quarta-feira, 23 de maio de 2007

COIMBRA E A GÉNESE DA CIÊNCIA MODERNA 3


Texto, em colaboração com Décio Ruivo Martins, na sequência dos anteriores. Chegámos agora à época do Marquês de Pombal...

A época pombalina

O Laboratório Químico, o Gabinete de Física Experimental, o Museu de História Natural, o Jardim Botânico e o Observatório Astronómico foram, todos eles, criados no âmbito da reforma dos estudos de ciências realizada em 1772 por ordem do Marquês de Pombal. Esse governante, que tinha apreendido a cultura europeia quando foi diplomata em Londres e Viena, tornou-se em 1750 o poderoso primeiro-ministro do rei D. José I, tendo dirigido a reconstrução de Lisboa após o grande terramoto de Lisboa de 1755 (que tanto impressionou os maiores espíritos europeus, como Voltaire, Kant e Rousseau).

A reforma pombalina das ciências procurou fazer chegar a ciência moderna à Universidade, onde ela tinha tido alguma dificuldade em chegar e em permanecer. As ideias de Galileu e Newton, alicerçadas no método experimental, vieram a influenciar todo o século XVIII, o século das luzes. Um aspecto renovador, iniciado em Inglaterra no princípio do século XVIII, foi o ensino da Física Experimental. Instalaram-se gabinetes de Física Experimental nas mais prestigiadas universidades europeias, o que exigiu novos instrumentos. Por isso, logo nas primeiras décadas do século surgiram na Europa oficinas que produziram os instrumentos didácticos necessários para a Física Experimental. Quanto à Química, herdeira da antiga alquimia (hoje sabe-se que Newton foi um alquimista secreto) só no final do século XVIII havia de conhecer o lugar adequado para a investigação e ensino – o laboratório, um espaço equipado com meios de aquecimento e com utensílios de vidro e de cerâmica.

Apesar de todas as resistências internas, durante o século XVIII foi possível acompanhar-se entre nós o que se passava nos mais importantes centros da cultura europeia. Tal deveu-se, em grande parte, a acção de portugueses – os chamados “estrangeirados” – que, lá fora, contactavam e absorviam as novas correntes do pensamento e as novas práticas.

Newton, que morreu em 1727, foi pessoalmente conhecido por vários portugueses que passaram por Londres no final do século XVII e início do século XVIII. Numa sessão da Royal Society em 1724, presidida por Newton, foram lidas as primeiras comunicações de observações astronómicas realizadas em Lisboa no Paço Real pelos jesuítas italianos Giovanni Carbone e Domenico Capassi.

A difusão da filosofia newtoniana em Portugal deveu-se, em boa parte, ao exílio do judeu Jacob de Castro Sarmento para Inglaterra. Para fugir à Inquisição, em 1721, Sarmento, que tinha estudado Medicina na Universidade de Coimbra, fixou se em Londres, mantendo, no entanto, uma importante influência em Portugal. Ele foi um dos “estrangeirados”, portugueses notáveis que emigraram por razões de perseguição religiosa, política ou intelectual e lá fora assimilaram a cultura europeia. Sarmento, doutor pela Universidade de Aberdeen, na Escócia, entrou na Royal Society em 1730. A primeira tradução portuguesa de Newton foi feita por Sarmento: Teoria verdadeira das marés, conforme à Filosofia do incomparável cavalheiro Isaac Newton, publicada em Londres em 1737.

Outro “estrangeirado” que exerceu uma notável influência no desenvolvimento português no século XVIII foi João Jacinto de Magalhães (o nome denota a sua descendência do navegador Fernão de Magalhães), que estudou no Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra. Depois de ter deixado Portugal em 1756, viveu em França antes de se fixar definitivamente em Londres em 1764. Magalhães foi muito claro ao declarar que não queria mais viver sob um governo que não assegurasse a liberdade pessoal. Em Inglaterra colaborou e manteve correspondência com os cientistas europeus mais notáveis da sua época. Além disso, promoveu em todo o continente europeu instrumentos científicos feitos em Inglaterra. O prestígio científico de Magalhães estendeu se a toda a Europa, desde Lisboa a São Petersburgo, tendo mesmo chegado aos Estados Unidos. Magalhães foi membro ou sócio correspondente de várias sociedades científicas, entre as quais a Academia das Ciências de Lisboa, a Academia Real das Ciências – em Bruxelas, a Academia das Ciências – em Paris, a Academia Imperial de Ciências de São Petersburgo, a Academia das Ciências – em Berlim, a Sociedade Filosófica Americana – em Filadélfia, e a já referida Sociedade Real (Royal Society) – em Londres. Colaborou com a coroa portuguesa, enviando colecções de instrumentos de astronomia, física, náutica, etc., cuja construção ele próprio supervisionava. Para Coimbra, Magalhães enviou um conjunto de instrumentos de Física e de Astronomia, alguns com melhoramentos técnicos da sua autoria.

