terça-feira, 18 de maio de 2010

MEMÓRIAS DE REINALDO (2)

(Continuação de texto publicado aqui)
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"Em Agosto de 1959, dois meses após o falecimento, numa noite que a Câmara Municipal de Lourenço Marques dedicou a poetas de Moçambique, proferimos uma pequena palestra dedicada ao autor de Poemas Infernais. E foi este mesmo texto, não assinado, que veio a servir de introdução aos Poemas que um grupo de amigos organizou a partir do seu desarrumado espólio. O grupo era constituído, à partida, pelo Dr. Fernando Ferreira, médico psiquiatra, pelo Eng.º Vitor Evaristo, pelo autor destas linhas e pelos jornalistas Guilherme de Melo e Vasco de Matos Sequeira. Estes dois últimos não compareceram a nenhuma das reuniões mas Guilherme de Melo contribuiu decisivamente para decifrar alguns manuscritos de leitura particularmente difícil. A Vasco de Matos Sequeira os Poemas não ficaram a dever rigorosamente nada, apesar de ter sido parceiro do poeta na produção de várias revistas teatrais.

Os Poemas foram, para muitos, uma revelação, em Moçambique. Em Portugal, João Gaspar Simões, apreciando embora as qualidades do livro, não aderiu completamente ao alto quilate do lirismo do autor de Um Voo Cego a Nada. Gastão Cruz, como de costume, não percebeu grande coisa e baralhou-se nas teias confusas da modernidade. Mas David Mourão-Ferreira e José Régio resgataram a honra da intelligentsia portuguesa, logo se apercebendo de que estava ali alguém. No Brasil, os Jograis de S. Paulo absorveram o alto voo lírico de Reinaldo, incorporando-o no seu reportório.

Régio, como disse, embandeirou em arco. Para me não pôr a fazer paráfrases, transcrevo parte de um artigo publicado no suplemento Letras e Artes do Diário Popular, de 2.8.1979, no qual dou, com alguma minúcia, a intervenção do poeta de Poemas de Deus e do Diabo, a favor da glória de Reinaldo Ferreira:

Publicado o livro, que, entre outras coisas, e como já tivemos ocasião de observar na introdução que, anónima, precedia os Poemas, revelava o «contrapontar de uma expressão poética rigorosa, nítida, altiva, sabiamente contida, por vezes quase majestosa na sua dignidade cheia de pudor, com um omnipresente recurso à auto-ironia, sempre suspeitosa de um demasiado deixar-se comover», logo enviámos a José Régio um exemplar da obra de que tanto lhe tínhamos falado. Ou porque o livro se extraviara ou porque ainda não houvera tempo de lhe ter chegado, em Maio de 1960, remetida de Portalegre, e com data de 5 desse mês, chegava-nos às mãos uma carta sua acusando uma certa impaciência quanto ao livro prometido e duvidando até de que tivesse chegado a editar-se. Neste entretanto, escrevia ele referindo-se a um certo hiato mais prolongado na nossa troca de correspondência, «vagamente tenho esperado que me chegasse, com notícias suas aquela separata duma conferência em que me falava; ou, então, o livro do Reinaldo Ferreira, que não sei se chegou a ser impresso. Bem gostaria de receber tanto uma como outra coisa!». E logo acrescentava estes pormenores reveladores da personalidade do poeta há pouco desaparecido: «Já o que me diz sobre o filho do Repórter X aguçaria a minha curiosidade e o meu interesse; a verdade, porém, é que eu conhecia esse poeta quando ele era ainda criança – uma criança assustadoramente precoce em vários sentidos. Vivia, então, com a mãe numa pensão do Porto; e, às vezes, o pai ia visitá-los, e fazia cenas que se ouviam nos quartos vizinhos. Com as suas propensões naturais e no ambiente em que se criou – calculo que «infernos» terão sido os seus! E até por isso mesmo até antes de conhecer o seu livro admito que seja o de um grande poeta – Diga-me qualquer coisa a esse respeito. Eu falaria aqui do livro, se como creio, o julgasse digno de ser falado».

Esta carta revelava, por um lado, um invulgar e quase precipitado desejo de gostar do livro (talvez porque o personagem de Reinaldo o interessava e, de certo modo, o fascinava), por outro, num recuo e numa cautela muito regianas, logo corrigia: se «o julgasse dignos de ser falado...»
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Porém, a não recepção do livro, se bem que nos não preocupasse demasiado – o correio entre Moçambique e a Metrópole não era rápido –, levou-nos, à cautela, a mandar-lhe um segundo exemplar. Quer fosse este que por fim lhe chegou às mãos, quer o primeiro, ou os dois (nunca lho perguntámos), a verdade é que em Setembro (datada de 19 desse mês e de Vila do Conde), chegava-nos por fim a carta que aguardávamos com impaciência e na qual nos dava conta da impressão que o livro lhe produzira: «Recebi a sua carta, as duas partes da sua conferência, o jornal com a nota sobre 'As Monstruosidades´, e o livro do Reinaldo Ferreira (...). Sobre o livro do Reinaldo Ferreira, já fiz sair um artigo na página literária de ´O Comércio´ (13 do corrente). Apesar das gralhas – classicamente corrigidas pela inteligência do leitor – ele lhe dará uma ideia de quanto apreciei os Poemas. Suponho ter-me dito que recebe aí ´O Comércio´, ou, pelo menos, as suas páginas literárias. Que pena o Reinaldo Ferreira não haver trabalhado mais! O que nos deixou basta para se nos afirmar o grande poeta que era, e grande artista. Mas, com uma maturidade mais fecunda, a sua originalidade por certo se afirmaria a todos ainda mais poderosamente incontestável. A sua apresentação é muito boa – (...) toda a organização do volume é uma boa lição dada... à Metrópole. Afora uma notazinha de Álvaro Salema, ainda não dei conta de, por cá, terem reparado na obra. Esperemos. Apesar de tudo, é difícil abafar o génio».

