segunda-feira, 7 de maio de 2007
RÃS EM CUECAS
Recensão que saiu no "Primeiro de Janeiro" de hoje (suplemento "Das Artes e das Letras", onde tenho a coluna regular "Os Meus Livros"):
Não se pode perceber o que é a ciência sem saber a sua história, uma história que é feita a partir de histórias. O livro «Histórias da Ciência» inaugura a série com o mesmo título da Biblioteca “Os Dragões do Éden” (um nome retirado de um dos livros de Carl Sagan) das Edições Quasi, de Vila Nova de Famalicão. Tem algumas histórias deliciosas...
A nova colecção tem coordenação do Centro de Estudo de História das Ciências Naturais e da Saúde, onde pontificam os professores Clara Pinto Correia e José Pedro de Sousa Dias, a primeira da Universidade Lusófona e o segundo da Universidade de Lisboa. Já saiu, depois de «Histórias da Ciência», um segundo volume intitulado «A Cibernética: onde os reinos se fundem», cujo autor é Porfírio Silva. Saúda-se a nova colecção, que ajudará decerto a divulgar a história da ciência no nosso país. E também a editora, que, tendo já feito nome na área da poesia, está a fazê-lo no domínio da ciência.
O primeiro volume da nova colecção reúne um conjunto de textos que resultaram de uma série de conferências proferidas por vários cientistas no ano académico de 2004-2005 na Culturgest (o prefácio é de um dos responsáveis dessa instituição cultural da Caixa Geral de Depósitos, Miguel Lobo Antunes), que foi organizado por aquele Centro de Estudos. Os autores, para além de Clara Pinto Correia, que escreve sobre “A hipótese da boneca russa: a Revolução Científica e o primeiro conceito de genética” e de José Pedro Sousa Dias, que escreve sobre “Homens e medicamentos no Renascimento”, são Teresa Avelar (“A selecção sexual de Darwin aos nossos dias”), Ricardo Coelho (“Energia; a história de uma boa ideia”), Ana Maria Rodrigues (“Homens ou Anjos? Reflexões sobre a Identidade do género no clero masculino medieval”) e Alexandre Castro Caldas (“Histórias do cérebro”). Os temas são, como se vê, sortidos, embora unidos pela questão da vida. De uma maneira ou de outra o livro trata da descoberta da vida. Até mesmo a descoberta do princípio da conservação da energia, que dá pelo nome de Primeira Lei da Termodinâmica, teve a ver com a vida pois dois dos seus autores, Mayer e Helmholtz, eram médicos e tinham processos fisiológicos em mente quando pensavam em energia. De facto, os seres vivos não o podem ser sem energia!
O primeiro capítulo é da pena da bem conhecida bióloga e escritora Clara Pinto Correia, que entre a ciência e a literatura é uma das autoras portuguesas mais férteis. A autora de «O Ovário de Eva» e de «Adeus Princesa» conta-nos como na época da Revolução Científica foi encarado o problema da reprodução. As “bonecas russas” do título remetem para uma teoria, que hoje nos parece bastante abstrusa, de Nicolas Malebranche, um padre francês, adepto das ideias de Descartes, que defendia que, dentro dos órgãos genitais de cada espécie, estavam contidos, desde o momento da Criação e até ao dia do Juízo Final, uns dentro dos outros e em tamanhos progressivamente decrescentes, os seres vivos a que cada ser vivo ia dar origem. Essa “teoria da preformação” passou a poder ser comprovada a partir do momento que passou, no século XVII, a estar disponível um novo instrumento: o microscópio.Ele foi um instrumento de uma grande revolução na Biologia. As teorias tinham de casar com a experiência para terem descendência...
É esse período de fervilhantes descobertas que Clara Pinto Correia descreve de uma forma que cativa o leitor. Há lá várias histórias que se cruzam. Numa delas entra uma das figuras principais das ciências da vida no século XVIII, o padre italiano Lazzaro Spallanzani, que foi professor de História Natural na Universidade de Pavia e que ficou na história como pioneiro na inseminação artificial (além de ter descoberto o segredo da ecolocalização pelos morcegos, mas isso é uma outra história...). A ele se devem alguns dos melhores estudos experimentais na área da Biologia que foram realizados na época das luzes.
