(Continuação de textos publicados aqui).
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"Dizia o compositor francês, Berlioz, que a «sorte de ter talento não chega. É também preciso ter o talento de ter sorte». Reinaldo Ferreira, mesmo depois de morto, soube ter o talento de ter a sorte de encontrar uma voz de grande formato (ainda quando ou sobretudo quando contestada por camadas mais jovens), como era sem dúvida a de José Régio; uma voz que amparasse os primeiros passos de um livro surgido bruscamente numa remota e esquecida parcela do ultramar português e caída na metrópole, num meio literário e crítico classicamente desatento ou apenas atento, tão frequentemente, a promoções paroquiais e trocas de favores ideológicos ou outros. Descobrir um novo grande escritor está ao alcance de muito poucos, por mais que pareça o contrário. Descobrir um novo grande autor aparecido quase sem antecedentes que o fossem gradativamente anunciando – está ao alcance de ainda menos. José Régio estava entre esses poucos que sabem sair – raramente – da sua reserva, para afirmarem com convicção, aquilo – pouco ou muito – a que, de firme, são capazes de, eventualmente, chegar”.
“A história não termina aqui: Pouco mais de um ano depois do segundo artigo de O Comércio do Porto, chegava-nos a Lourenço Marques, datada do dia 13 de Outubro de 1965 e de Portalegre, uma carta de que transcrevemos alguns passos: «Escrevo-lhe hoje umas linhas apressadas pelo seguinte: A Portugália Editora (que está editando as minhas Obras Completas) combinou com os herdeiros de Reinaldo Ferreira uma reedição dos Poemas – reedição a ser integrada numa bela colecção de poesia, Colecção Poetas de Hoje, que essa casa editora tem vindo publicando. Cada volume dessa colecção é precedido dum estudo, ou, melhor, encerra um prefácio crítico ao texto poético. Encarregou-me a Casa de fazer eu esse Prefácio aos Poemas, e eu aceitei. Independentemente de isso, e como a 1.ª edição seria integralmente reeditada, acompanhariam o texto poético a sua Introdução e todas as Notas Explicativas. Por mim, acho isso indispensável. E então a que venho eu? Venho, em nome da Casa (e afinal em meu próprio nome), pedir-lhe permissão para isso. Julgam na Portugália que as notas Explicativas também são suas. Creio eu que não. Seria, em tal caso, igualmente necessário obter a permissão do autor delas. Se ele está aí (suponho tratar-se de um médico que foi amigo de Reinaldo Ferreira), poderia você fazer-nos o favor de consegui-la? Se não está, e tem notícias dele, poderia fazer-nos mesmo favor, ou, então, enviar-me a sua direcção? Desculpe tudo isto! E desculpe ainda mais o seguinte: Como lá na Portugália descobriram tarde que deviam pedir as respectivas licenças aos autores do comentários críticos dos Poemas – e como o livro, pelo contrato com os tais herdeiros (que se lembram agora do seu parentesco com um grande Poeta!) tem já um curto prazo para aparecer – ouso pedir-lhe uma resposta com toda a possível brevidade».
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A autorização, em nome dos três responsáveis pelas Notas, foi imediatamente enviada e a sua recepção não menos prontamente acusada (carta de Portalegre, de 8/11/65): «Sim, as nossas duas cartas devem ter-se cruzado no caminho. Agora já recebi a sua em que dava a permissão que eu pedia, e se responsabilizava pela permissão dos autores das Notas dos Poemas. Obrigado em meu nome e no da Portugália. E também recebi o número do jornal consagrado a Reinaldo Ferreira – obrigado outra vez. Deste número, o mais importante é o (...), e a entrevista, muito interessante, do próprio Reinaldo. Afinal, até em prosa (pois suponho que as suas respostas foram escritas) ele se poderia ter distinguido!» E sublinhava uma vez mais: «Bem pena aquele homem ter trabalhado tão pouco! (Aviso aos que vão deixando passar o tempo numa espécie de indiferença...). Não sem qualquer emoção vi o meu nome entre os dos poetas que Reinaldo estimava. Lembrar-se-ia ele de me ter conhecido quando tinha seis ou sete anos (?) numa pensão do Porto um pouco sinistra? O meu prefácio já foi entregue à Portugália. Receio-o talvez demasiado pessoal, numa parte. Mas na sua fragmentação e na sua riqueza, o poesia de Reinaldo Ferreira convida a variadas interpretações. Cada um de nós não pode escrever sobre ela senão como pode».
