domingo, 1 de abril de 2007

De Genesi ad litteram

A criação, basílica de São Marcos, Veneza, Itália.

«Geralmente, mesmo alguém que não é cristão conhece algo sobre a Terra, [...] e esse conhecimento é tido como sendo proveniente de razão e experiência. Agora, é um perigo e uma desgraça um infiel escutar um cristão, presumivelmente citando a Escritura Sagrada, falar absurdos nesses assuntos; e nós devemos usar todos os meios para prevenir uma situação tão embaraçosa, na qual pessoas demonstram a vasta ignorância de um cristão e riem até ao escárnio» Agostinho de Hipona, De Genesi ad litteram, livro XII.

Embora os criacionistas que advogam a estrita literalidade da Bíblia se reivindiquem muitas vezes como cristãos «autênticos», isto é, os representantes do cristianismo «tradicional», na realidade desde os primórdios do cristianismo que os mais notáveis pensadores cristãos advertem que a Bíblia deve ser interpretada metaforica ou alegoricamente em muitas das suas passagens. Nomeadamente aquele que até hoje permanece como um dos grandes teólogos do cristianismo, Agostinho de Hipona ou santo Agostinho, que na passagem supra citada continua avisando que as «opiniões tolas» dos cristãos sobre factos negados «através de experiência e à luz da razão» tornam impossível «acreditar nesses livros no que se refere à ressurreição dos mortos, de esperança e vida eterna e do reino do paraíso».

Como a nossa leitora Fátima relembra, o Génesis deve ser encarado como «um livro de relatos da criação, que podemos designar por mitos de origem». E na realidade o Génesis é herdeiro de uma mitologia muito rica, nomeadamente no que ao Dilúvio diz respeito. Uma vez que os criacionismos puros e duros assentam em catastrofismos diluvianos sortidos achei interessante contextualizar sumariamente o mito do Dilúvio.

Os mitos da destruição escatológica, abundantes e associados normalmente a ciclos de destruição-criação em outras religiões, manifestaram-se tardiamente na literatura apocalíptica judaico-cristã, que floresceu entre os séculos II a.C. e II d.C., com o zénite no livro do Apocalipse.

Mas um exemplo típico de um mito de destruição (embora não do fim dos tempos) é o grande dilúvio, que se encontra descrito no Génesis e quase ipsis verbis nas mitologias suméria, assíria, arménia, egípcia e mesopotâmica, entre outras. Em todas, o deus apropriado decide castigar uma humanidade com que estava descontente e escolhe alguém para construir uma arca para salvar a «Criação». Na mitologia mesopotâmica é escolhido o sábio Atrahasis; na epopeia de Gilgamesh foi Utnapisti o felizardo.

O dilúvio é ainda referido nos Vedas*, sendo Vadasuata ou Vaivaswata o construtor da arca hindu, que salvou das águas, além da família do bom homem, um casal de cada espécie de animal existente.

De igual forma, no mito cristão da criação encontram-se inúmeras alegorias decalcadas do Enuma elish, a mitologia mesopotâmica da criação escrita 2000 anos antes. Mitologia mesopotâmica por sua vez herdeira da mitologia suméria e esta da védica.

Original é a convicção cristã de que Deus teria realmente criado o mundo a partir «de nada», a famosa creatio ex nihilo, que se estabeleceu e progrediu sobretudo no século II d. C., assente nas teses de Basilides e de Justino.

O grande «teórico» e divulgador da creatio ex nihilo foi Agostinho de Hipona (354-430), que, para combater as concepções emanistas do neoplatonismo, sustentou no seu livro De natura boni que o Universo foi criado por Deus a partir de nada.

Não podia deixar de referir Epicuro sobre o tema. É interessante notar que o aforismo ex nihilo nihil fit (do nada, nada se faz), que resume a posição epicurista sobre a origem do Universo, permanece actual. Aforismo inspirado numa das Sátiras do poeta estóico Pérsio e que significa simplesmente que nada é criado, tudo se transforma. A primeira formulação do que hoje apelidamos Lei de Lavoisier: na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma.


