domingo, 13 de maio de 2007
A BOMBA ATÓMICA E A CULPA
O século XX assistiu a transformações históricas extremamente rápidas. Uma das mais rápidas foi a que permitiu que uma descoberta no domínio da ciência pura – a cisão do urânio – feita em Dezembro de 1939 pelos alemães Hahn e Strassman conduzisse passada escassa meia dúzia de anos ao deflagrar de uma bomba nos céus de Hiroshima, acontecimento com que terminou a Segunda Guerra Mundial.
Otto Hahn soube da explosão da bomba pela rádio quando se encontrava preso na mansão de “Farm Hall”, nos arredores de Cambridge, na Inglaterra. Com ele estavam mais nove famosos cientistas alemães, caídos nas mãos dos Aliados, entre os quais o já então Prémio Nobel da Física Werner Heisenberg. Hahn não queria acreditar: “Cem mil pessoas mortas?!”. O comentário que se pretendia tranquilizador do oficial britânico serviu apenas para agravar o sentimento de culpa: “Mais vale a morte de cem mil japoneses do que a de um só dos nossos soldados”. Hahn foi assaltado por pensamentos suicidas (tinha sido ele que tinha descoberto a cisão que estava na base do processo da bomba!) e teve de ser vigiado pelos seus colegas e pelos oficiais de guarda. Mais tarde havia de receber o Prémio Nobel da Química pela sua descoberta.
A história tinha de facto acelerado muito em seis curtos anos. Uma descoberta, no início na guerra, que parecia ir ficar anónima, tinha afinal posto cobro à própria guerra. O curioso é que os físicos nucleares alemães, que aparentemente tinham procurado fabricar uma arma atómica, não acreditaram à primeira que os seus colegas a trabalhar para os norte-americanos a tivessem conseguido. À notícia da rádio seguiram-se discussões muito vivas sobre o que é que de facto estava em causa e as razões por que é que uns tinham conseguido e os outros falhado. Essas discussões foram gravadas secretamente e só há passados mais de cinquenta anos a respectiva transcrição foi tornada pública sob a forma de livro.
O sentimento de culpa (seria moral matar tanta gente com uma arma científica?) acabou por se apoderar de todos e não apenas de Hahn. Heisenberg relata no seu livro “Diálogos sobre Física Atómica” a pergunta do seu colega Carl Friedrich von Weizsaecker (um dos grandes físicos e filósofos do século XX, falecido há poucos dias):
“É compreensível que Hahn esteja desesperado pelo facto de a sua maior descoberta científica se ligar agora ao opróbrio dessa catástrofe inconcebível. Porém, terá razão ao sentir-se, de certo modo, culpado? Sê-lo-á mais do que nós, que colaborámos igualmente no domínio da física atómica? Somos todos co-responsáveis deste desastre? Em que consiste afinal essa culpa?”.
Resposta de Heisenberg:
(...) “Não creio que tenha sentido aplicar aqui a palavra “culpa”, mesmo que, de alguma maneira, estejamos enredados em toda esta trama. Hahn e nós interviemos no desenvolvimento da ciência moderna. Esta evolução é um processo vital por que há séculos a humanidade se decidiu, ou, pelo menos, os Europeus; se quisermos uma expressão mais cuidada, por onde a humanidade se aventurou. Sabemos por experiência que este processo pode levar ao bem ou ao mal. Mas estávamos convencidos – e foi essa especialmente a crença do século XIX no progresso de que com o crescimento do saber prevaleceria o bem e que poderíamos dominar as possíveis consequências negativas. A possibilidade de concepção de bombas atómicas não poderia imaginá-la Hahn nem nenhum de nós, antes da descoberta da fissão do urânio (...)”
Era de certo modo verdade, pois até o descobridor do núcleo atómico, o britânico Ernest Rutherford, nunca tinha imaginado a mínima utilidade prática para esse tal núcleo. Mas as palavras desculpabilizadoras de Heisenberg talvez não chegassem para afastar a culpa.
Do outro lado do Atlântico, os cientistas atómicos também conheciam a culpa. O maior deles todos, Einstein, sempre carregou com esse peso, por ter escrito uma carta ao Presidente Roosevelt alertando-o para a possibilidade de fabrico de uma arma de destruição maciça a partir do urânio e chamando a atenção para eventuais trabalhos alemães nesse sentido. “Fui eu que carreguei no botão”, afirmou contrito mais tarde.
Mas Einstein esteve longe de ser um operacional no projecto Manhattan, que reuniu a nata da física mundial em Los Alamos (nunca tantos cérebros tinham estado tão próximos e a trabalha tão intensivamente para o mesmo fim). O chefe dos operacionais era Robert Oppenheimer, um judeu tal como Einstein. Foi ele que estava na frente da linha de observação quando rebentou, pouco antes de Hiroshima, um engenho nuclear experimental no deserto do Novo México. Mas foi o mesmo Oppenheimer que exclamou perturbado: “Com a bomba atómica nós os cientistas conhecemos o pecado”.
