domingo, 13 de maio de 2007

A Indonésia e a gripe das aves

Os vírus, pequenas unidades de ARN ou ADN revestidas por um envelope proteico (uma espécie de cápsula) que são apenas capazes de se reproduzir utilizando os mecanismos de biossíntese de uma célula hospedeira, podem ocorrer numa grande diversidade de formas. A gripe é provocada pelo vírus influenza, que se apresenta em três tipos: A, B e C, podendo todos infectar a espécie humana. A gripe das aves (influenza aviária) é provocada pelo vírus influenza A.

Existem vários subtipos de influenza A. O vírus que causa alarme um pouco por todo o mundo, o H5N1, deve o seu nome às proteínas que constituem o revestimento do vírus. H5 refere-se à proteína hemaglutinina tipo 5 (existem 16 tipos no total) e N1 refere a neuraminidase tipo 1, uma proteína que apresenta nove variantes. Diferentes combinações das proteínas superficiais do tipo H e N resultam num grande número de subtipos do vírus. Os subtipos podem ser inofensivos, os vírus LPAI (low pathogenic avian influenza), ou perigosos, classificados nesse caso como vírus HPAI (highly pathogenic avian influenza).

O H5N1, uma estirpe altamente patogénica - a primeira variante HPAI foi identificada em 1878 em Itália -, é extremamente contagiosa nas aves e apresenta uma letalidade de quase 100%. Mas o alarme gerado por esta estirpe tem a ver com sua capacidade de transpor a barreira entre espécies e infectar humanos. O primeiro caso documentado de infecções humanas com a estirpe H5N1 ocorreu em Hong Kong, em 1997. Em 2003 foram detectados em Hong Kong mais dois casos de infecção pelo H5N1 em dois homens, pai e filho, que regressavam de uma viagem ao Sul da China. O pai morreu e o filho recuperou. Um terceiro membro da família, a irmã do rapaz, morreu na China com uma grave doença respiratória mas não foi possível determinar se a causa de morte foi o H5N1. Desde então a gripe das aves tem sido presença constante nos media em todo o mundo.

Na pandemia de 1918-1919, conhecida como a gripe espanhola, um sub-tipo da gripe A, H1N1, emergiu e propagou-se pelo mundo em alguns meses. Verificaram-se várias ondas de infecção ao longo de 2 anos, vitimando pelo menos 20 milhões de pessoas.

A sequenciação do genoma do vírus que causou essa pandemia foi concluída e publicada na Nature no final do ano passado. A análise da sequência do H1N1 indica que a sua transmissão nos humanos resultou provavelmente de um processo denominado por deriva génica ou «mutações pontuais». Basicamente um processo semelhante ao descrito por Hamilton na sua hipótese da Rainha Vermelha: para ultrapassar o sistema imunológico do hospedeiro, os vírus evoluem por mutação, nomeadamente verificam-se pequenas mudanças nas proteínas que constituem a cápsula, isto é, o vírus adquire um envelope «mais humano» por mutação, adquirindo igualmente capacidade de transmissão entre humanos, abrindo caminho para a pandemia.

Existem outros dois cenários de evolução de estirpes patogénicas com estas características por antigenic shift em que há mistura de genes. Num deles, uma pessoa é infectada simultaneamente por um vírus da gripe aviária e por outro humano e o material genético dos dois tipos de vírus mistura-se num terceiro tipo. Este novo vírus pode ter características que permitam a transmissão directa de pessoa para pessoa. No segundo cenário, o mecanismo é o mesmo mas o hospedeiro seria um mamífero de outra espécie em vez do homem, um suíno muito provavelmente já que os suínos são susceptíveis à infecção tanto pelos vírus da gripe humana como das aves.

O aparecimento de uma nova estirpe patogénica por antigenic shift dá origem a uma pandemia mas o vírus evolui localmente à medida que o novo subtipo infecta pessoas, isto é, vai sofrendo mutações pontuais ou deriva génica devido a selecção imunitária.

A análise da evolução da gripe aviária é assim imprescíndivel não só para o desenvolvimento de vacinas como para previsão e planeamento de programas de controle de uma possível pandemia e foram por isso criados sistemas de vigilância da gripe em praticamente todos os países, sob coordenação da Organização Mundial de Saúde, a WHO Global Influenza Surveillance Network. De facto, durante as últimas décadas, o desenvolvimento de vacinas tem passado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) que recolhe e centraliza amostras colhidas em todo o mundo e redistribui as vacinas semente para todos os produtores de vacinas. Nomeadamente, em relação ao vírus H5N1 os cientistas dependem da OMS para determinarem como está a evoluir o vírus e quais são as variantes dominantes.

