terça-feira, 25 de maio de 2010

À LA RECHERCHE DU TEMPS PERDU (2)

Continuação do post anterior de Eugénio Lisboa:

Os grandes momentos de descoberta estavam sempre ligados – e assim ficaram na minha memória – a certos momentos ”históricos” ou mesmo históricos (sem aspas). O encontro com a Charlotte Brontë e com o Stendhal veio “marcado”: a Jane Eyre surgia ligeiramente estragada pela água, o Vermelho e Negro, em tradução do Marinho, mostrava-se claramente danificado pelo banho que tomara, em viagem marítima de Lisboa para Lourenço Marques. Em vez de irem para o refugo, os “rejects” vinham, pelas mãos do meu pai, parar às minhas. Eu associava romanticamente o estrago dos livros aos perigos da guerra, mas acho que exagerava. Devia ter só que ver com o mau tempo e com o mau resguardo da mercadoria no porão. A tais descuidos, em todo o caso, fiquei eu a dever o início mágico das minhas leituras e o meu amor vitalício pela Senhora de Rênal. É o que se chama faire un bon usage des maladies. O Pascal, que, nessa altura, ainda não conhecia (excepto o da Física...), ficaria satisfeito – a sua terapêutica, por uma vez, funcionara.

O Stendhal providenciava-me, de um golpe, dois benefícios inestimáveis: o meu amor pela Senhora de Rênal e a minha incomensurável aprendizagem do horror à pompa asinina e à ênfase balofa. O seu estilo despojado, acerado e voltaireano (mas cheio de nervo e emoção) tomou-me de assalto e comigo ficou para o resto da vida. Tem feito, com frequência, a minha felicidade (como Gide, volto constantemente a ele para aguçar o bico), e não lhe regateio a minha gratidão. (A Matilde de la Mole, por algumas semanas, perturbou-me os berlindes: caí na esparrela de achar que valia a pena esbanjar talento e manha a ver se a “dobrava”. Mas fartei-me e regressei, para sempre e contente, à Senhora de Rênal. Bem está o que bem acaba!).

Tudo isto em Lourenço Marques. E também a guerra. A nossa guerra, a guerra vista dali. Éramos quase todos pelos aliados, excepto um ou outro nazi que odiávamos meticulosamente e com intensidade. Líamos o Neptuno e A Guerra Ilustrada que íamos buscar aos escritórios dos agentes de navegação, muito em especial a Parry Leon & Hayhoe, onde, quase diariamente, pescávamos vários exemplares da mesma edição, que eu guardava em caixas de cartão debaixo da cama. Coleccionava Neptunos como outros coleccionam selos ou botões. Ali aprendi a amar Churchill, a quem fiquei para sempre fiel, apesar de ele ser conservador e eu não. A verdade é que nenhum cidadão que se preze poderá jamais trair os bons tempos do Neptuno. Ganhámos a guerra juntos e essas coisas, parecendo que não, ficam. Fiz a Guerra do Deserto no Scala, às matinées, e estive em Casablanca com a Ingrid e o Bogey, muito antes de os lisboetas poderem estar (há censuras e censuras e, em Lourenço Marques a liberdade era maior...). E, à fisgada, com os meus irmãos, rebentei a vitrine de uma loja de fotografia que pertencia a um tal Bonk, alemão, igualzinho ao Himler. Que era espião, era. E por isso pagou. Eis como ajudei os aliados a ganharem a segunda guerra mundial.

Os submarinos alemães torpedeavam navios aliados à entrada da baía, e os náufragos vinham para Lourenço Marques e, alguns, para a África do Sul; os submarinos aliados, por sua vez, torpedeavam barcos alemães e italianos, e os náufragos vinham também para Lourenço Marques. A malta, em vista disto, ia para a praia ou para o topo da rampa para cocar os longes da baía, para os lados da Inhaca. Fazíamos tanta força para ver, que acabávamos por ver os submarinos que, naquele momento, não estavam lá ou, estando, não se viam. Quando, muitos anos depois, vi miúdos a fazerem o mesmo num filme do Woody Allen, achei que era plágio. Quem tinha visto primeiro os submarinos que não estavam lá tínhamos sido nós, na Lourenço Marques que naquela altura estava lá e agora já só está dentro de mim. O Woody que se vá lixar.