Muita gente acreditava nessa época que para haver fecundação não era preciso haver contacto entre o espermatozóide e o óvulo. Mas a ciência experimental obrigava a que se experimentasse e observasse. Não se podia crer sem ver! Portanto, Spallanzani realizou várias experiências com a reprodução das rãs, tendo concluído que não havia nenhum aura que se pudesse transmitir à distância: só a união de facto dos espermatozóides com os óvulos poderia dar origem a um novo ser. Para isso introduziu o chamado grupo de controlo, que passou a fazer parte dos protocolos experimentais. Numa experiência que realizou sobre a reprodução das rãs colocou próximos, mas não em contacto físico, óvulos e espermatozóides enquanto noutro lado pincelou os óvulos com o líquido seminal. Com o microscópio observavam-se alterações apenas quando havia contacto. Mudou a posição relativa dos recipientes próximos dos óvulos e dos espermatozóides, verificando que a aura pretensamente presente nos segundos não tinha maneira de chegar aos primeiros.
Mas Spallanzani fez mais. Para convencer os críticos (em ciência há sempre críticos e é bom que os haja, pois a a crítica faz parte do método da ciência) fez uma experiência semelhante, mas com animais ao vivo. Como escreve Clara Pinto Correia:
“Havia ainda um contra-ataque possível, e este tinha a ver com a exclusão dos animais propriamente ditos do processo de fertlização. Argumentou-se que a aura seminal, para poder libertar-se, precisava do calor e do entusiasmo vindos do amplexo da cópula. Sem essa paixão, gerada pelos machos no momento do coito, a aura não podia formar-se.”
Colocou rãs a copular normalmente e, para controle, uma tentativa de cópula através de um amplexo entre uma rã macho, vestido com umas cuecas (“cuequinhas de tafetá”, mais propriamente) e uma rã fêmea. Esta experiência é invocada no Museu de Ciência da Universidade de Coimbra que mostra mesmo uma rã em calções numa sala do Laboratório Chimico, que remonta à época do padre italiano. De certo modo, a experiência corresponde a um ensaio de um preservativo animal. Os resultados foram inequívocos: qualquer obstáculo entre o espermatozóide e o óvulo resultava no impedimento da fecundação. Como escreve a bióloga, especialista em biologia do desenvolvimento:
“Mas, quando Spallanzani foi com o pincel ao interior das cuequinhas e retirou lá um pouco de sémen retido para pincelar os ovos, o desenvolvimento iniciou-se sem demora.”
Experiências deste tipo foram reproduzidas por ele, pois uma das marcas da ciência é a experimentação repetida. E passou a informação a outros, pois a comunicação aos pares é outra das marcas da ciência. O naturalista suíço Charles Bonnet continuou os trabalhos de Spallanzani. E a comprovação pelo próprio e por outros das mesmas conclusões conduziu à morte da teoria da aura seminal. Mas mais: também acabou com a ideia das bonecas russas. Conclui Pinto Correia:
“Falar de miniaturas inteiramente pre-formadas, explica Bonnet, não pode ser lido senão como uma metáfora. (...) O que está preformado dentro do ovo... não é a miniatura do organismo: é, antes, um manual de instruções para que o organismo saiba como desenvolver-se: A este manual de instruções Bonnet chamou o germe.”
Hoje chamamos-lhe gene!
- Clara Pinto Correia e José Pedro de Sousa Dias (apresentação), “Histórias da Ciência”, Quasi, 2007.
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2 comentários:
Será que numa dessas histórias a Clara Pinto Correia conta a história de um dos seus multíplos plágios? E já agora, por que razão é que nunca vi aqui uma menção à excelente colecção que o Centro de História das Ciências da Universidade de Lisboa tem vindo a publicar? Por que razão Fiolhais parece preferir a vulgaridade de autores como Clara Pinto Correia e Ricardo Coelho, em detrimento dos grandes autores de História da Ciência?
As experiências de Spallanzani são, de facto, absolutamente extraordinárias. Será talvez o primeiro grande experimentalista, na biologia. Numa altura em que os naturalistas se dedicavam a fazer descrições da natureza, ele realizava experiências controladas sobre fisiologia, reprodução e mesmo para demolir os conceitos de geração espontânea: fez a mesma experiência que Pasteur muitos anos antes.
Mas, para Spallanzani não havia fusão entre óvulos e espermatozóides. Ele conclui, correctamente, que era preciso o líquido seminal para induzir (mais do que induzir) o desenvolvimento do óvulo. Mas, não considerava que os espermatozóides desempenhassem aí um papel. Considerava-os parasitas.
Spallanzani era preformista ovista, isto é, acreditava na lógica das matrioscas, só do lado feminino. Por isso, para ele, o organismo já estava no óvulo - só precisava de se desenvolver. Não deixa de ser interessante verificar como esteve tão perto da solução completa do problema, mas o seu quadro teórico fê-lo passar ao lado.
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