sábado, 12 de maio de 2007

COIMBRA É UMA LIÇÃO


Transcrevo minha crónica do "Público" de 11 de Maio. E agradeço as muitas manifestações de concordância de gente de Coimbra e de fora dela que tenho recebido. Muita gente partilha, felizmente, a ideia de que: "É pela cultura ou pela falta dela que as cidades de hoje se salvam ou se perdem". Incluindo a ciência na cultura, claro.

Há não uma mas duas Coimbras, uma do sonho e outra da tradição. A situação é - tem sido - um pouco esquizofrénica. Há a Coimbra do Dr. Jekyll e há uma outra do Mr. Hyde.

Há quem sonhe em juntar a ciência à história para saber mais sobre os restos mortais de D. Afonso Henriques usando as mais modernas técnicas de antropologia forense e há quem defenda a tradição da inviolabilidade do túmulo do rei fundador receando a reedição na Igreja de Santa Cruz da "maldição dos faraós". Há quem organize exposições com o melhor da arte fotográfica contemporânea e quem não só as deixe abandonadas no Centro de Artes Visuais sem a conveniente publicitação, como também deixe abandonada a instalação de Pedro Cabrita Reis logo à entrada desse centro. Há quem organize na universidade um notável Encontro Internacional de Poetas e há quem se contente todos os anos com uma feira do livro provinciana numa barraca (grande barraca!) com espectáculos folclóricos. Há quem goste das músicas da Brigada Vítor Jara e de J. P. Simões, mas há quem prefira tomar chá animado por Marco Paulo e saltar numa chinfrineira nocturna animada por Quim Barreiros, o eterno convidado da Queima das Fitas. Há quem seja capaz de recuperar o "Laboratório Chimico" pombalino e aí colocar uma espectacular exposição sobre a luz e a matéria e há quem deixe esvanecer a memória do grande homem da ciência que foi o prof. Mário Silva (o monumento em sua homenagem está entregue às urtigas!). Há quem admire o belo casario da cidade, de cima da ponte "Pedro e Inês", no Parque Verde, e há quem, daí, não se assuste ao olhar o desvario urbanístico dos Jardins do Mondego. Há quem goste de se inebriar com os encantos gastronómicos da Quinta das Lágrimas e há quem não repare que o eixo pedonal da cidade não tem um único restaurante decente. Há quem venha aos meetings do Centro Internacional de Matemática ou do Centro de Neurociências e há quem não veja a necessidade de um Centro de Congressos e da respectiva capacidade hoteleira. Há quem ajude no boom de novas empresas tecnológicas na informação e na saúde e há quem não se admire com a inexistência de um parque industrial com dimensão suficiente para abrigar as fornadas de jovens empreendedores que todos os anos saem das universidades. Há quem venha transplantar o coração ao Centro de Cirurgia Cardiotorácica dos Hospitais da Universidade, mas há também quem não se indigne com a falta de dignidade das instalações do Hospital Pediátrico. Há quem se empenhe numa candidatura ganhadora a Património Mundial da Humanidade e há quem não queira sequer competir com outras cidades históricas que cuidam dos seus centros.

Digamos que uma é Coimbra A e outra é Coimbra B, a Estação Nova e a Estação Velha (a propósito, não estará a Estação Velha a precisar de reforma?). São duas cidades que, por força da partilha do mesmo espaço, têm de conviver uma com a outra, mas que são obrigadas a ignorar-se, tal é o desajuste de projectos.

O problema, como alguns dos exemplos apontados dão a entender, é acima de tudo cultural. É pela cultura ou pela falta dela que as cidades de hoje se salvam ou se perdem. Uma cidade que, para o bem e para o mal, foi sempre um símbolo da cultura ou sabe escolher a cultura de que quer ser símbolo, ou não conseguirá sair do seu actual desconforto. Remeter a maior fatia de responsabilidade da sua malaise para a acção ou inacção do Governo central, este ou os anteriores, é ser incapaz de um auto-exame sério.

Claro que o Governo central também tem responsabilidades em alguns dos despautérios do Centro, que são também despautérios nacionais. De resto, o país não estaria mal se o confronto entre o sonho e a tradição, com a tradição a ganhar (a antiguidade é um posto!), fosse apenas em Coimbra. A cidade dá uma boa imagem do país que somos, um país de grandes contrastes e onde coabitam ambições muito diferentes. Para se perceber Portugal não há nada como vir ao Centro. Coimbra é uma lição!

6 comentários:

tiago borges disse...

Coimbra precisa que a olhem com outros olhos. Para lá da imagem-postal da torre que coroa a colina, Coimbra precisa de ganhar a consciência de que "É pela cultura ou pela falta dela que as cidades de hoje se salvam ou se perdem".
Não desconsidero as chinfrineiras ou a barraca provinciana da feira do livro (que precisa de uma nova dinâmica e moldes!)... são "culturas"... "high-culture" ou "low-culture" será já outro debate (lembremos a pop de Andy Warhol que foi produzida exactamente dessa cultura pop(ular) de latas de conserva e detergentes brillo).
Talvez exista uma grande lacuna no destaque dado à "espectacular exposição do Laboratório Chimico" ou às exposições no CAV comparativamente com o destaque a uma queima das fitas.
Alimentar culturamente uma cidade passa por ter estratégias conjuntas para as várias "culturas" para poder culminar lacunas e/ou equilibrar dinâmicas.
A cultura precisa de cativar o público porque sem ele, ela não existe. Declamem Shakespeare na rua da Sofia, logo a seguir deixem desfilar a Filarmónica União Taveirense, e expliquem ás pessoas o que é a (abandonada) Absent Names do Pedro Cabrita Reis. Faça-se uma Coimbra "Em Festa", ofereça-se cultura e explique-se cultura.

J. Norberto Pires disse...

Se "É pela cultura ou pela falta dela que as cidades de hoje se salvam ou se perdem", e eu sei que é, então Coimbra está à deriva e imagina-se o desastre.

De todos os exemplos que deu, o que mais me envergonha é o da Feira do Livro. Inacreditável momento de probreza, provincianismo, e que é bem a imagem da gestão cultural desta cidade.

blue disse...

caro Carlos Fiolhais,
li este artigo no Público e a sua pertinência é indiscutível face a uma cidade onde, até às próximas chuvas, andar a pé é um exercício doloroso para os sentidos perante os fétidos humores que qualquer calçada exala, onde se calcam vidros partidos, onde se tropeça em garrafas vazias um pouco por todos lado.
parabéns a todos pelo blog!

Anónimo disse...

Seja como for, a cidade-universidade é linda e o ambiente soberbo. Visitei coimbra pela primeira vez há 13 anos atrás...adorei! Esta descrição faz-me lembrar o que os ingleses dizem de oxford: Town versus Gown. Belo post! :)

José Luís Malaquias disse...

Aquilo que salva Coimbra, é o facto de ter uma Universidade de tradição e prestígio.

A desgraça de Coimbra é ter uma Universidade de tradição e prestígio.

Anónimo disse...

É impressionante como nesta crónica a verdade sobre Coimbra ressalta para quem quiser ler. Há que escolher entre os 7 séculos de teias-de-aranha acumuladas e o espaço necessário para que corra sangue novo pela milenar cidade. O que sempre, ontem como hoje, me assombra mais, e é inevitável que me venha a mente sempre que se fala de Coimbra, é a arrogancia intelectual, a mesma bestialidade revestida de sapiencia que tanto me assustou nos meus dias de estudante, e que parece continuar viva como uma erva daninha.
Exige que se abram os olhos aos coimbrinhas de sempre.
Emilia Barbosa

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