Há quase meio ano que o governo indonésio deixou de enviar amostras da gripe das aves à OMS, em protesto por uma farmacêutica australiana ter produzido, sem o conhecimento das autoridades indonésias, uma vacina com base num vírus indonésio. Mas em simultâneo preparou um acordo com a Baxter International em que esta empresa farmacêutica sediada nos EUA teria acesso exclusivo às amostras indonésias. Depois de uma chuva de críticas, incluindo da OMS, a 17 de Fevereiro o governo indonésio cedeu e anunciou que retomaria em Março a partilha das amostras do vírus com a OMS, mas que continuaria o acordo com a Baxter. Na realidade, ainda não retomou o envio de amostras, não obstante terem falecido em Maio duas indonésias vítimas do H5N1.

A gripe das aves tem atingido duramente a Indonésia, mais duramente que qualquer outro país. Houve mais infecções humanas com o H5N1 e cerca de três quartos dos infectados sucumbiram, a maior letalidade verificada em todo o mundo. Segundo a Organização Mundial de Saúde, desde 2005, quando foi detectado o primeiro caso, a Indonésia registou metade das mortes devidas àquele vírus.

O facto de a virulência humana do H5N1 ter atingido na Indonésia o seu ponto mais mortal, torna as amostras do vírus indonésio muito importantes. Mas o governo indonésio não está contente com o facto de que depois de a OMS produzir a vacina mãe esta ser fabricada em massa em farmacêuticas localizadas maioritariamente nos países desenvolvidos ou na China (porque simplesmente não há mais) e pretende um acordo que basicamente lhe conceda direitos de posse sobre os vírus fornecidos, isto é, que permita à Indonésia decidir que companhias podem produzir vacinas desenvolvidas a partir de vírus indonésios.

A ministra da saúde indonésia, Siti Fadilah Supari, afirmou na altura que o acordo com a Baxter e a interrupção da cooperação com a OMS tinham como objectivo garantir que a Indonésia receberia algo em troca do desenvolvimento de uma vacina com o seu vírus.

Para mim a posição da Indonésia é não só contraproducente como absurda. E levanta várias questões: pode alguém ou um país reivindicar a posse de uma variante da gripe das aves? O que acontecerá se os governos de todos os países afectados pela gripe das aves resolverem imitar a Indonésia na possibilidade de ser a sua variante do vírus que despolete uma eventual pandemia?

13 comentários:

Anónimo disse...

1878? Qual e a fonte para essa informacao? Pensava que o primeiro isolamento do H5N1 tinha sido na Escocia em 1958 e ate tinha sido como LPAI... isso nao tera sido a primeira descricao clinica de um caso de Influenza altamente patogenica em aves?

Palmira F. da Silva disse...

oops

o texto não ficou muito claro. e tem razão. a primeira estirpe HPAI foi identificada em 1878 pela primeira vez. não se sabe qual a variante (a fonte é a OMS)

António Parente disse...

Excelente post.

Anónimo disse...

Nem de propósito este post a seguir ao dos andorinhões. Muitas vezes perguntei a mim mesma se valeriam a pena as medidas tomadas em relação às aves domésticas se não podemos evitar o contacto com as andorinhas, andorinhões e outras aves migratórias, talvez por não ser possível evitar esse contacto, não me lembro de ter ouvido que medidas tomar em relação a elas. No beirado da minha casa existem quatro ninhos de andorinha, embora um deles seja enganador: nidificam nele pardais de telhado que o ocuparam no Inverno e não o cederam quando as verdadeiras proprietárias o reclamaram na Primavera. A natureza não deixa de me surpreender!

guida martins

Anónimo disse...

Obrigado pelo post.
Muitíssimo mais informativo que todas as notícias que li sobre o assunto até agora.
Também tem interessantes pistas paa a reflexão sobre a relação entre ciência, sociedade e economia.
Maria Rodrigues

Anónimo disse...