Desta vez, o quase sempre cauteloso José Régio achou que podia não ter receio de não medir as palavras. Dir-se-á tratar-se de uma carta particular... A verdade, porém, é que, no artigo a que nela alude, publicado na página de artes e letras de O Comércio do Porto, com o título sensacional de Notícia dum Novo Grande Poeta, o autor dos Poemas de Deus e do Diabo ousava igualmente ousar, ao sugerir a suprema heresia: «Ousarei dizer», perguntava, depois de uma rápida análise da personalidade humana e literária do autor dos Poemas, «que os mesmos poemas em que se torna visível a sombra de Fernando Pessoa de modo nenhum se afiguram esteticamente inferiores aos do Mestre? Aliás, quase sempre», continuava Régio, agravando a insolência do paralelo, «uma diferente naturalidade predomina em Reinaldo Ferreira – com muito de mais realista, mais vivo, mais saboroso e plástico nas imagens. Isto nos dará qualquer ideia da beleza formal, do equilíbrio, da perfeição que, pela expressão, atingem os mais acabados poemas de Reinaldo Ferreira».
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Por fim, terminava o artigo nestes termos de um inequívoco afirmar: «Muito lamentável que hajam ficado incompletos alguns dos poemas infernais, talvez nem fragmentariamente escritos alguns sonhados, e assim os não possamos apreciar naquela sinistra beleza, naquela originalíssima concepção, que A Estátua Jacente basta a exemplificar. Tendo desperdiçado, como criador literário, grande parte da curta vida, formada uma parte da sua obra de poemas, que, embora belos, são superficiais em relação às mais pessoais profundezas do poeta, decerto desapareceu Reinaldo Ferreira sem que a sua originalidade e a sua personalidade artística houvessem chegado a afirmar-se em toda a sua plenitude. Mas, fragmentário como é, o livro que agora se nos oferece chega para nos fazer crer que, desta vez, estávamos (estamos) perante um fenómeno hoje ainda mais raro... um poeta de génio».
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O artigo de José Régio na sua firmeza admirativa, deve ter causado impressão e não há dúvida de que Reinaldo Ferreira começou a ser lido em Portugal. Por outro lado, João Gaspar Simões, no Jornal Português de Economia e Finanças, na sua habitual (e quinzenal) coluna crítica, descontando embora em termos injustamente severos a «extemporaneidade» ou «desfasagem» cronológica do poeta, não deixava de lhe reconhecer a importância a que ele tinha jus. Também, pouco depois, David Mourão-Ferreira, que foi, desde o início, sensível à qualidade literária «dessa obra verdadeiramente ímpar no panorama da nossa poesia», levou os textos de Reinaldo Ferreira aos seus cursos da Faculdade de Letras de Lisboa. Mas se, como observou num artigo publicado num dos jornais de Lisboa, «logo certos espíritos de primeira grandeza se mostraram entusiasmados com a poesia de Reinaldo Ferreira», não deixou de acrescentar logo a seguir: «mas a crítica profissional tem-lhe permanecido estranhamente insensível».
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Terá sido até esta insensibilidade da nossa «crítica profissional» que levou porventura José Régio, que chamara visivelmente a si a promoção do destino literário de um grande poeta para quem a vida fora adversa, a voltar a terreiro, em 14 de Julho de 1964, com um novo artigo publicado em O Comércio do Porto sob o título: Sobre o Caso de Reinaldo Ferreira. Aí, de novo, saía da sua habitual reserva para inequivocamente «se expor», nos seguintes termos: «Reinaldo Ferreira é um grande poeta. Acrescentamos: é um grande artista (...). Feitas as reservas que adiante farei, a descoberta dum Reinaldo Ferreira não me parece menos importante do que por exemplo há quarenta e tantos anos a dum Camilo Pessanha»".
Eugénio Lisboa
(Continua)

1 comentário:

Anónimo disse...

Feitas as contas e reservas à parte, como a alegada "extemporaneidade" ou "desfasagem" da produção poética de Reinaldo Ferreira (a obra de arte não tem época), uma coisa é certa: ninguém abafa o génio! Nisto, estou com Régio! Em absoluto. JCN

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