quarta-feira, 19 de maio de 2010

"Caranguejola"

No dia em que faz 120 anos que Mário de Sá-Carneiro nasceu, recordamos a sua obra através de um dos seus últimos poemas: Caranguejola.

Ah, que me metam entre cobertores,
E não me façam mais nada!...
Que a porta do meu quarto fique para sempre fechada,
Que não se abra mesmo para ti se tu lá fores!

Lã vermelha, leito fofo. Tudo bem calafetado...
Nenhum livro, nenhum livro à cabeceira...
Façam apenas com que eu tenha sempre a meu lado
Bolos de ovos e uma garrafa de Madeira.

Não, não estou para mais; não quero mesmo brinquedos.
P'ra quê? Até se mos dessem não saberia brincar...
Que querem fazer de mim com estes enleios e medos?
Não fui feito p'ra festas. Larguem-me! Deixem-me sossegar!...

Noite sempre p'lo meu quarto. As cortinas corridas,
E eu aninhado a dormir, bem quentinho - que amor!...
Sim: ficar sempre na cama, nunca mexer, criar bolor
-P'lo menos era o sossego completo... História! Era a melhor das vidas...

Se me doem os pés e não sei andar direito,
P'ra que hei-de teimar em ir para as salas, de Lord?
Vamos, que a minha vida por uma vez se acorde
Com o meu corpo, e se resigne a não ter jeito...

De que me vale sair, se me constipo logo?
E quem posso eu esperar, com a minha delicadeza?...
Deixa-te de ilusões, Mário! Bom édredon, bom fogo -
E não penses no resto. É já bastante, com franqueza...

Desistamos. A nenhuma parte a minha ânsia me levará.
P'ra que hei-de então andar aos tombos, numa inútil correria?
Tenham dó de mim. Co'a breca! levem-me p'rá enfermaria! -
Isto é: p'ra um quarto particular que o meu pai pagará.

Justo. Um quarto de hospital, higiénico, todo branco, moderno e tranquilo;
Em Paris, é preferível, por causa da legenda...
De aqui a vinte anos a minha literatura talvez se entenda;
E depois estar maluquinho em Paris, fica bem, tem certo estilo...

Quanto a ti, meu amor, podes vir às quintas-feiras,
Se quiseres ser gentil, perguntar como eu estou.
Agora no meu quarto é que tu não entras, mesmo com as melhores maneiras...
Nada a fazer, minha rica. O menino dorme. Tudo o mais acabou.

Referência completa: Sá-Carneiro, M. (1985). Poesias completas. Porto: Orfeu, páginas 105-107.

3 comentários:

João de Castro Nunes disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anónimo disse...

ODE AO GÉNIO

O génio é mesmo assim: tem reacções
que, se afastando da vulgaridade
do comum das pessoas, dá razões
a ser motejo da sociedade.

Existe em quase todas as nações
que só depois da sua adversidade
lhe rendem preito em manifestações
da mais diversa espécie e qualidade.

É o caso pessoal de Sá-Carneiro
que a braços com delírios de dinheiro
é glória do país que o envileceu.

Um louco foi de génio que apesar
das ânsias por que teve de passar
orgulho hoje é da pátria em que nasceu!

JOÃO DE CASRO NUNES

Anónimo disse...

É pelos seuspoetas de verdade
que no geral as pátrias são faladas
entre as demais nações civilizadas,
devido à sua genialidade:

o resto, como o tempo, vai passando,
lembrado sendo só de quando em quando!

JCN

NO AUGE DA CRISE

Por A. Galopim de Carvalho Julgo ser evidente que Portugal atravessa uma deplorável crise, não do foro económico, financeiro ou social, mas...