Os Jesuítas e os Oratorianos


Três escolas dos Jesuítas – o Colégio de Santo Antão, em Lisboa, o Colégio das Artes, em Coimbra e a Universidade de Évora – foram no século XVIII referências maiores no ensino das ciências exactas e naturais entre nós. Contudo, os documentos relativos à Reforma Pombalina da Universidade de Coimbra de 1772 expressaram opiniões muito críticas em relação à qualidade do ensino dessas ciências em Portugal antes dessa data. A actividade pedagógica e científica que antecedeu a reforma foi violentamente criticada, tendo os Jesuítas sido acusados de ignorância das correntes de pensamento científico que então dominavam a cultura europeia. Foram acima de tudo responsabilizados por promoverem uma pedagogia escolástica centrada em Aristóteles (Coimbra foi uma das sedes de um movimento filosófico ibérico, baseado nas ideias da Contra Reforma, e que ficou conhecido por “Conimbricenses”). Com efeito, os Estatutos Universitários pelos quais se regia o Colégio das Artes de Coimbra impunham a meio do século XVIII que se seguisse Aristóteles. Os Estatutos Pombalinos chegaram mesmo a considerar miserável o ensino das ciências nesse Colégio. Criticaram sobretudo o facto de a aquisição de conhecimentos ser literária e não experimental.

Um argumento utilizado para afirmar que, em Portugal, antes da Reforma Pombalina, se vivia um ambiente de estagnação científica foi o facto de as obras de Galileu, Descartes, Newton e outros se encontrarem oficialmente e a meio do século XVIII interditas ao ensino no Colégio das Artes de Coimbra. Com efeito, um edital do Reitor do Colégio das Artes de 1746, decretava esta proibição, que indicava um atraso significativo relativamente ao desenvolvimento científico na Europa.

Uma excepção a esta regra foi decerto a acção em Coimbra do jesuíta Inácio Monteiro. Mas Monteiro foi preso às ordens de Pombal em 1759 e desterrado para Ferrara, Itália, em cuja universidade desenvolveu actividade científica e pedagógica de mérito. Tornou-se, como outros, um ”estrangeirado”.

Mas, apesar das críticas feitas no tempo da Reforma ao estado do ensino das ciências, a primeira metade do século XVIII ficou assinalada em Portugal por um grande impulso nos estudos astronómicos. Foi durante o reinado de D. João V – que começou em 1706 – que foram construídas a Biblioteca Joanina da Universidade de Coimbra, uma jóia qrquitectónica que contém várias obras de ciências, e a Torre da Universidade, cujo terraço serviu para observar os astros, e que se importaram instrumentos para observações astronómicas. Este rei ganhou o gosto pelas ciências exactas, cujo desenvolvimento fomentou. O apoio dado à criação do Gabinete de Física Experimental da Casa das Necessidades em Lisboa é apenas um exemplo, entre vários, do interesse da coroa pelas ciências físico-matemáticas.


A Casa das Necessidades foi ocupada pela Congregação do Oratório. Esta Congregação, que desde o seu início se interessou pela instrução religiosa e literária da juventude, tinha sido fundada em Roma, por S. Filipe Neri, em 1565. Em Portugal começou por se instalar em Lisboa no Chiado em 1667. Em 1745 o edifício do então chamado Hospício da Nossa Senhora das Necessidades (onde é hoje o Ministério dos Negócios Estrangeiros) foi doado à Congregação do Oratório. Na Casa das Necessidades houve uma actividade pedagógica regular entre 1750 e 1768. Contudo, o Marquês de Pombal, depois de começar por aceitar a actividade da Congregação do Oratório, em substituição da dos jesuítas expulsos em 1759, procurou extingui-los, com o pretexto de que ensinavam doutrinas perniciosas à mocidade. Assim, a Casa das Necessidades foi encerrada, só reabrindo em 1777, quando D. José I morreu e o Marquês de Pombal se viu obrigado a fugir da capital.

A actividade de alguns membros da Congregação do Oratório foi essencial para renovar a mentalidade pedagógica portuguesa, ainda na primeira metade do século XVIII. Sobressaem dois dos seus padres: Teodoro de Almeida e João Chevalier.

Teodoro de Almeida deu um contributo notável para a renovação da cultura científica não só em Portugal como em Espanha. A sua atitude reformista viria, no entanto, a ser fortemente combatida pelos meios mais conservadores da cultura portuguesa, particularmente por alguns membros da Companhia de Jesus, tendo mesmo sido acusado de heresia. O seu livro Recreação Filosófica ou Diálogo sobre a Filosofia Natural, cujo primeiro tomo foi publicado em 1751, revela a existência em Portugal na época de um ensino actualizado. E revela também a preocupação com a divulgação da ciência. A actividade pedagógica e científica de Almeida entre 1745 e 1760 antecipou em cerca de um quarto de século a renovação do ensino verificada em Coimbra com a Reforma Pombalina em 1772. Muitos aspectos que viriam a ser contemplados com a criação do Gabinete de Física Experimental em Coimbra eram já preocupação de Teodoro de Almeida no início da década de 1750.