A história posterior de Oppenheimer é bem conhecida. No período da caça às bruxas do maccarthismo foi acusado de simpatia comunista e impedido de partilhar segredos atómicos. O caso, ou talvez melhor o drama, de Oppenheimer deu até lugar a uma peça de teatro. De facto, o teatro tem de vez em quando ido buscar motivos à ciência. Um bom exemplo é a peça do suíço Friedrich Duerrenmatt, “Os Físicos”, que se passa num manicómio, e onde dois dos internados dão pelo nome de Newton e Einstein...
Mas os físicos, assim como os outros cientistas, longe de serem maluquinhos a precisar de internamento ou criadores de frankensteins, são primeiro e acima de tudo pessoas como outras quaisquer. Pessoas que sentem culpa, um dos sentimentos mais humanos (e que por isso extravasa em muito o círculo judaico-cristão). Otto Hahn quis suicidar-se para expiar a sua curva. Heisenberg teorizou sobre filosofia da história para apagar a culpa que evidentemente sentia. Einstein carregou a sua cruz que não passa de uma carta (de resto escrita por outrem, o húngaro Szilard). Oppenheimer depois de ter visto o clarão "mais brilhante do que mil sóis" (expressão de um poema indiano e que serviu para título de um famoso livro de Robert Jungk sobre a história da bomba atómica), achou-se co-responsável pelo apocalipse. Todos eles são humanos, pessoas com a sensibilidade e os sentimentos de qualquer pessoa normal. Hoje, em vez de culpa, expressão um tanto ou quanto crua, falamos de responsabilidade social do cientista. As questões que se punham só para os físicos no século passado põem-se hoje com particular acuidade para os biólogos, que estão de posse dos segredos da vida. Para o bem e para o mal, os cientistas são co-responsáveis (note-se o “co” antes do “responsáveis”, porque numa sociedade democrática não há pode haver poderes únicos e exclusivos) pelo futuro de todos.
Uma grande humanidade foi também a marca de Niels Bohr, o grande cientista atómico, que foi mestre de Heisenberg e um dos poucos génios do século XX cujo perfil se pode alcandorar ao de Einstein (aliás, a polémica entre Bohr e Einstein sobre o significado da mecânica quântica constituiu uma das grandes discussões filosóficas do século passado). Na peça de teatro “Copenhaga” de Michael Frayn em que contracenam Bohr e Heisenberg, para além da mulher do primeiro, é recriada, por tentativas sucessivas e sempre falhadas, a conversa que os dois tiveram em Outubro de 1941, na cidade de Copenhaga. Parece que ninguém sabe o que se passou nessa conversa, nem os próprios. Mas sabe-se que foi uma conversa sobre a possibilidade da bomba atómica. Não seria inevitável, ao recriar depois do clarão “mais brilhante do que mil sóis” uma conversa sobre a terrível arma, que os dois físicos procurassem esconjurar a sua culpa?
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10 comentários:
Belo post!
de facto, bom "post"
A expressão «Einstein esteve longe de ser um operacional no projecto Manhattan» é um eufemismo. De facto, Einstein não esteve de modo algum ligado àquele projecto e o único contributo concreto dele para o esforço de guerra foram alguns cálculos que fez para a marinha dos Estados Unidos. Creio que foi por causa das suas ideias políticas que nunca lhe foi pedida uma participação mais activa, contrariamente a Bohr, que fez pelo menos uma palestra no âmbito do projecto Manhattan. É claro que isto só dá mais valor aos remorsos que veio a sentir mais tarde.
Não deixa de ser curioso que se fale tanto da "culpa" dos cientistas na criação das armas mais diabólicas e sinistras que hoje se encontram disponíveis, mas nunca se fale da culpa dos militares que as empregam ou dos dirigentes políticos que lhes dão as ordens.
No fundo, somos todos culpados como sociedade. As armas atómicas não sairam da caneta dos cientistas. Sairam dos esforços e intenções de várias sociedades humanas que, com as mais variadas justificações, procuraram sempre ter uma arma de arremesso mais poderosa do que as dos seus próximos.
Neste retrato, ninguém sai inocente e os cientistas são apenas um conveniente bode expiatório de uma culpa que é de todos.
Uma descoberta, no início na guerra, que parecia ir ficar anónima, tinha afinal posto cobro à própria guerra.
Bem, mais do que pôr cobro, o que esse crime fez foi apenas apressar o fim e nada mais. E de uma forma tão inumanamente brutal que ainda hoje mais de 250 mil pessoas (hibakusha) continuam a sofrer as consequências - físicas e sociais - de terem estado expostas à radiação atómica.
Note-se que nada há de comparável a este drama no que se refere às vítimas do Holocausto, e muito menos aos seus descendentes. Há danos psicológicos e morais, sim, mas o drama dos hibakusha é incomparavelmente superior. E, contudo, tal é quase inteiramente ignorado e silenciado pelos seus directos responsáveis, bem ao contrário do que a Alemanha continua a fazer, até com algum exagero, diga-se!
