domingo, 22 de abril de 2007

MULHERES LOREADAS


Passe a publicidade, que é completamente gratuita. A multinacional L’Oréal, que é líder mundial do mercado de cosméticos, patrocina há quase dez anos uma iniciativa exemplar em colaboração com a UNESCO, a organização das Nações Unidas para a educação, cultura e ciência. O “Chief Executive Officer” da L’Oréal e o Director-Geral da UNESCO anunciaram a 22 de Fevereiro de 2007, na sede da UNESCO em Paris, os cinco prestigiados “Awards for Women in Science” no valor de cem mil dólares norte-americanos cada um (os grandes prémios são cinco, um por cada continente). Essas distinções são não apenas para desenvolver as ciências, mas também as sociedades a uma escala global.

O prémio destina-se, de facto, a promover mulheres cientistas, mulheres que inovam. Dos 516 laureados até hoje com o Prémio Nobel em Ciências (Física, Química e Medicina) só uma dúzia são mulheres. E de todos os continentes, os Estados Unidos e a Europa são largamente maioritários no referido lote. Portanto, ser mulher e do terceiro mundo não parece ser propriamente um bom passaporte para o Nobel em ciências nem sequer um bom início de caminho para uma carreira em ciências. Os prémios pretendem combater a discriminação de género ou de geografia. O júri, presidido pelo Nobel da Física francês Pierre-Gilles de Gennes e assistido pelo Nobel da Medicina belga Christian de Duve, o Presidente-Fundador dos prémios, distinguiu este ano mulheres que trabalham em ciências dos materiais, nomeadamente uma química orgânica das Ilhas Maurícias (África) e uma físico-química do Chile (América do Sul), além de uma física de materiais dos Estados Unidos (Mildred Dresselhaus é talvez o nome mais conhecido de todos, fez trabalhos inovadores no MIT em nanotubos, esse produto-maravilha da nanotecnologia, e já foi Presidente da Sociedade Americana de Física e da prestigiada Associação Americana para o Avanço da Ciência), de uma química orgânica da Nova Zelândia e de uma física de polímeros da Rússia. O “boss” da L’Oréal, Lindsay Owen-Jones, um premiado homem de negócios britânico que começou a vida a vender shampôs, declarou na cerimónia de entrega dos prémios: “O mundo precisa da ciência e a ciência precisa das mulheres, mas as mulheres necessitam de apoio, encorajamento e reconhecimento para levar a cabo carreiras científicas bem sucedidas.” Falou também como convidada especial Susan Greenfield, directora da Royal Institution britânica, que é tão boa na investigação em neurociências como na divulgação da ciência. Foi Greenfield quem um dia respondeu à letra a um figurão do meio “biotech” (um macho-alfa muito agressivo) que a tinha acusado de ter “um feitio difícil”: “olha, se eu fosse um homem, não me dizias isso!”.

O engenheiro químico francês Eugène Schueller criou em 1907, há cem exactos anos, as primeiras tintas para o cabelo, lançando a “Société Française de Teintures Inoffensives pour Cheveux”, primeiro nome da L’Oréal. Desde então essa empresa sempre baseou a sua actividade na investigação científica, sendo a única fábrica de cosmética que cria nos seus laboratórios as principais moléculas que usa. Hoje, a L’Oréal, com sede em Paris, chega bem longe da cidade-luz, ao distribuir os seus produtos em mais de 130 países. Embora neste tipo de actividade, o “marketing” seja uma força bem mais poderosa do que a ciência, os produtos de higiene e de beleza que a L’Oréal fabrica estão baseados nos mais modernos e sofisticados conhecimentos científicos. No ano de 2005, registou mais de meio milhar de patentes, um desempenho acima de outras grandes multinacionais como a IBM. Por exemplo, a tão badalada nanotecnologia já encontrou aplicação nessa indústria, nomeadamente ao incorporar nanopartículas (pequenos agregados de átomos) com propriedades activas num substrato biodegradável. Ainda não se falava em “nanotech” e já essa empresa usava nanocápsulas nalguns dos seus cremes e loções. Uma vantagem óbvia é a maior transparência, que comunica frescura e juventude… Para desenvolver os seus programas de pesquisa a L’Oréal dá trabalho a cerca de 3000 investigadores em 14 laboratórios localizados em França, Ásia e América. E, consciente que os seus clientes são maioritariamente mulheres, sabe dar o exemplo: tem 55 por cento de mulheres no pessoal a trabalhar nos seus laboratórios de investigação… E sabe fazer publicidade: a imagem pública da empresa beneficia obviamente com o investimento de uma pequena parte dos seus lucros na recompensa do mérito científico das mulheres. Curiosamente, a principal accionista (detém um quarto da empresa) é uma mulher, Liliane Bettencourt, filha única do fundador da empresa, cujas acções lhe asseguram o lugar de segunda pessoa mais rica de França.

