segunda-feira, 28 de maio de 2007

COIMBRA E A GÉNESE DA CIÊNCIA MODERNA 4


Continuação da série de escritos, em colaboração com Décio Martins Ruivo, sobre história da ciência em Portugal. Desta vez o tema é: "A reforma pombalina do estudo das ciências". Na foto, uma das peças do Gabinete de Física Experimental criado pela reforma pombalina.

Na segunda metade do século XVIII teve lugar em Portugal uma acesa polémica entre Oratorianos e Jesuítas, os primeiros chamados modernos e os segundos antigos. As escolas dos Oratorianos foram pioneiras no ensino e prática da ciência e filosofia modernas. No entanto, tal como os Jesuítas, os membros da Congregação do Oratório viriam a ser perseguidos no período de grandes atribulações políticas que começou no fim da década de 1750. Um longo processo de dificuldades, iniciado em 1760, culminou passados oito anos com a extinção da Casa das Necessidades. O processo de opressão da actividade dos Oratorianos coincidiu com o lento e infausto processo de criação do Colégio dos Nobres, destinado a aristocratas, pelo Marquês de Pombal.

As influências no sentido da laicização do ensino e da sociedade em geral, começaram a sentir-se de forma mais pronunciada em 1760 com a publicação das Cartas sobre a educação da mocidade, de Ribeiro Sanches. Nesta obra, são valorizadas as excelências do método experimental e as virtudes da Matemática como elemento indispensável ao exercício do rigor e do raciocínio lógico. Duas consequências, uma imediata e outra posterior, foram a criação do Colégio dos Nobres em Lisboa e a Reforma Pombalina da Universidade de Coimbra, ambas baseados em modelos educativos inspirados na física de Newton e na filosofia do inglês John Locke.

A acção de D. Francisco de Lemos, bispo co-adjutor de Coimbra, foi decisiva para essa mudança ocorrida em Coimbra. Este clérigo, que havia frequentado Direito Canónico na Universidade de Coimbra, foi nomeado em 1770 Reitor e passados dois anos Reitor Reformador da Universidade de Coimbra. Ao longo da reforma da academia, dirigiu os novos estabelecimentos até 1777. Mais tarde havia de voltar a ser reitor e de participar no processo da pré-independência do Brasil, de onde era natural. Na Relação Geral do Estado da Universidade Lemos expressou a necessidade de um curso onde a Filosofia fosse abordada de forma moderna. A Universidade deveria acompanhar a ciência internacional e ser ela própria um meio para o desenvolvimento cultural e científico.

Para os promotores da reforma, uma acção eficaz que retirasse o ensino das ciências da situação em que se encontrava só poderia concretizar-se pela criação de novas escolas, em conformidade com as correntes pedagógicas que se iam espalhando na Europa. A nova universidade deveria participar na vida social e económica, para além de alargar os horizontes culturais. Segundo o Reitor-Reformador, a reorganização do estudo das ciências deveria contribuir para um melhor conhecimento das riquezas naturais, trazendo para a indústria e para o comércio novos recursos.

Um dos grandes responsáveis da organização do ensino das ciências exactas e naturais da reforma pombalina foi José Monteiro da Rocha. Foi por intervenção do Reitor-Reformador que o Marquês de Pombal teve conhecimento do seu mérito científico. Tendo o chamado a Lisboa, encarregou o da redacção dos novos Estatutos da Universidade na parte das ciências matemáticas e naturais. O percurso de Monteiro da Rocha permanece incerto nalguns aspectos. Presumivelmente terá sido levado para o Brasil ainda jovem, onde ingressou na Companhia de Jesus em 1752. Aí terá feito os seus estudos no Colégio dos Jesuítas da Baía. Depois da extinção desta Ordem, continuou durante algum tempo no Brasil, tendo sido encarregado da educação dos filhos do governador da Província. Em 1760 foi ordenado padre secular na Baía. Contudo, persiste a dúvida se terá antes entrado nos Jesuítas ainda em Portugal e ido para a Baía só depois da extinção da ordem. O certo é que, depois do seu regresso a Portugal, se instalou em Coimbra. Frequentou aí a Universidade entre 1766 e 1770, formando-se em Cânones.