No que se refere a culpas ou responsabilidades, elas são essencialmente militares e políticas, e assim deveriam ter sido julgadas e condenadas, como se fez em Nuremberga com outros crimes de guerra, caso a História não fosse sempre escrita pelos vencedores. Felizmente, começa a haver alguns indícios de que talvez esta impunidade tenha os dias contados, e ainda bem...
Por fim, o clarão mais brilhante do que mil sóis é de facto uma expressão do famosíssimo e indizivelmente belo "Bhagavad-Gita", ou a Canção do Senhor, a mais célebre escritura oriental, por excelência. Nesse excerto do magistral poema épico "Mahabharata" (Grande Índia), Krishna revela a sua transcendente Forma Universal a Arjuna, conforme descrito no Capítulo XI, "The Cosmic Form". Eis esses 2 versículos (12-13), na 1ª tradução conhecida no Ocidente, em 1784!
What brilliance there would have been if a thousand suns were to blaze forth all of a sudden in the sky - to that was comparable the splendour of that great Being.
There in the body of that God of all divinities, the son of Pandu then saw the whole universe - a multiplicity abiding unified in His being.
De novo, o mesmíssimo relato tantas vezes repetido da efulgência sem forma que deu forma a todas as formas! Ou seja, justamente o contrário da destruição, mas ainda o misterioso início da criação!
Ah! Esse fulgor pode ser contemplado, a Flor Dourada ou a Pura Luz Clara... da una Consciência rara!
Hummm... talvez excitando os lobos occipitais também dê... mas e o inexprimível êxtase quem o sente ou quem o vê?! ;)
So... there is surely much more here than meets the eye...
Rui leprechaun
(...to gaze into the Light of the innermost sky! :))
Obrigado pelo post.
Considera que o mesmo tipo de consciência social faz hoje parte da reflexão da maioria dos cientistas? Podem os cientistas hoje ter a possibilidade de fazer qualquer tipo de reflexão sobre as implicações éticas da utilização do conhecimento que produzem?
A noção de culpa para que este post (mais um dos excelentes deste blog) nos remete deve ser encarada como mais uma distracção e um exercício de retórica onde fácilmente estamos na circularidade dos pensamentos esféricos.
Uma descoberta científica, uma teoria verificada de análise da realidade, É SÓ UMA VERDADE, mais nada. Não é culpada de nada que seja feito a seguir com ela. Senão, estamos a acusar, por exemplo, os inventores da fundição de metais como responsáveis de todas as guerras que aconteceram a partir do fabrico da primeira espada ou espingarda.
Claro que a forma ligeira com que me exprimi é enganadora. De facto as coisas não são assim tão simples e este magnífico post do professor Carlos Fiolhais traz-nos um exemplo concreto: a própria produção da primeira bomba atómica foi feita com a intervenção de cientistas. O facto de ser digamos assim, a bomba ou a vida! faz toda a diferença. E, na minha opinião retira toda a culpa à ciência.
O sentimento de culpa pessoal é algo muito mais complexo e associa-se a uma outra questão que também já aqui procurei trazer: a integridade intelectual e as relações com a deontologia.
De qualquer forma, independentemente dos pontos de vista com que possamos querer abordar este assunto, desembocará sempre nas questões da liberdade individual e das artimanhas do poder, a que devemos sempre dar toda a atenção e preocupação sob pena de a ciência se amputar a si própria.
Artur Figueiredo
Não posso concordar quando diz: "pessoas que sentem culpa, um dos sentimentos mais humanos". Está documentado que os animais também sentem culpa, sendo um sentimento que, por isso, é transversal a várias espécies e não um sentimento dos mais humanos que existem (se é que existem sentimentos exclusivamente humanos, especulação na qual acredito!) A questão dos sentimentos em animais é, infelizmente, uma questão um pouco tabu em ciência, não sendo considerados sentimentos/emoções, mas sim comportamentos institivos ou adaptativos. Tem-se muito medo do antromorfismos, o que em algumas situações é algo bom, mas noutras serve apenas para negar/recusar a existência de uma vida emocional nos nossos parentes animais. é uma questão que precisava de muito mais e melhor investigação, mas enfim...
Claro que não se poder ser sempre objectivo, por isso considere-se perdoado :)
não é obviamente antromorfismos, mas sim antropomorfismos o que queria escrever!
Engraçado, fala-se tanto de fisicos, cientistas, mas esquecem que os mesmos eram em sua MAIORIA judeus?
Por que a maior enfase no holocausto judeu? E hiroshima? Será porque foram eles mesmos que provocaram tal holocausto atomico?
Que peninha tenho de Einstein probrezinho nada teve a ver com a bomba atomica, mas foi correndo aos estados unidos levar seus calculos roubados e plageados. Nem mesmo a teoria de E=mc2 é dele e sim de Poincare.
O que falar de Los Alamos? O cabeça um judeu? Porque nao estou espantado?
Sentimento de culpa? Bah,... só se for de nao poder ter tirado mais lucro disto.
Hipocrisia é pouco...
A hora da verdade esta chegando.
O sionismo vai cair.
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