Segundo um estudo da UNESCO de 2006, só cerca de um quarto dos investigadores em todo o mundo são mulheres, mas a sua distribuição pelos continentes é bastante desigual: 46 por cento na América do Sul, mas só 29 por cento em África e 15 por cento na Ásia. Na Europa, as mulheres representam 32 por cento do pessoal dos laboratórios públicos, mas só 18 por cento dos laboratórios privados (a percentagem de mulheres-cientistas na l’Oréal é única no mundo!). Há um problema no mundo de falta de interesse das raparigas pelas ciências e tecnologias. Segundo um recente relatório da União Europeia: “As raparigas muitas vezes subestimam o seu próprio desempenho e a capacidade de realizar estudos de natureza técnica”. Não são capazes porque julgam que não são capazes, não porque não sejam capazes. Os prémios como os da L’Oréal podem estimular as jovens, quebrando esse círculo pouco virtuoso.

Eu não costumo ficar indiferente aos bons exemplos. Que fique claro que nunca recebi nada nem da L’Oréal. Nem da Carlsberg nem da Microsoft… Estou por isso perfeitamente à vontade para revelar que, desde que sei dos prémios l’Oréal e sempre que posso, escolho produtos dessa marca (sim, tem muitos produtos para homens!). E o mesmo acontece quando escolho cervejas Carlsberg (há uma Fundação Carlsberg que apoia as ciências e as artes, em Copenhaga, que é assim uma espécie de Gulbenkian dinamarquesa) e software da Microsoft (tem, em Seattle, um laboratório de investigação que emprega uma mão cheia de matemáticos e físicos teóricos de primeira apanha).

Além dos prémios de carreira, a L’Oréal tem também prémios internacionais e nacionais para “post-docs” (jovens com doutoramento há menos de cinco anos). Ainda nenhuma mulher portuguesa ganhou os prémios de carreira ou os prémios internacionais (a língua portuguesa é falada por algumas brasileiras premiadas), mas há um programa L’Oréal português que tem o apoio da Comissão Nacional da UNESCO.Entre nós as “Medalhas de Honra L’Oréal Portugal para as Mulheres na Ciência” são atribuídas desde 2004. São prémios para as novas que inovam! Várias jovens portuguesas têm visto reconhecidos com essas medalhas os seus evidentes talentos na investigação. Falemos só das primeiras laureadas porque elas simbolizam bem as restantes jovens cientistas portuguesas que inovam nos laboratórios onde todos os dias se faz o futuro. No primeiro ano em que surgiram as medalhas, foram distinguidas a bióloga Margarida Gama de Carvalho, do Instituto de Medicina Molecular da Universidade de Lisboa, especialista no metabolismo do RNA mensageiro que desempenha um papel em várias doenças hereditárias, que herdou genes do grande pedagogo Rómulo de Carvalho (que foi também o poeta António Gedeão) e a bioquímica Cláudia Pereira, do Centro de Neurociências da Universidade de Coimbra, especialista na doença de Alzheimer. Conheço pessoalmente e admiro muito as duas, que são mentes brilhantes. São descobridoras de mundos, construtoras do nosso futuro. O seu merecimento do prémio tem sido confirmado pelo seu trabalho posterior. Não lhes subiu o prémio à cabeça… Eu não sei se elas usam produtos da L’Oréal, mas talvez gostem de saber que pelo menos uma pessoa passou a usar produtos dessa marca por causa do prémio que receberam…

