Uma das tarefas da filosofia da ciência é esclarecer algumas noções usadas em ciência, como a noção de lei na natureza. Poucos cientistas se apercebem de que estão a usar uma metáfora quando falam de leis da natureza. E muitos confundem a expressão linguística ou matemática de uma lei com a própria lei.
Comecemos pelo primeiro aspecto. A expressão “lei da natureza” é metafórica dado que não se trata de leis no sentido literal do termo: não são como as leis do código civil, por exemplo, ou do código da estrada. As leis, literalmente falando, distinguem-se das leis da natureza por várias razões, mas uma delas é central: a direcção de adequação é oposta. Por “direcção de adequação” (direction of fit), os filósofos querem destacar uma diferença fundamental. Usando um exemplo de Dennett, do livro Tipos de Mentes (Temas e Debates), considere-se o que acontece quando vamos ao supermercado e levamos uma lista de compras. O que queremos é que o carrinho das compras se adeqúe à nossa lista original. Por outras palavras, queremos mudar a realidade para se adequar aos nossos desejos. Contraste-se isto com o que faz o empregado do supermercado quando vai fazer o inventário de uma determinada prateleira: leva um papel em branco e começa a preencher o papel com os nomes e quantidades dos produtos que estão na prateleira. Agora a direcção de adequação é a inversa da anterior: não se trata de querer que a realidade se adeqúe ao que está escrito no papel, trata-se de querer adequar a descrição no papel à realidade. Por outras palavras, neste caso queremos descrever a realidade, ao passo que no caso anterior queremos modificar a realidade de acordo com os nossos desejos.
Os juízos normativos da ética são tipicamente normativos, o que significa que têm uma direcção de adequação semelhante à da lista de compras: queremos que a realidade se adeqúe ao que consideramos correcto. Os juízos descritivos da astronomia ou da história, por exemplo, são descritivos: queremos que tais juízos reflictam de forma fidedigna a realidade.
Assim, as leis da natureza não podem ser tomadas literalmente, pois não são normativas, como as leis literalmente são, mas antes descritivas. Este é o primeiro aspecto.
Mas descrevem o quê? De rerum natura: a natureza das coisas. Não se trata, pois, de pensar que há alguém que legisla literalmente sobre o mundo, fazendo-o comportar-se desta ou daquela maneira. Esta é uma forma errada de entender as leis da natureza. A realidade comporta-se de determinada maneira e não de outra por razões intrínsecas à sua natureza. Porque se comporta de maneira regular, podemos inventar “leis” que a descrevem com muito rigor e podemos fazer previsões muito precisas. Mas não devemos pensar que as leis são uma espécie de mandamentos divinos. Ao que chamamos "leis" seria mais correcto chamar "descrições", muitas das quais são matematicamente quantificadas.
domingo, 22 de abril de 2007
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15 comentários:
O texto é muito acertado, mas gostaria de sublinhar que a perspectiva do observador que faz essas descrições é de crucial importância nas ciencias socias. Aí poderemos falar não de descrições mas de explicações.
Então parece que o principal problema quando se usa o termo "Lei da Natureza", é a facilidade com que as pessoas encaram isso como algo imutável e final - dogmático.
Então devemos ter sempre presente que é apenas a melhor explicação que temos neste momento? Então deveria falar-se não de "cientificamente provado", mas de qualquer coisa como "cientificamente teorizado"?
Cumprimentos!
Desidério,
Julgo não estar errado se pensarmos que as "leis da natureza" são encaradas como David Hume o fez com o PUN (Princípio Universal da Natureza), isto é, a cusalidade. Aquilo que estamos a ver são regularidades, causalidade. E a causalidade é a mesma coisa que "explicação", tal qual se diz quando falamos de ciência. A ciência explica! Claro que estamos sempre perante o problema da causalidade (ou explicação) e da probabilidade da "lei" poder vir a ser falsificada. Acontece que aqui há um aspecto simples mas muito curioso: se a a explicação científica falha, então podemos pegar nas teorias/explicações velhas e deitá-las ao lixo. Mas a beleza da coisa é que sem teorias falhadas não existem teorias verdadeiras. De um outro modo, como poderia Einstein ter desenvolvido a relatividade se Newton não tivesse explicado a gravidade dos corpos? É precisamente por esta razão que a ciência, num ambiente social de liberdade, é a actividade humana que mais evolui. Alguns autores, como Feyerabend ou Kuhn defenderam que é por esta razão que a ciência é subjectiva e igaul a muitas outras actividades humanas. Creio que não perceberam uma coisa fundamental: é precisamente por esta razão que a ciência é "a coisa mais preciosa que temos". Apetece-me citar Feynaman, quando diz: "Algumas pessoas perguntam:«como é que conseguem viver sem saber?» Não percebo o que querem dizer com isso. Sempre vivi sem saber. É fácil. O que quero saber é como é possível saber.» Na teologia, por exemplo, é difícil encontrar esta atitude!