*Os quatro Vedas, as «escrituras» hindus, são datados de épocas diferentes. O Rig Veda, com uma tradição oral que alguns autores consideram ter mais de 5000 anos, constitui a mais antiga literatura em qualquer língua indo-europeia. Pensa-se que o zoroastrismo e o hinduísmo védico evoluíram de uma religião comum. Os primeiros conceitos divinos encontrados no Rig Veda são princípios da natureza, com o Sol, um dos aspectos do qual é Mitra, proeminente entre eles. Das palavras Devv (ou Deva) e Divv, que em sânscrito significam sol e luminoso, tem origem a palavra "deus".

17 comentários:

Unknown disse...

Adoooorei :)

Cinquenta estrelas. Até o Agostinho ri postumamente das opiniões tolas dos criacionistas lol, lol, lol

Anónimo disse...

É por isso que se diz que o criacionismo não só é má ciência, mas tb má religião.

Cumprimentos

Anónimo disse...

Adorei este post. Mas, o que pretendem os criacionistas não são questões inocentes, mas sim fazer grandes reivindicações e converter o mundo a um fundamentalismo ignorante de olho por olho dente por dente. O meu grande espanto é : como é que a igreja católica aderiu a isto ? Terá sido culpa do anterior papa ?

Que se passa na realidade, a igreja católica nega o que ensinou e converteu-se ao criacionismo, quando antes em aulas de religião e moral se ensinava que a bíblia era simbólica ? Porque é que um cardeal do vaticano quase lidera uma luta anti-ciência ?

Anónimo disse...

É por textos destes que vale a pena lêr este blog.
Conhecer as origens de alguns mitos também ajuda a compreender o ridículo que é a tentativa de colagem aos mesmos por parte da religião cristã, e as posteriores tentativas de apropriação dos mesmos.

Armando Quintas disse...

António disse...

"É por textos destes que vale a pena lêr este blog.
Conhecer as origens de alguns mitos também ajuda a compreender o ridículo que é a tentativa de colagem aos mesmos por parte da religião cristã, e as posteriores tentativas de apropriação dos mesmos."

Caro amigo, o teu comentário é a a maior questão que pode por em causa a religião cristã, pergunto n só a ti mas a todos, dos mitos de base excluindo as posteriores reformas e mudanças, o que tem de original o cristianismo?

A minha opiniao é que o cristianismo não passa de mesclas, plágios e usurpações de tradições mais antigas, é o paganismo de estado oposto ao paganismo popular que tambem se opunha ao poder imperial, e pasmem-se, por ser paganismo, o cristianismo é politeista, sim politeista, a quantas divindades se reza? Deus, jesus, virgem maria, a uma infinidade de semi-deuses, digo de santos.. tirem as vossas conclusoes..

zazie disse...

a mitologia suméria é originária da védica?

ahahahaha

E a frase latina ex-nihilo é que explica a criação do Génesis que é feita em hebraico?

E que, por acaso, até se deve traduzir por "Deus chocava as águas"?

chocar, sim chocar, no sentido do ovo, no sentido mítico mas sem precisar dessa bacorada de comparação com o "do nada" latino.

A Palmira onde e com quem é que estudou Pré-Clássicas?

tinha curiosidade. Porque, a mandar essas bacoradas, só se foi numa Universidade de Cacilhas ou outra Independente...

zazie disse...

É pena que o filósofo, que gosta tanto de bater nos pedagogos (e por aí concordo- só se perdem as que caírem ao chão) não note esta palhaçada de professores universitários a divulgarem asneiras, num blogue que se pretende de académicos.

zazie disse...

A civilização mais antiga que se conhece é a Sumérica. Em UR, no Golgo Pérsico, é que começou tudo. E isso aponta para cerca de 4.000 ano antes de Cristo. Os vedas hindus são de 500 a.C.

