A desconstrução da hipocrisia pode ser compreendida de duas maneiras muito diferentes. Numa das interpretações, não se trata de recusar as categorias da verdade, da objectividade e da seriedade intelectual — trata-se apenas a denunciar o que se entende que são simulações hipócritas destes valores e práticas, mas que não passam de instrumentos de poder e opressão. Nesta interpretação, não se defende que “vale tudo”, mas antes que algumas pessoas infelizmente disfarçam cuidadosamente os seus interesses sob um véu de falsa objectividade, seriedade e amor pela verdade, acabando na realidade por prostituir estes mesmos valores.
Segundo esta interpretação, o pensamento desconstrucionista não tem uma parte construtiva (além de alguns elogios emocionados da autenticidade estética e mística), na qual descreva como se pode cultivar, sem hipocrisia, os valores fundamentais da verdade, justiça, objectividade e seriedade intelectual.
Esta não é a interpretação mais popular do desconstrucionismo, e provavelmente não é a interpretação historicamente correcta. A interpretação mais popular é a ideia de que vale mesmo tudo — mas os desconstrucionistas são os únicos que o admitem. Quando alguém defende que algo é verdade, ou injusto, ou falso, está apenas a defender os seus próprios interesses — económicos, sociais, políticos, religiosos, etc.
Quando alguém critica os sistemas de detecção de erros que existem nas práticas académicas sérias pode ter em mente duas coisas muito diferentes, que correspondem a estas duas diferentes interpretações do desconstrucionismo.
Se tem em mente a primeira, tem o dever intelectual de apresentar alternativas. Muito bem, não vale a pena as revistas académicas terem sistemas de “peer review”, preferencialmente duplamente anónimos (em que nem quem submete o artigo sabe quem é o avaliador, nem o avaliador sabe quem é o autor do artigo); não vale a pena as revistas académicas darem-se ao trabalho de tentar reproduzir o resultado experimental que o autor do artigo descreve. Mas, então, como vamos fazer? E por que razão não vale a pena? Só porque não há garantia de não falhar? Mas isto é uma falácia, pois o que conta não é se oferece garantias absolutas de não falhar, mas antes se oferece melhores garantias relativas de não falhar do que a ausência de tais sistemas de controlo de erros.
Se tem em mente a segunda, estamos em pleno delírio incoerente. Nesse caso, defende-se que as práticas académicas “sérias” (as aspas do distanciamento irónico são uma marca deste tipo de pensamento) são apenas falsamente sérias porque nada realmente é sério. Mas então que razão temos para aceitar esta mesma ideia de que tudo é apenas a manifestação de interesses ocultos? Que interesse oculto tem quem defende essa ideia de que tudo são manifestações de interesses ocultos?
Um interesse oculto que parece muito comum é a falta de vontade para estudar imparcialmente e objectivamente de rerum natura, a natureza das coisas. É pura e simplesmente mais fácil defender um qualquer preconceito ecologista, industrial, religioso, científico, político, filosófico, estético, psicológico, etc., do que darmo-nos ao trabalho de estudar cuidadosamente a bibliografia relevante onde os argumentos disponíveis a favor e contra são discutidos, estudar os dados favoráveis e desfavoráveis à nossa posição, expor abertamente as nossas ideias convidando os colegas a criticá-las e a encontrar-lhes deficiências. Tudo isto dá muito trabalho, e é muito mais fácil declarar que tudo são manifestações ocultas de interesses. Mas se nos limitarmos a declarar que tudo são manifestações ocultas de interesses, nada nos impede de considerar que essa mesma declaração não é senão a manifestação oculta de um interesse muito comum na humanidade: preguiça intelectual.
Como escreveu Gedeão, há sempre “homens ditosos a quem Deus dispensou de buscar a verdade” (Poema para Galileu), privando-os contudo ao mesmo tempo de uma das experiências humanas mais enriquecedoras: a descoberta dos nossos erros.
terça-feira, 1 de maio de 2007
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11 comentários:
Este post está muito críptico, não se percebe de que hipocrisia se fala nem tão pouco qual é a tese. P. ex. : "A desconstrução da hipocrisia pode ser compreendida de duas maneiras muito diferentes. Numa das interpretações, não se trata de recusar as categorias da verdade, da objectividade e da seriedade intelectual — trata-se apenas a denunciar o que se entende que são simulações hipócritas destes valores e práticas, mas que não passam de instrumentos de poder e opressão"
O que é que isto quer dizer?
Viva!
Devo portanto concluir que a desconstrução não é por si só uma coisa má. Torna-se má pelo mau uso que se faz dela...
Penso, ainda, que o grande problema é este relativismo que se quer impor a todo o custo; que diz que a verdade é simplesmente uma crença como outra qualquer, e não uma meta que se procura atingir independentemente de termos de assumir as nossas falhas e os nossos erros.
Penso que é nesse erro que incorrem essas pessoas que defendem a desconstrução para defender ideais obscuros...
Cumprimentos,
José Oliveira.