Ainda no Brasil, por ocasião da passagem do cometa Halley, em 1759, Monteiro da Rocha redigiu em Salvador, na Baía, um manuscrito sobre cometas, que concluiu em Março de 1760, quando tinha apenas 25 anos de idade. Neste documento, intitulado Sistema físico-matemático dos cometas, Rocha analisava a natureza física dos cometas e o modo de calcular as suas efemérides. Por razões que se desconhecem, o manuscrito de Monteiro da Rocha manteve-se inédito na Biblioteca Pública de Évora, até que o investigador brasileiro Carlos Ziller Camenietzki o encontrou e publicou em 2000. Por decreto de 1772 Monteiro da Rocha foi nomeado professor da nova Faculdade de Matemática para a cadeira de Ciências Físico Matemáticas. Um dos mais importantes projectos em que se empenhou foi o da criação do Observatório Astronómico da Universidade de Coimbra. A construção do edifício do Observatório previsto nos estatutos pombalinos passou por várias vicissitudes. Inicialmente foi delineado um majestoso edifício, cujo projecto foi abandonado em Setembro de 1775, provavelmente, devido ao seu exagerado custo. Foi só em 1790 que começou a ser erigido um edifício mais modesto no Pátio da Universidade. Este projecto apenas ficou concluído em 1799, tendo durado até meio do século XX quando a Alta coimbrã foi completamente transformada. A partir desta data, Monteiro da Rocha encarregou-se de o equipar com alguns instrumentos vindos do Colégio dos Nobres de Lisboa e outros encomendados a João Jacinto de Magalhães em Londres.

Em 1783 Monteiro da Rocha foi nomeado lente de Astronomia, tendo sido jubilado em 1795. Nesse mesmo ano foi nomeado director perpétuo da Faculdade e do Observatório Astronómico. Foi, sobretudo, como director do Observatório Astronómico que José Monteiro da Rocha se notabilizou. Foi ele que mais trabalhou nas famosas Efemérides astronómicas para o real observatório da cidade de Coimbra, relativas ao ano de 1804, cujo primeiro volume saiu em 1802. Quando se fundou a Academia Real das Ciências de Lisboa, José Monteiro da Rocha foi nomeado seu sócio fundador, juntamente com vários eminentes homens de ciência do seu tempo.

Para além da intervenção no ensino da Matemática, tornava se imperiosa uma grande renovação na área da Filosofia Natural. O ensino das ciências no Colégio dos Nobres de Lisboa não tinha conseguido atingir os objectivos pretendidos. A instalação de um Gabinete de Física Experimental nesse Colégio revelou-se infrutífera, apesar da contratação de um notável professor italiano, Giovanni Dalla Bella, de Pádua. Verificado esse falhanço, o seu equipamento foi transferido em 1773 para o Gabinete de Física Experimental de Coimbra. Dalla Bella mudou-se também para Coimbra. Em 1772 tinha sido criada a Faculdade de Filosofia da Universidade de Coimbra para substituir o Colégio das Artes. A instalação do Gabinete de Física de Coimbra, caracterizado pela riqueza dos seus instrumentos (dizia-se que era maior que o da Universidade de Pádua!), foi uma das obras mais relevantes da Reforma Pombalina.

O programa de estudos da cadeira de Física Experimental que, com a Reforma, começou a ser leccionada em Coimbra estava a par do que era então ensinado nas melhores escolas europeias. O Physices Elementa, em três volumes, de 1789/1790, de Dalla Bella, foi a primeira obra, no âmbito da Física Experimental, a resultar da Reforma Pombalina da Universidade, e nela era patente a actualização científica.

O ensino prático da Filosofia Experimental foi considerado uma necessidade maior. Nos Estatutos da Universidade, de 1772, lê se: ...os estudantes não somente devem ver executar as experiências, com que se demonstram as verdades até ao presente, conhecidas na mesma Física, mas também adquirir o hábito de as fazer com sagacidade e destreza, que se requer nos Exploradores da Natureza. O Gabinete de Física devia mostrar a Física Experimental, a sua origem, os seus progressos e os seus objectivos. Pretendia se que os estudantes não se limitassem a ver as experiências, mas que também fossem habituados a resolver problemas concretos que envolvessem experiências.

O Gabinete de Física foi equipado com seis centenas de máquinas. Cada uma delas tinha uma concepção que a tornava adequada a um dos capítulos do programa descrito no curso redigido por Dalla Bella. O Gabinete de Física de Coimbra, mostra bem a profunda influência que as ideias e os instrumentos provenientes de outros lados da Europa tiveram em Portugal no século das luzes. Os visitantes do Museu da Física da Universidade de Coimbra podem hoje verificar a riqueza do seu acervo.

As recém criadas Faculdades de Filosofia e de Matemática foram concebidas como unidades complementares do ensino das ciências. Os assuntos científicos eram apresentados nas duas escolas com bom suporte experimental. O próprio Marquês de Pombal se deslocou a Coimbra para supervisionar o início da reforma com novos edifícios e equipamentos, para além dos novos professores.

O corpo docente da Faculdade de Filosofia era formado por António Soares Barbosa, que leccionava a cadeira de Lógica, Metafísica e Ética, o já referido Giovanni Dalla Bella, que ensinava Física Experimental, e outro italiano, Domenico Vandelli, que ensinava Química e História Natural. Por seu lado, na Faculdade de Matemática, além de Monteiro da Rocha, que ensinava as ciências físico-matemáticas, os professores eram Miguel Franzini, que regia a cadeira de Álgebra, e Miguel António Cieira, que leccionava Astronomia. O Marquês de Pombal nomeou também José Anastácio da Cunha lente da Faculdade de Matemática, para ensinar Geometria.