A guerra, ou antes, o fim dela, trouxe-me outras coisas. Quando a Alemanha se rendeu incondicionalmente (como esta palavra brilhava com toda a sua força vingativa!), como o feriado não veio de seguida (o governador aguardava ordens de Lisboa), entrámos em greve, no liceu (a ordem de feriado veio logo a seguir). O dia de greve mais o feriado “oficial” fez dois dias, o que deu para uma data de cavaco. Foi nessa altura que, reunido subversivamente, em minha casa, com um colega, falámos de coisas deliciosamente proibidas: os movimentos democráticos em Portugal, o assassinato do Lorca e um sujeito francês que se chamava Sartre e era escritor e filósofo. Tudo aquilo em voz baixa, de catacumba, para “eles” não ouvirem. O Lorca ficou comigo e mais tarde, já em Lisboa, li-lhe as peças e vi a Bernarda Alba, com a Maria Barroso a fazer de Adela, a mesma Maria Barroso que encarnou a Benilde do Régio. Devo confessar que, ao ver a Maria Barroso na Benilde, a Senhora de Rênal esteve quase a correr o risco de ser substituída. Mas não tive coragem: essas coisas não se fazem e, ao fim e ao cabo, ela estava disposta a morrer por mim, beijando os filhos. São coisas que marcam.

O Sartre captou-me com alguns contos, um romance e algum teatro. Mas o filósofo é de se ir ali e já vir. Que trapalhada! O Bertie Russell é que tinha razão em dizer, apesar de ser amigo e, em certa fase, correligionário político dele: “Tudo aquilo não passa de extravagâncias linguísticas”. Bem sei que o Vergílio Ferreira chamava ao Sartre a “locomotiva de pensar”. Mas o Vergílio sempre teve aquele feitio e sempre confundiu pensar com uma certa forma oracular de ejacular palavras.

Ponho-me a falar e não sei que fio leva a história. Isto de começar com a Maria de Lourdes Cortez e acabar com o Vergílio Ferreira não augura nada de bom. E o pior é que esta crónica já vai comprida. E pouco ou nada pesquei do tempo perdido. Perdido? Enfim, fica para outra vez, se me der para aí.

Eugénio Lisboa

6 comentários:

Anónimo disse...

"perdue"... ou "perdu"?!... Quem esclarece? JCN

Rui Baptista disse...

"Mea culpa, mea maxima culpa", as minhas desculpas ao autor do “post”, aos seus leitores e o meu agradecimento a JCN pela oportuna chamada de atenção para um erro imperdoável para com Marcel Proust. Será feita a devida correcção.

Rui Baptista

joão boaventura disse...

Poética

Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
protocolo e manifestações de apreço ao Sr. Director.
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o
cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas.
... ... ...
Manuel Bandeira

Anónimo disse...

Quem mais purista... que Bandeira, "meu irmão em Clavadel"?! JCN

joão boaventura disse...

Caro JCN

Ao testemunhar

«...que Bandeira, "meu irmão em Clavadel"»

posso concluir que Bandeira é "seu irmão" espiritual, mas que nunca esteve no sanatório de Clavadel... senão espiritualmente ?

Anónimo disse...

O texto está bom.
Já agora, parabéns pelos 80 aninhos!
Só que há uma coisa no meio disto tudo: o De Rerum é um blogue de divulgação científica e agora mais parece o Jornal de Letras.
Vocês é que sabem do vossa vida.
luis

Direitos e dever(es)

Texto gentilmente oferecido por Carlos Fernandes Maia, professor de Ética.   O tema dos direitos e deveres desperta uma série de interrogaçõ...