Ao menos que copiasse da Wikipédia, já que academicamente nunca deve ter tido uma única aula de Civilizações Pré-Clássicas.

zazie disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
zazie disse...

É que isto é que é perigoso. Porque as pessoas levam-nos a sério e eles não são sérios.

São uns ignorantes de palas nos olhos, que até nem se preocupam em deturpar os saberes para venderem o ateísmo.

Este post, academicamente, é uma vergonha.

E desafio o Fiolhais e o Buescu, que são as únicas pessoas (das que conheço) com mérito e saber, para se descabelarem agora. Como o fizeram a propósito daquela anormalidade do evangélico do criacionsimo-mac-donalds.

Este post devia ser apagado, corrigido e postado de novo. Assim, é um autêntico atentado ao conhecimento. Qualquer aluno que passe por aqui leva uma treta de uma história cheia de erros.

Unknown disse...

Ainda não percebi porque é que a Zazie, que tem a mania que é a estrela da blogosfera, tem um ódio tão grande à Palmira.

Mas estes disparates sobre os Vedas é um insulto aos hindus! Aconselho uma leitura ao departamento de estudos indianos de Harvard...

The Vedic texts have astronomical dates, that some have claimed, go back to the 5th millennium BC. There is also the question of the reference to the Saraswati river, lauded in the hymns as the greatest river flowing from the mountain to the sea. Some archaeologists have equated the river with the Ghaggar-Hakra river, that flows through present day Haryana and Punjab in India, which went dry perhaps before 2600 BC or certainly before 1900 BC.

Unknown disse...

Deixa ver, no texto está:

"a famosa creatio ex nihilo, que se estabeleceu e progrediu sobretudo no século II d. C., assente nas teses de Basilides e de Justino."

que tal a zazie aprender a ler em vez de entrar nos habituais insultos? Vá lá, desta vez não ameaçou ninguém e poupou-nos ao vernáculo...

Joana disse...

Palmira:

Por favor informe os seus colegas de blog sobre a Zazie e façam qq coisa para impedir que ela invada este espaço com as bacoradas do costume. Este espaço nasceu para ser um espaço sério de debate e isso é incompatível com a Zazie.

Please... há uma série de blogs onde deixei de comentar porque os donos deixam a Zazie lá comentar. A atmosfera é completamente irrespirável, as pessoas fartam-se dos insultos e das ameaças da Zazie.

Ela que continue a despejar veneno no blog dela e deixe os outros em paz!

Anónimo disse...

Faço minhas as palavras do antónio e venham mais posts destes!

PS para a rita e joana

vocês haviam de ver o post "sabedoria ateia de meia-bola e força" inflamado dos disparates, dor de corno (e falta de lítio) do costume. infelizmente alguém com bom senso deve ter aconselhado a Zazie a apagá-lo.

Anónimo disse...

E, foi opor um professor universitário "profanar" as sagradas escrituras islâmicas, ao ler na universidade um versículo ao alcorão que foi morto e se iniciou a questão das caricaturas. Atenção, nem se deve pronunciar palavras sagradas, é blasfemo. Já das tradições dos "outros" se pode fazer chacota, como a igreja católica dos muçulmanos e dos criacionista e estes por sua vez da igreja católica. Por estas e por outras é que somos "macacos".

zazie disse...

apaguei o post do Cocanha por mero respeito por algumas pessoas do blogue que ainda considero.

Apenas por isto. Porque senti vergonha por elas. Porque até me custa assistir a isto.

Espectadores disse...

«Os primeiros conceitos divinos encontrados no Rig Veda são princípios da natureza»

Que raio de disparate é este?
Que autores é que anda a ler?

«Conceitos divinos ... são princípios da natureza»?

Estamos a falar da mesma coisa?

EMPIRISMO NO PENSAMENTO DE ARISTÓTELES E NO DE ROGER BACON, MUITOS SÉCULOS DEPOIS.

Por A. Galopim de Carvalho   Se, numa aula de filosofia, o professor começar por dizer que a palavra empirismo tem raiz no grego “empeirikós...