A pedido de várias famílias regresso ao tema de física e poesia. A poetisa portuguesa Adília Lopes, nascida em 1960, estudou Física na Universidade de Lisboa, embora não tenha concluído o curso (mudou-se para um curso de letras). Ela é uma das vozes mais originais da moderna poesia portuguesa. As opiniões dividem-se: ou se gosta ou se detesta. Ora eu não destesto!
Escolhi o poema "Memórias das Infâncias" porque ele contém não apenas a palavra "entropia", que é da Física, mas também porque ilustra de um modo único a Segunda Lei da Termodinâmica, segundo a qual a entropia aumenta num sistema isolado, isto é, o futuro é diferente do passado, pelo que o tempo não pode ser invertido.
Memórias das Infâncias
Gostávamos muito de doce de framboesa
e deram-nos um prato com mais doce de framboesa
do que era costume
mas
a nossa criada a nossa tia-avó no doce de framboesa
para nosso bem
porque estávamos doentes
esconderam colheres do remédio
que sabia mal
o doce de framboesa não sabia à mesma coisa
e tinha fiapos brancos
isso aconteceu-nos uma vez e chegou
nunca mais demos pulos por ir haver
doce de framboesa à sobremesa
nunca mais demos pulos nenhuns
não podemos dizer
como o remédio da nossa infância sabia mal !
como era doce o doce de framboesa da nossa infância !
ao descobrir a mistura
do doce de framboesa com o remédio
ficámos calados
depois ouvimos falar da entropia
aprendemos que não se separa de graça
o doce de framboesa do remédio misturados
é assim nos livros
é assim nas infâncias
e os livros são como as infâncias
que são como as pombinhas da Catrina
uma é minha
outra é tua
In – Adília Lopes –OBRA – O Decote da Dama de Espadas, pag. 107, Ed. Mariposa Azul, Lisboa 2001
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