terça-feira, 25 de maio de 2010

À LA RECHERCHE DU TEMPS PERDU (1)

Novo post convidado de Eugénio Lisboa:

Lourenço Marques ficou sendo, para sempre, a minha capital da memória. O termo deu-mo a Maria de Lourdes Cortez, que o pilhou, por sua vez, ao Lawrence Durrell.

Era uma cidadezinha muito bela e ajardinada, onde tudo ficava à mão, para efeitos de convívio, amizade e amor. Crescia-se ali como no paraíso.

Para os pouco abastados, como eu, uma parte da vida (a casa) ficava num extremo da 24 de Julho (a avenida mais comprida lá do burgo), e a outra parte (o liceu) quase no outro extremo, a desembocar na “rampa” que se atirava por ali abaixo até ao Pavilhão da Praia. Mesmo, mesmo no extremo, logo a seguir ao liceu, ficava um caramanchão e a casa do Reis Costa. O Reis Costa, para quem não saiba, era um personagem: homem cultíssimo, de olhar penetrante e caminheiro infatigável (nunca teve carro), fora amigo e companheiro de habitação do Hernâni Cidade e ensinava francês e português como quem trata por tu o Camões, o Anatole, o Oliveira Martins, o Gide, o Pessoa, o Proust ou o Régio. Esfuracava, com os olhos imensamente acesos, os nossos mistérios adolescentes e metia-nos nas mãos a Karenina e as Encruzilhadas de Deus. Amava instantaneamente uns e detestava, figadalmente e de modo igualmente abrupto, outros. Mas, se lhe pedíamos clemência para os colegas em desgraça, cedia com gesto magnânimo de imperador caprichoso mas dialogante.

No liceu, as aulas cheiravam deliciadamente a amendoim torrado. Tudo quanto ali aprendi ficou saborosamente contaminado por aquele bom cheiro e por aquele sabor que o mundo teve quando foi feito. Amendoim, o Júlio Verne, amendoim, o Salgari, amendoim, o Alexandre Herculano.

Aquele liceu era fora de série, e acho que nunca paguei publicamente a dívida que fiquei a ter para com ele. Foi ali que nasci um pouco e foi ali que fiz a minha segunda grande guerra. Mas já lá vou.

O importante era a praia. A praia estava ali connosco: mais do que à mão, estava quase dentro de nós. Junto ao Pavilhão, havia a “rede”, por causa dos tubarões, e uma ponte de onde se pescava (para fora da rede) e se saltava para dentro do recinto protegido pela rede. Uma grande parte das pessoas tomava banho dentro da rede, mais por causa da “prancha” que tinha sido construída dentro daquele recinto, para “saltos” e “mergulhos”, do que por causa dos tubarões. Porque a malta, a verdade diga-se, estava-se borrifando para os tubarões. Quantos e quantos dias não íamos antes para o Palmar, junto ao Peter’s ou à Costa do Sol, perfeitamente esquecidos dos tubarões que andavam aos cardumes a poucas centenas de metros, junto à Xefina. Porque não vinham ter connosco? Mistérios que deixo ao ardil dos biologistas.

Para a praia, levava quase sempre o Nero. Mal chegávamos ao topo da rampa, de onde se avistava a soberba baía, o Nero, de nervoso, parecia um árabe em transe de manifestação espontânea: perdia, literalmente, os pedais. Disseram-me que era por ser “cão de água”. Por mim, acho que o tanas. O que ele era, era laurentino de gema e pelava-se pela praia como a malta toda que ali tinha nascido.

Isto era nos anos quarenta e, a partir de certa altura, a praia ficou cheia de soldados do Infantaria 68 e, um pouco mais tarde, do Infantaria 10: tinham ido para ali “em missão de soberania”, para guardarem Moçambique dos alemães (ou dos ingleses?). Destes, dos magalas, lembro-me sobretudo que me faziam uma inveja do caneco porque alguns se punham a ler, refastelados na areia, como quem esquece, livros do Camilo, que me apeteciam, mas a que não tinha acesso. Ficou-me, desse tempo, uma tal fome do Amor de Perdição que, quando me apanhei em Lisboa, na universidade, atirei-me ao Camilo como gato a bofe. Mal acabava um, saía desesperado à procura de outro. Quando já não havia nas livrarias de Lisboa, comprava nas Caldas da Rainha ou onde calhasse. As grandes e intensas leituras são muitas vezes um puro ajuste de contas com fomes muito antigas: aqui têm uma teoria novinha em folha, que vos ofereço de borla, para eventual tese de doutoramento (que vai acabar por estragar a gracinha que tudo isto tem. Mas, enfim.)

Reparem que estou a recordar, como o Proust. Sobem-me à crista da memória momentos, imagens, rostos, instantes de felicidade, que até apetece gritar. As imagens são boas porque não traem a verdade dos momentos que já foram: ficam intactas, iguaizinhas ao que tinham sido naquele tempo. “O tempo”, dizia Proust, “que muda as pessoas, não altera a imagem que delas retivemos”. O quarto onde me rodeava de livros e onde, pela primeira vez, vi aparecer, ao portão, a Senhora de Rênal, esse quarto está, na minha memória, intacto, mas a casa onde havia o quarto desapareceu. Qual a realidade mais forte? A casa que já não existe ou o quarto que, em mim, ainda existe? A escolha, quanto a mim, é fácil. Matar o quarto era matar a Senhora de Rênal que em mim não morre, ou só morrerá quando eu morrer.

Sim, lia muito, lia interminavelmente, à balda, sem ordem nenhuma, ao sabor de um apetite voraz e querendo começar tudo ao mesmo tempo: mais olhos que barriga. Mais tarde percebi muito bem o que queria dizer o Salinger, ao afirmar que era perfeitamente iletrado, mas que tinha lido uma data de livros. Percebi mas não sei se concordei. Até porque não sei se alguma vez se leu de outra maneira ou se há outra maneira que dê tanto proveito.

Eugénio Lisboa

(Imagem nocturna de Lourenço Marques em fins da década de 70).

2 comentários:

Anónimo disse...

"perdu"... ou "perdue"?!... Um caso de "balda"? JCN

Rui Baptista disse...

"Mea culpa, mea maxima culpa", as minhas desculpas ao autor do “post”, aos seus leitores e o meu agradecimento pela oportuna chamada de atenção de JCN para um erro imperdoável para com Marcel Proust. Será feita a devida correcção.

Rui Baptista

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