Aquilo que os indonesios estao a fazer e obviamente pateta. No entanto convem nao confundir os temas e agradecia que a Palmira tivesse tambem esse cuidado. As andorinhas ou andorinhoes nao estao ate agora implicados na transmissao em grande distancia de H5N1. Patos, cisnes e gansos selvagens sao ate agora as especies principalmente implicadas nesse processo.
Recentemente (mes passado) foi descrito, tanto quanto sei, o primeiro caso de transmissao a grande distancia atraves de produtos derivados de aves (da Hungria para Suffulk no Reino Unido). Se bem que neste caso nao esta bem provado e os epidemiologistas avancam como sendo a hipotese mais provavel atraves de um processo de exclusao de partes. Relatorio completo disponivel na pagina online da DEFRA.

http://www.defra.gov.uk/news/2007/070419b.htm

Bruce Lóse disse...

Pal,

"Para mim a posição da Indonésia é não só contraproducente como absurda." Certo! Não esquecer, no entanto, a atitude predatória e desalmada dos gigantes da biotecnologia (por exemplo, países como a India ainda não erradicaram a poliomielite, a Novartis vende arvenses com o "killer gene", etc, etc).
É de certo modo justo que o "país dador" seja ouvido em todo esse processo, principalmente se não partilhar das lógicas de subserviência aos interesses económicos que nos dobram os joelhos aqui deste lado do mundo.

Além disso, se Deus não tem nada a ver com as mutações, é natural que um vírus seja propriedade intelectual !
(desculpe-me a graçola. Conheço vários países asiáticos e sou muito mais solidário do que as minhas rústicas palavras poderão sugerir)

Anónimo disse...

Caro lowlander,

peço desculpa mas fui eu e não a Professora Palmira a mencionar as andorinhas e andorinhões. Não digo, nem o poderia fazer por falta de informação, que estas aves sejam transmissoras do vírus apenas digo que me questionei. É natural que quando se lança o alarme de forma generalizada, como aconteceu no penúltimo Inverno, as pessoas se questionem em relação às aves com quem partilham o mesmo espaço. Se falo nas andorinhas é porque infelizmente não me cruzo com patos, gansos ou cisnes. Mais uma vez peço desculpa, não era minha intenção lançar a confusão.

guida martins

JVC disse...

Apenas uma nota de pormenor: em português, sempre se disse vírus da gripe, não virus influenza, moda de raiz anglo-americana vulgarizada recentemente (até por virologistas!).

Também não é correcto falar em recombinação, na co-infecção. Tendo o vírus um genoma segmentado, o que há é reaarranjo (reassortment) dos segmentos, não recombinação - que tem um mecanismo molecular muito diferente.

Aprecio muito o vosso trabalhom as talvez não fosse má ideia submeterem previamente a um especialista os posts que escrevem sobre temas que não dominam.

Anónimo disse...

"Também não é correcto falar em recombinação, na co-infecção. Tendo o vírus um genoma segmentado, o que há é reaarranjo (reassortment) dos segmentos, não recombinação - que tem um mecanismo molecular muito diferente."

Bem visto.

Quanto ao gripe vs influenza penso que ambos estao correctos. Virus DA gripe descreve o agente etiologico de uma doenca e Virus Influena descreve a especie de um virus.

Palmira F. da Silva disse...

Já substituí recombinação por mistura. Obrigado JVC pela correcção, eu não conheço os termos da área em português.

Anónimo disse...

Apreciei a muita informação que obtive neste post sobre um tema tão actual de que a comunicação social, a maioria das vezes só nos tem trazido preocupação e medo. Honra seja feita às excepções.

Acontece-me com alguma frequência terminar conversas com amigos com a expressão “atenção, isto é negócio”. Conversas em que, utilizando a razão e os dados que temos não conseguimos perceber uma atitude de uma pessoa, ou uma decisão de um órgão de poder ou instituição, por vezes, actos que envolvem comunidades ou países.
Esta bananalidade, como lhe costumo chamar, aplica-se com frequência a questões que envolvam biotecnologias, farmacêuticas e governos conforme descreve a Professora Palmira no final do post e amiúde vamos vendo relatado.

Em relação à questão dos especialistas, parecendo-me oportuno alguns comentários anteriores e concordando que é indispensável todo o rigor, confesso que tenho sempre alguma desconfiança em relação ao conceito porque, por um lado será sempre um mecanismo de auto censura e por outro, frequentemente o conceito de especialista é utilizado como arma de arremesso para manter status quo e, as diversas formas de poder usam-na como couraça após se terem munido com os seus especialistas.

Parabéns aos autores do blog pelo excelente trabalho de divulgação do conhecimento.
Artur Figueiredo

Anónimo disse...

Professora. Tal como a critiquei quanto a um seu comentário a um post do Professor Desidério, dou-lhe agora os parabéns por este seu interessante post.
Rui

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