No Colégio dos Oratorianos a prática das metodologias experimentais atingiu padrões de qualidade internacional. Alguns autores da época referiram se de uma forma muito elogiosa à qualidade e da quantidade dos instrumentos com que estava equipado o Gabinete de Física da Casa das Necessidades, que serviu para instrução e recreação do Rei. Mas não se sabe hoje o que aconteceu a esse espólio...

Alvo das perseguições pombalinas, Almeida foi obrigado a exilar-se. Em 1760 desterrou-se para o Porto, vendo se de novo obrigado a fugir, passados oito anos, desta vez para Espanha e daí para França, só regressando a Portugal em 1778. Em França correspondeu-se com um outro “estrangeirado”, António Ribeiro Sanches, de origem judaica que foi médico de Catarina II na corte russa assim como um dos inspiradores da reforma pombalina das ciências. Continuou no exílio a desenvolver uma grande influência na cultura portuguesa. Publicou em 1784 uma obra em três tomos intitulada Cartas Físico matemáticas de Teodósio a Eugénio e em 1785 as Institutiones Physicae ad usum Scholarum. Teodoro de Almeida foi sócio fundador da Real Academia das Ciências de Lisboa, em 1779, que surgiu na sequência da criação de instituições análogas nas principais capitais europeias. Aí protagonizou uma actividade considerável até falecer em 1804.

Por seu lado, João Chevalier, astrónomo e matemático que era sobrinho de um dos grandes pedagogos do Iluminismo português – o “estrangeirado” em Roma, Luís António Verney, autor de uma obra de referência na história do ensino em Portugal, intitulada Verdadeiro Método de Estudar (1746) – viu o seu trabalho em Portugal severamente restringido, tendo sido mais uma vítima do regime de Pombal nos primeiros anos da década de sessenta.

Chevalier foi um dos mais notáveis astrónomos dos Oratorianos, destacando-se as observações que realizou na Casa das Necessidades entre 1753 e 1757. A meio do século XVIII a actividade na área da astronomia de Chevalier prevaleceu sobre a de todos os portugueses seus contemporâneos. Tornou se correspondente do astrónomo francês Joseph-Nicholas De l’Isle, enviando para Paris as observações feitas em Portugal. Realizou observações de eclipses da Lua, do Sol, dos satélites de Júpiter e da passagem de Mercúrio sobre o disco solar. Em 1759 Chevalier comunicou a observação de um cometa de cauda pouco comprida mas larga. Esta observação foi enviada a De l’Isle e a outros astrónomos de Paris, tendo sido apresentada na Academia das Ciências de Paris. Tratava se do cometa Halley, cujo regresso tinha sido previsto pelo astrónomo inglês Edmond Halley, contemporâneo de Newton, em 1705, para 53 anos mais tarde. Halley tinha estudado as aparições de cometas em várias épocas e, baseado na teoria newtoniana, previu que um cometa avistado em 1682 deveria voltar a aparecer em 1758. Efectivamente o cometa só apareceu pouco tempo depois das previsões de Halley, pois este não tinha considerado a influência de Júpiter e Saturno no seu movimento. O cometa acabou por ser observado pelo astrónomo amador alemão Johann Georg Palitzsch na noite de 26 para 27 de Dezembro de 1758. O francês Charles Messier, que se tornou famoso pela descoberta de 20 cometas, só o observou em Janeiro de 1759. Os trabalhos de Chevalier mereceram-lhe a nomeação em 1753 como sócio correspondente da Academia de Ciências de Paris, tendo para o efeito valido o apoio de Ribeiro Sanches e do francês Georges Buffon.

Em consequência da perseguição pombalina, Chevalier teve que se refugiar no Norte de Portugal, em 1760. Passado um ano abandonou o país, fixando se em Bruxelas, onde viria a ser bibliotecário da Biblioteca Real. Numa reunião em 1769 da sociedade literária que haveria de originar em 1772 a Academia Imperial e Real das Ciências e Letras de Bruxelas, Chevalier foi admitido como membro. Foi nomeado director da Academia em 1791, tendo sido três anos depois reeleito. Chevalier faleceu em Viena, depois de uma invasão francesa o ter obrigado a abandonar a Bélgica.

1 comentário:

Filipe Moura disse...

Não se arranja nada para dizer sobre o Pierre-Giles de Gennes?

http://www.liberation.fr/actualite/sciences/255364.FR.php

http://cftc.cii.fc.ul.pt/arquivo/entrevista.htm

Cumprimentos.

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