terça-feira, 25 de maio de 2010
O LEGO DA VIDA
Nova crónica de António Piedade, saída há pouco no "Diário de Coimbra":
Quando em 2001 a empresa Celera Genomics, liderada por J. Craig Venter, e o Consórcio Internacional do Projecto do Genoma Humano, liderado inicialmente por James Watson, divulgaram as suas cartografias do genoma do Homo sapiens sapiens, foi salientado por muitos cientistas que a tarefa hercúlea que acabara de ser concluída, era só o princípio de um dilúvio de dúvidas, novas questões, novos desafios insuspeitos, algo de genuinamente próprio da melhor ciência. Foi como se se tivesse fotografado, de dois ângulos ligeiramente diferentes, a pedra de Roseta: já se conseguiam “ver” todas as “letras” e a sequência por que estão dispostas.
Mas a sequenciação, em si própria, não respondeu imediatamente a questões como o que é que a sequência diz (faz), qual o seu papel na orquestra dos mecanismos celulares, qual a semântica da hiperligação existente entre frases em parágrafos (genes) e capítulos (cromossomas) diferentes e que aparentam estar envolvidos em instruções para uma tarefa particular. É que as instruções genómicas para a vida não são muito lineares. Verificamos inúmeros exemplos em que a decisão, para uma determinada característica, resulta da comunicação entre genes localizados em cromossomas distintos. Por outras palavras, o resultado da regulação e da interacção da informação inscrita nos cromossomas é muito diferente da soma das partes. A álgebra da vida parece precisar de outras operações para as quais ainda somos míopes (Newton resolveu a sua miopia desenvolvendo uma nova lente matemática para melhor descrever o movimento e a atracção dos corpos com massa!).
Ademais, há ainda a considerar, para a compreensão do funcionamento celular, a interacção de inúmeras moléculas, que banham e inundam as células, transportando ondas de ordens, informações vindas de outras células, muitas tendo origem e fim em órgãos diferentes (o cérebro a controlar o movimento dos músculos com que o leitor folheará esta página, por exemplo). Muita da habilidade molecular em dar sentido a estas comunicações químicas está inscrita nos genes. Mas também é resultado das propriedades físico-químicas da interacção entre as biomoléculas. O genoma foi-se “estabilizando” ao longo da evolução, de acordo com as propriedades implícitas da matéria que também o constrói.
Se pensarmos nestes blocos de biomoléculas, quer orgânicas, quer inorgânicas, como peças de Lego, talvez percebamos melhor que peças “iguais" podem cumprir perfeitamente a sua função, como parte do parapeito de uma janela ou da asa de um avião.
A natureza da vida rege-se por uma economia muito ajustada dos recursos disponíveis: quando algo funciona bem, utiliza-se para o maior número de funções e interacções em que funcione com significado e utilidade. Assim, com um número reduzido de peças, consegue-se uma biodiversidade espantosa e ajustada a um meio em permanente mudança. Logo, as peças, ou algo na forma como elas interagem, também têm de ser flexíveis para poderem funcionar em ambientes diferentes dos iniciais. Caso contrário, são dispensadas, ou melhor, recicladas e transformadas noutra peça potencial. É um pouco como se os encaixes entre as peças de Lego pudessem ser ligeiramente modificados com um custo mínimo, mas com um resultado determinante: a sobrevivência do todo celular.
Espreitar esta complexidade ilustra a dificuldade em recriarmos a vida em laboratório, a partir dos ácidos, das bases e algumas pitadas de sais. Mesmo já conhecendo muitas instruções genéticas, para muitas das funções celulares, montar a caixa celular a partir de uma sequência artificialmente justaposta de genes (longas sequências especificas das peças guanina, adenina, citosina e timina) continua a ser uma quimera desejada por muito boa gente, a trabalhar nesta odisseia há já alguns anos, como é o caso do Instituto J. Craig Venter, nos Estados Unidos.
Na edição da revista Science de 21 de Maio de 2010, uma equipa de investigadores liderada por Craig Venter acaba de publicar (aqui ) que conseguiu reconstituir artificialmente e pela primeira vez, uma bactéria, a partir de peças de lego bioquímicas.
Não, não se trata de um novo jogo de computador. Trata-se de bioengenharia laboriosa (15 anos e 40 milhões de dólares) e deslumbrante. O modelo utilizado foi o Mycoplasma mycoides, uma bactéria com mais de um milhão de pares de bases no seu único cromossoma circular. Dadas as implicações éticas e discussões filosóficas que qualquer nova tecnologia da vida trás consigo, a equipa de Venter, ironicamente, substituiu 14 genes que conferem patogenicidade (em cabras) ao M. mycoides, por frases codificadas na sequência de letras do ADN genómico com os nomes dos elementos da equipa de Venter, um sítio da Internet e várias citações famosas
Aparentemente, esta versão culta do M. mycoides é capaz de se dividir, uma das características da vida. Veremos se as frases introduzidas por Venter resistem a mutações deletérias e à implacável selecção natural.
António Piedade
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5 comentários:
A prova viva (sintética!) de que não nos podemos reduzir ao mero somatório das partes. De cada vez que uma peça de lego encaixa noutras, não só leva consigo as suas propriedades, como são criadas novas capacidades (ou retiradas, se formos a pensar no alucinante mundo das partículas sub-atómicas, eheheh).
Aplaudimos? Ou estremecemos?...
Aplaudo o artigo, que conseguiu captar a atenção de um leigo como eu. Quanto ao caminho que estamos a trilhar, estremeço, sem dúvida.
Apesar das profundas implicações que o uso deste tipo de tecnologia poderá a vir a ter a curto e médio prazo, é preciso não exagerar o valor daquilo que foi alcançado. Não se trata de reconstituir uma célula a partir dos seus componentes químicos, mas tão somente substituir o material genético dessa célula por outro muito semelhante. O material genético introduzido é uma versão com muito pequenas modificações do genoma de um organismo próximo, e como tal não é de surpreender que funcione no contexto do citoplasma do seu parente. Acho que daqui até podermos falar de sintetizar vida a partir do nada ainda vai muito, e em termos de compreensão daquilo que é a vida muito pouco se acrescentou. Mais uma vez o Sr. Craig Venter faz notícias com um tour de force que é sobretude um tour de força bruta, e muito pouco ciência fundamental e investigativa. Digo isto, acho que há razões para estremecer sim, pois ninguém sabe muito bem o que poderá acontecer quando começarmos a introduzir genomas mais modificados em organismos vivos. O futuro o dirá.
Embora realmente o organismos sintético seja muito semelhante a um organismo semelhante, a noticia aqui, que e bastante importante, e que se determinou o mínimo necessário para construir um organismo viável...
Estamos no inicio de um novo paradigma de engenharia biológica! A partir deste momento podemos adicionar componentes a esta base sintética para produzir organismos especializados em fazer certas funções como por exemplo produzir hidrogénio pela degradação de crude ...
Dizer que isto n e assim tão importante e uma visão muito miupe do que se conseguiu estabelecer
Tal como a leitura do genoma humano não foi um resultado final mas sim a abertura a uma nova forma de fazer ciência...
O virus da Sida demorou mais de 10 anos a ser lido... SARS-CoV demorou menos de 1 mês .. isto foi possível devido as tecnologias desenvolvidas por empresas como a Celera genomics.
Para quem estiver interessado aqui vai um link para o Craig Venter na TED em 2008 ...
E uma apresentacao interessante que mostra o futuro do que ele quer poder fazer no futuro
http://www.ted.com/talks/craig_venter_is_on_the_verge_of_creating_synthetic_life.html
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