Curiosamente, Portugal é, no aspecto da participação das mulheres no trabalho científico ocupa, com os países bálticos, um lugar cimeiro: a percentagem de mulheres portuguesas com ocupação científica é mais do dobro da média europeia. São mulheres, em particular as mais novas, quem mais inova no nosso país. Nalguma coisa tínhamos de dar lições ao mundo!

4 comentários:

Anónimo disse...

Eu compreendo o objectivo de reforçar a importância do estímulo para promover a ciência. No entanto, no que toca à parte de ser este o motivo para a escolha dos produtos das empresas acho que é preciso ter cautela. Deixem-me focar apenas no caso da L'oreal.
O Professor Carlos Fiolhais, tal como muitas pessoas, talvez esteja a ser manipulado por publicidade. Alguns deixam-se influenciar por meninas bonitas num cartaz, outros por um produto colorido e "fixe", e outras ainda deixam-se influenciar quando a propaganda se refere a ciência. O que será interessante perguntar é: como é que a L'oreal conquista o seu capital?; porque é que o investe em prémios de ciência?. Ambas as perguntas são importantes e as respostas podem minar a moral da instituição. A primeira questão tem que ver com qual o nível ético com que se conquistou tamanho espaço na sociedade. A segunda questão tem que ver com a questão de haver ou não estímulos governamentais para o fazer, i. e., talvez esta seja uma boa maneira de fugir aos impostos. Esta segunda questão não me incomoda muito; apenas deixa cair a boa intenção caso a motivação seja mesmo outra que não a de contribuir para a ciência (mas do "mal" menor também pode vir o "bem" maior). Na primeira questão é que o "diabo" se esconde. É denunciado com frequência o uso de animais na preparação dos produtos da L'oreal (embora eles garantam que não).

Como podem ver aqui
http://www.guardian.co.uk/animalrights/story/0,,1733472,00.html

Ou aqui (embora já fora de data)
http://www.thepetitionsite.com/takeaction/981566550?ltl=1177250679

A aceitação ou não desta actividade depende de cada um. Eu não aceito e sempre que bem informado boicoto os produtos das empresas que praticam esta acividade. Nem sempre elas têm responsabilidade directa pois a legislação em muitos casos obriga a que tais testes sejam feitos. Mas os fins não justificam os meios e, por isso, se não é correcto fazer-se então não se faz.

P.S.: É incrível como a sociedade se esquece com que nível moral se acumulam fortunas; mais ainda a partir do momento em que essas fortunas promovem uma actividade idealista que serve quase sempre para solidificar um nome ou uma marca construída...

José Luís Malaquias disse...

O último parágrafo deste post foca um paradoxo curioso com que qualquer pessoa com uma consciência de igualdade entre os géneros tem de reflectir.
O que faz com que Portugal e os países bálticos tenham uma tão grande participação das mulheres na força activa e, em particular, na carreira científica, é a total ausência de um estado providência que garanta condições de usufruto da maternidade.
Enquanto que, em Portugal, terminados os meses da licença, a recém mãe tem de voltar logo ao trabalho, até porque poucos agregados familiares se aguentam com um só ordenado, nos países mais desenvolvidos são dadas condições para que a mãe, caso assim opte, fique até 2-3 anos em casa, a tomar conta do filho, continuando a receber uma fracção substancial do ordenado. Por essa altura, já normalmente teve outro filho.
Assim, ocorre com frequência, que uma recém mãe passe 5-6 anos fora do emprego. Ao fim desses anos, a reintegração no emprego é muito difícil, até porque deixou passar os anos de maior frescura intelectual, quando se fazem os doutoramentos e as progressões na carreira.
Resultado, em virtude dessas medidas de defesa da maternidade, as mulheres acabam por ser afastadas das suas carreiras, frequentemente de modo irreversível. Entre-se num instituto de investigação alemão e encontra-se mais de 50% de mulheres na faixa etária até aos 26 anos. Nas faixas etárias seguintes, elas desapareceram.