Abraço
Rolando Almeida
Obrigado a todos pelos comentários.
Uma lei não é o mesmo do que uma explicação. Saber exactamente o que é uma explicação científica é algo mais complicado, mas segundo uma teoria muito estudada as explicações científicas usam leis para explicar fenómenos. Portanto, as leis são mais fundamentais, nesta perspectiva, do que as explicações.
No caso das ciências sociais não há leis, mas apenas correlações. Mas também aqui há uma diferença entre dar uma explicação e apresentar uma correlação.
Fica para um próximo post falar um pouco das explicações científicas.
José Oliveira,
Seguindo o modelo de Popper, creio que, até nos pacotes de leite, não deveria ler-se "cientificamente provado", mas "cientificamente ainda não falsificado", o que significa, "cientificamente corroborado".
penso não estar errado!
Rolando Almeida
Viva! Se o nosso amigo Kant pudesse comentar o teu post certamente diria o contrário do que dizes, ou seja, diria que as leis da natureza são prescritivas (ou normativas, como queiras) pois são uma forma do nosso entendimento e razão prescreverem ordem à natureza. Já sei que vens com aquela história de que se os homens não existem as regularidades continuariam a existir, blá, blá... Mas não encontro esse argumento totalmente convincente, pois se os homens não existissem não poderíamos saber isso. Abraço
Caro Rolando:
Muito obrigado pelo esclarecimento.
O que tentei simplesmente dizer é que, para pessoas que não tenham ideia do que é a ciência, a expressão "cientificamente provado" parece algo de final, de conclusivo, quando geralmente é "apenas" um ponto de partida para novas descobertas.
E outros factos naturais a que se procura dar credibilidade usando a matemática, mas que, pela sua natureza, não podem ser considerados objectos epistemológicos, nem com o "disfarce" que aparentemente lhe poderia dar "credibilidade". Compreender o que é um objecto epistemológico ainda deve ser mais difícil do que arranjar um discurso matemático que dê credibilidade aquilo que não é credível.
Qualquer objecto de crença ou conhecimento é, ipso facto, um objecto epistemológico. Lama, amor, Deus, energia, átomos, literatura, etc.
Óptimo post.
Mto bom seu texto...
Sou aluna de direito e, este foi o único site em que achei um artigo que falasse sobre "leis" da natureza do jeito que eu procurava...
mas eu queria saber mesmo como as leis podem interferir na paisagem?
É realmente difícil de obter clareza sobre o se de fato o termo "Leis da Natureza" tem sentido literal. Ou se há ou não de fato um lesgilador universal que as estabeleceu por ex a lei da gravidade. O fato é que existe os principios que são todos aplicados as leis da natureza. E estão todos expostos de forma utra organizadas no universo, como na terra. Podemos dormir cientes que amanhã haverá sol. sim o tempo ruim e nublado pode até esconder o sol, mas ele estará lá. Agora se eu disser que Não houve um lesgislador que estabeleceu tais principios e cetenas deles no universo, então eu estaria condicionando os leitores ao meu próprio modo de pensar. Será que tem coerencia isso?
Será que as leis não descrevem como as coisas têm de ser?
Se elas descreverem como as coisas têm de ser, elas têm algum aspecto normativo, talvez tal como as leis lógicas. Esse aspecto normativo se expressa na força contrafactual que a lei tem. Se é uma lei que Fs são Gs, então b que não é F, se fosse F, seria G.
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