do Português nem sempre é o melhor. Eu sei que escrever num blog é muitas vezes escrever à pressa (o que conta é o conteúdo e não a forma) e as "gralhas" vão aparecendo. Só que isto não são gralhas:
incantações por encantações,
cranio-encefálicas por crânio-encefálicas,
embalsamento por embalsamamento.
Não leve a mal estes reparos mas, se nós não defendermos a nossa língua, quem a defenderá? Um abraço de amizade.
Zé Velho
Os egípcios tinham uma medicina «mística», mas prever a mutação de um vírus, na minha opinião, não anda muito longe disso. Para mim, prever uma mutação é uma espécie de "prognósticos só no fim do jogo", mas ao contrário, ou seja, nem sequer sabemos se vai haver jogo e muito menos quando, mas sabemos o resultado - vamos levar uma abada! Os egípcios diriam que isto é castigo!
guida martins
Caro Zé Velho:
Tem toda a razão em relação ao crânio-encefálicas mas embalsamento ou embalsamamento são equivalentes. Em relação à incantação, desde que o Manuel Alegre a utilizou que a prefiro em relação a encantação :-)
Cara Guida:
Na realidade pode-se prever algumas mutações em bactérias. Aliás, faz-se isso em relação às bactérias patogénicas para prever quais as mutações que correspondem a resistência a antibióticos de forma a poder ter algo na manga no caso de as mutações aparecerem. Por exemplo por «evolução dirigida» (directed evolution). Pelo que percebi de uma conferência devotada ao tema, a questão é que normalmente há várias possibilidades e não se sabe quando nem qual irá aparecer.
Olá Professora Palmira,
Obrigada pela resposta e pelo esclarecimento. Eu estava a referir-me à previsão da mutação do vírus H5N1 (como deve ter reparado), que na minha opinião (de leiga), me parece exagerada. A forma como a possibilidade da mutação nos é apresentada, e tendo em conta a nossa ileteracia científica, parece ter como único objectivo provocar o pânico e permitir que os governos gastem o que for preciso em vacinas. Provavelmente sabendo a data do fim do prazo de validade do lote de vacinas, podemos prever uma nova investida do vírus. Não quero com isto dizer que não se deva estar atento e preparado para uma pandemia, contudo, não me parece a forma ideal de nos manter informados e preparados.
Mais uma vez obrigada e até à próxima.
guida martins
Isso é que é ser racionalista feroz... ai de nós!!! :)
Enfim, não sei se essa identificação clássica do amor com o "coração" tem tanto assim a ver com o órgão físico em si. Bem, em parte sim, por certo, já que as emoções ou arrebatamentos da alma - what soul?! ;) - de imediato se traduzem por alterações do ritmo cardíaco, ainda que tudo isso tenha causas fisiológicas perfeitamente conhecidas.
Aliás, de fisiologia percebe muito a medicina actual mas onde começa a causa e cessa o efeito? Bem, sem especular demasiado, a moderna medicina quimioterapêutica também se integra na corrente do realismo materialista que permeia ainda a Ciência neste início do séc. XXI. É altamente duvidoso que este paradigma possa sobreviver muitos anos mais, mas é ainda o vigente até que um novo modelo surja lá mais prà frente!
Mas se... e isto pode ser levado à conta de mera especulação, just food for thought... o modelo de uma "fisiologia" mais subtil, por assim dizer, que as antigas medicinais orientais, chinesa e ayurvédica, defendem, for correcto - o que NÃO invalida o actual conhecimento médico sobre o corpo humano, mas apenas lhe acrescenta outra dimensão - então de facto talvez haja lugar para o tal famoso "coração místico" de que falam as religiões.
Cause we feel in the heart, for a start...
Rui leprechaun
(...when love rushes in or falls apart! :))
PS: Resta acrescentar que, a este respeito, Deprak Chopra tem algumas obras muito provocantes. Talvez venha ainda a falar delas, se houver oportunidade. Chopra reintroduziu a prática da medicina ayurvédica no Ocidente, em particular nos EUA.
Por fim, e só para meditar um pouco mais, os aborrecimentos e contrariedades fazem-nos doer a cabeça, não é verdade?! Por sua vez, a sensação de medo ou pânico, por exemplo, manifesta-se fisicamente na "boca do estômago" ou algures na parte superior da região abdominal, na zona correspondente ao plexo solar ou celíaco. E qual a localização física da funda sensação de paz ou onde se manifesta a alegria e o contentamento genuínos, essa experiência maravilhosa de preenchimento que por vezes nos invade, quando sabemos que está tudo bem... everything's alright, really?!
Enfim, também há um plexo cardíaco, será que existe alguma relação?! I guess so... and such a secret is known since long ago!!! :)
Em favor do Coração... MUITO acima da razão... outro quantum de emoção... que até abrasa Plutão!!! :)
In your light I learn how to love.
In your beauty, how to make poems.
You dance inside my chest,
where no one sees you,
but sometimes I do,
and that sight becomes this art.
Jalal ad-Din Rumi
So... Love reigns supreme in the Heart...
Rui leprechaun
(...of the Beloved who prays: "Thou Art!" :))
PS: Still another true vision... sweet Love's decision!
I saw my Lord with the eye of the Heart.
I said 'Who are you?'
He answered 'You.'
Sufi tradition
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