Não quero tirar desta reflexão nenhuma moral ou posição em relação à defesa da maternidade. Limito-me a constatar um facto.
E, a conclusão a que chego é que, se procurarmos defender as mães na maternidade, como fazem os países mais desenvolvidos da Europa, afastamo-las do poder laboral e empurramo-las para uma carreira dividida entre a maternidade e, eventualmente, um part-time mal pago.
Se não as defendemos, como fazemos em Portugal, prejudicamos as crianças, que são atiradas aos 4 meses para um infantário, prejudicamos as mães (e os pais) que andam numa correria entre o emprego e o infantário, mas não deixamos as mulheres abandonar as suas carreiras, razão pela qual elas têm muito mais responsabilidades nas nossas instituições.

É uma escolha que nunca é perfeita e um dilema para o qual não tenho resposta.

(continua)

José Luís Malaquias disse...

Tenho outra teoria, tão especulativa e tão pouco sustentada em factos como a anterior, mas suspeito que um dos motivos para as mulheres em Portugal terem um ascendente sobre os homens nas carreiras académicas tem a ver com os Numerus Clausus.
Os numerus clausus fazem com que o destino académico de um aluno seja definido muito cedo (agora nem tanto, que há muito mais vagas e menos candidatos, mas há uns 20 anos era assim). Quem não começasse a estudar a sério e tirar boas notas logo a partir do 10ºano, arriscava-se a não cumprir a nota de entrada no curso pretendido e, assim, comprometer o seu futuro.
Ora, é mais ou menos consensual que as raparigas atingem uma maturidade mental uns anos mais cedo do que os rapazes. Assim, nos anos cruciais do 10º ao 12º, enquanto os rapazes se entretêm com as suas motos, cervejas e outras distracções da adolescência, um número superior de raparigas já está a preparar e leva os estudos mais a sério, precisamente porque são mais maduras naquela idade.
Resultado, Portugal com os seus numerus clausus foi o primeiro país do mundo em que a população universitária feminina ultrapassou a população masculina. Em cursos como os de letras, psicologia ou farmácia, essa invasão feminina cilindrou a população masculina. Mas, ao fim de alguns anos, até mesmo no último reduto dos homens - as engenharias -, durante muito tempo quase exclusivamente masculinas, assistiram a uma ocupação de uma grande fracção de lugares pelas alunas que ingressavam com melhores médias.

Mais uma vez dá que pensar. Uma política aparentemente tão impopular como foram os numerus clausus, acabou por conferir às mulheres portuguesas uma oportunidade de nivelar o terreno, compensando com maiores índices de formação académica, as resistências que o mercado de trabalho tinha à entrada de mulheres.

JSA disse...

Adiciono um outro ponto: o do machismo do mercado de trabalho. As mulheres são frequentemente preteridas no mercado de trabalho (privado, essencialmente) científico em favor dos homens. Vi isto suceder especialmente nos ramos de engenharia. Disto resulta que as mulheres se vejam mais frequentemente confrontadas com a opção de fazerem um doutoramento/pós-doc em vez de ingressarem numa empresa (por exemplo). Desta forma, as melhores mentes, que estariam de outro modo atrás de uma secretária, poderão estar mais facilmente atrás de uma mesa de laboratório a fazer avançar a investigação portuguesa.

Claro que não acho que esta seja A explicação. Provavelmente haverá um conjunto delas, entre as quais avanço esta possibilidade.

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