A construção do imponente edifício do Laboratório Químico, hoje sede do Museu de Ciência da Universidade de Coimbra, foi uma das mais emblemáticas medidas da reforma universitária de 1772. Pombal tinha já antes planos claros para o Laboratório de Química, que foram trazidos de Viena de Áustria, a seu pedido, por Joseph Francisco Leal. Enquanto decorriam as obras no edifício, Vandelli ensinava em instalações provisórias do extinto Colégio das Artes. Vandelli terá chegado a Portugal em 1764, com destino ao Colégio dos Nobres de Lisboa. Mas, tal como Dalla Bella, o professor italiano transferiu-se para Universidade de Coimbra em 1772.

Para além do Laboratório Químico Vandelli esteve também ligado à elaboração de um plano de construção do Jardim Botânico, bem como ao acompanhamento da construção e instalação do Museu de História Natural. A criação em Coimbra de um jardim botânico era um anseio antigo. Já em 1731 tinha sido elaborado um projecto por Jacob de Castro Sarmento, baseado no pequeno Jardim do Chelsea Physic Garden, em Londres, que era um jardim para espécies farmacêuticas. O novo plano do Jardim Botânico da Universidade de Coimbra foi delineado por Vandelli e Dalla Bella, ampliando o projecto anterior. Contudo, por o considerar extravagante e demasiado dispendioso, este plano não foi bem acolhido por Pombal. Assim, só em 1774 tiveram início as obras, junto à Universidade, segundo um plano mais modesto. E foi só a partir de 1791 que o professor de Botânica e Agricultura Félix Avelar Brotero assumiu a direcção do Jardim, providenciando a aquisição de mais terreno de uma quinta próxima. O visitante que hoje entra no Jardim encontra logo – e a justo título – à entrada uma estátua de Brotero.

Para além da sua actividade docente Vandelli também esteve envolvido num projecto industrial bem sucedido na cidade de Coimbra. Em 1780 instalou num edifício vago, pertença da Universidade, uma fábrica de porcelana da qual veio a ser director e que ficou conhecida como Louça de Vandelles. A fábrica rapidamente se tornou uma das melhores da região pelo que, em 1787, foi concedido pela coroa a Vandelli o privilégio exclusivo da venda desta loiça. Nesse mesmo ano, o italiano foi encarregado de superintender os trabalhos para a instalação do Jardim Botânico do Palácio Real da Ajuda. Apesar dos diversos cargos para os quais viria a ser nomeado e da sua prolongada ausência de Coimbra, Vandelli manteve os lugares de Director do Laboratório de Química da Universidade bem como o de membro da Congregação de Professores da Faculdade de Filosofia.

Com o progressivo afastamento das actividades docentes de Vandelli, a continuidade do ensino da Química e História Natural ficou assegurada pelos lentes substitutos e demonstradores, dos quais Vicente Coelho de Seabra foi um dos que mais se destacou. Natural do Brasil, Vicente Coelho Seabra licenciou-se em Medicina na Universidade de Coimbra, em 1791, depois de ter sido brilhante estudante da Faculdade de Filosofia (a galeria dos notáveis oriundos do Brasil no século XVIII, além do químico Seabra, do Reitor-Reformador Lemos e do mineralogista Andrada e Silva, incluiu ainda Bartolomeu de Gusmão, o famoso construtor e demonstrador da Passarola no tempo do Rei D. João V). No mesmo ano em que concluiu os seus estudos médicos foi nomeado demonstrador da cadeira de Química e Metalurgia. Em 1788/1789, com apenas 24 anos e quando ainda era estudante de Medicina, Seabra publicou o livro Elementos de Química. Seabra dividiu o seu compêndio em duas partes: a primeira publicada um ano antes do francês Antoine Lavoisier dar à estampa o seu famosíssimo Tratado Elementar de Química (1789) e a segunda editada um ano após a publicação deste famoso tratado. É extraordinário que Seabra tenha antecipado as principais ideias da Química de Lavoisier, em oposição às anteriores ideias do flogisto, mas infelizmente faleceu pouco antes de fazer 40 anos, sem ter tido tempo de prosseguir a sua obra!

1 comentário:

Bruce Lóse disse...

O que eu sei é que após séculos de pancrácio bordalês vs. contra-reforma ainda não há quem tenha mão nisto. E que os filósofos se abespinhem, ainda vá que não vá!, o pior são os químicos. Gerações e gerações de espectadores humilhados, ainda hoje debulham o escalpe com Restaurador Olex, com renovada esperança a cada aplicação. Para quando um produto eficaz?
Caramba! Chega de dividir o átomo.

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