Caro Desidério,
Estive há pouco a escrever um comentário a um post do João Galamba, que não sei se vai ser publicado. De qualquer forma, é engraçado que tenha visto este post pouco depois de o escrever, porque dizia um pouco o mesmo que tu dizes.
Agora que sou jurista (quase, quase...) penso na minha própria actividade e vejo que seria impossível trabalhar sem regras. No direito, como em outras áreas, há regras: regras de interpretação jurídica das normas que obedecem a certos critérios lógicos devidamente adaptados ao objecto do estudo: o direito.
Se alguém me dissesse que essas regras de interpretação eram fruto da metafísica iluminista que Ricoeur e tantos outros tinham desconstruído, a minha pergunta muito prosaica seria: "e tem alguma alternativa melhor?". Aí a resposta seria óbvia: não. Então por que Diabo dar atenção a esse tipo de teorias, pergunto eu...
A verdade é que cientistas, juristas, historiadores continuam a fazer o seu trabalho calmamente. Mesmo depois de lhes terem dito centenas de vezes que a Razão morreu. Ainda que morta, a dita esperneia que se farta...:)
José Barros
José,
Estás a sugerir que Ricoeur é um "desconstrutivista"? Ricoeur apenas sugerem que a razão é mais lata (ou deve/pode) do que algumas correntes sugerem. Quanto a "continuar a fazer o seu trabalho" concordo, mas isso acontece porque muitos do que o fazem não recorrem a regras ou métodos explicitos (a formalização da razão ainda não chegou a todo o lado), antes o fazem de forma prática recorrendo a "know how" não formalizável (a rule does not apply itself, it requires interpretation...).
E este post em qual das duas interpretações é que se encaixa?
O falar de desconstrução, é em sí também uma forma de desconstrução.
E até será esta uma das formas mais perigosas, pois permite criar uma compartimentação de ideias, e impermeabilizar o conhecimento a determinado tipo de confronto. A realidade é que depende do ponto de vista individual se uma desconstrução é do primeiro ou segundo tipo.
Seria interessante, Desidério, ler esse comentário de Eduardo Prado Coelho, O Paraíso dos Tontos.
http://pascal.iseg.utl.pt/~ncrato/Recortes/EPC_Publico_20020406.htm
No qual ele critica tanto aqueles que falam contra Derrida quanto aqueles que louvam-no.
Analisa as críticas de António Manuel Baptista à Boaventura de Souza Santos.
Penso que talvez os conselhos que ele dá para o físico António serviriam para você.
um abraço,
Jorge
Caro Desidério,
Permita-me ser muito directo. Este post não demonstra a aplicação de um metodo epistemológico rigoroso. Primeiro: nunca explicita, concretamente, o que entende por "desconstrução." A única coisa que faz é associar esta desconstrução-por-definir a um conjunto de sensibilidades epistemológicas consideradas ignobeis e destituidas de qualquer validade. Mais: institui também uma primazia da "verdadeira" filosofia, aquela que se preocupa com a verdade univocal da ciencia. Os outros são simplesmente preguiçosos! Ora, um dos principios elementares do raciocinio critico é apresentar o objecto de critica de forma razoavelmente clara. Se, por acaso, se refere a desconstrução de Derrida, ela não é assim tão dificil de compreender e expôr.
Por favor, diga lá quais são os desconstrucionistas que afirmam que "vale mesmo tudo"?? Há aqui, de facto, uma usurpação e uma manipulação: associa o desconstrucionismo às politiquices, sempre mesquinhas, do pluralismo ou do relativismo epistemológico (etc).... concebidas como se de uma negociata...
Confesso que não percebi o intento deste post. Se é a desconstrução de Derrida que pretende crticar então pelo menos tenha a gentileza de nos informar em que é que consiste...antes de a demolir com o mais implacável e plausivel racionalismo critico Popperiano.
Fica registado o pedido de clarificação.
Caro João Galamba,
Não estava a sugerir que Ricoeur fosse desconstrutivista. Estou a dizer que se alguém me viesse dizer que muitos filósofos - esse ou outros - já teriam demonstrado o sem sentido do uso de regras de argumentação - sejam as regras da lógica, sejam as regras jurídicas - tal faria surgir a questão de saber se tal pessoa teria uma alternativa melhor. E não, não teria. Muito do discurso continental que tive oportunidade de ler falha sempre na sugestão de alternativas melhores. Nem sequer tenta e é aí que me parece que o Desidério acerta.
Jose,
Desculpa lá mas acho que estás enganado. O que escreves pode fazer sentido para a desconstrução ou pós-modernistas, mas não se aplica à hermeneutica e a autores como Ricoeur. Enquanto os primeiros têm uma posição essencialmente negativa, a hermeneutica tem propostas positivas. A sua defesa da especificidade das ciências humanas em oposição ás ciências naturais é um exemplo claro disso mesmo.
Cumprimentos,
Joao
Negativa, porquê???
infelizmente devo acreditar que o autor simplesmente NÃO LEU Derrida, do contrário não faria as afirmações que fez, totalmente baseadas em leituras preguiçosas do autor.
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