Neste prefácio, entre outras coisas que também continha, procurava Régio demitir, como destituída de interesse permanente, a afirmação feita por alguns críticos de que Reinaldo chegara tarde e não passaria de um dotadíssimo epígono de Orfeu e da Presença. «No fim e ao cabo», perguntava «que importa isso para uma averiguação do valor absoluto – permanente – da sua poesia? Quase nada, ou nada. A poesia é inseparável das formas que a exprimem, e captam, e simultaneamente acha maneira de pairar acima dessas formas. Paradoxos da poesia». E não só as formas, diríamos nós. Os temas também. Tudo está sempre em vias de ser retomado, em viagem cíclica que não termina: «A história da arte é a história de sucessivos renascimentos», disse Butler. Cesário não acaba com Cesário, nem Pessoa com Pessoa. Reinaldo não imita Pessoa ou, se imita, é porque faz já outra coisa: «Imitation is criticism», disse Blake. Nenhuma renascença volta ao ponto de partida original. Toda a imitação é já uma distanciação. A originalidade, já foi dito, não consiste em dizer o que nunca antes de nós se disse, mas sim em dizer exactamente aquilo que nós próprios pensamos. De aí a maior desenvoltura, em Reinaldo, a maior naturalidade a que aludia Régio... Reinaldo é Reinaldo porque não é Pessoa e porque veio depois dele. Pela mesma razão, Fernando Pessoa não é António Ferreira nem re-escreveu os Poemas Lusitanos, mas veio depois dele e devia agudamente saber da existência dele.
Chegamos ao fim da nossa história. Publicado o livro de Reinaldo Ferreira, na metrópole, Régio escrevia-nos por fim, em carta datada de 27/9/66, de Portalegre: «Aqui lhe envio dois recortes (pois não sei se os recebe) sobre os Poemas de Reinaldo Ferreira. O João Gaspar Simões também já escreveu sobre eles. Reinaldo Ferreira é discutido – mas a sua glória está assegurada».
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Três anos depois José Régio falecia, na sua casa, em Vila do Conde. E a obra de Reinaldo Ferreira, que ele ajudou a fazer flutuar nos primeiros tempos, que são sempre os mais difíceis, vai sendo reeditada, lida, musicada, cantada e traduzida. Belamente traduzida, por sinal. Se a literatura é, como pretendia Emerson, «o esforço do homem para se compensar dos males da sua condição», Reinaldo Ferreira tem-se compensado, tanto quanto é possível, depois de morto, daquilo que a vida lhe não deu.
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Poemas tiveram uma edição em Moçambique e duas da Portugália Editora, na colecção Poetas de Hoje. Posteriormente, em 1998, a editora Vega, na sua colecção O Chão da Palavra, fez uma nova edição de Poemas, a mais de um título, deplorável. Quase quarenta anos depois da morte do poeta, não se justifica uma edição tão pobre, tão pouco crítica, tão pouco ou nada dando testemunho do muito que entretanto apareceu e se sabia da obra do poeta e do que sobre o poeta se havia dito. Pessoalmente, recusei-me a colaborar nessa edição, até porque me encontrava, nessa altura, encarregado pela Imprensa Nacional, de organizar uma edição que fosse o mais possível digna do autor de Poemas. Vega convenceu a família de Reinaldo que, em princípio, dera a luz verde à Imprensa Nacional, a passar-se com armas e bagagens para os seus prelos. Convidado a passar-me também, recusei. E a edição que por aí circula não inclui – porque o proibi – nem o meu prefácio, nem as notas introdutórias de minha autoria. E inclui abusivamente – por não ter o editor pedido autorização aos seus autores – as notas da responsabilidade de Fernando Ferreira e Vitor Evaristo. Mas Reinaldo é suficientemente grande para sobreviver a todos os tratos de polé que a posteridade lhe queira infligir. Como ele próprio disse, num poema inesquecível,
‘Mínimo sou,
Mas quando ao Nada empresto
A minha elementar realidade,
O Nada é só o resto’”.
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Poemas tiveram uma edição em Moçambique e duas da Portugália Editora, na colecção Poetas de Hoje. Posteriormente, em 1998, a editora Vega, na sua colecção O Chão da Palavra, fez uma nova edição de Poemas, a mais de um título, deplorável. Quase quarenta anos depois da morte do poeta, não se justifica uma edição tão pobre, tão pouco crítica, tão pouco ou nada dando testemunho do muito que entretanto apareceu e se sabia da obra do poeta e do que sobre o poeta se havia dito. Pessoalmente, recusei-me a colaborar nessa edição, até porque me encontrava, nessa altura, encarregado pela Imprensa Nacional, de organizar uma edição que fosse o mais possível digna do autor de Poemas. Vega convenceu a família de Reinaldo que, em princípio, dera a luz verde à Imprensa Nacional, a passar-se com armas e bagagens para os seus prelos. Convidado a passar-me também, recusei. E a edição que por aí circula não inclui – porque o proibi – nem o meu prefácio, nem as notas introdutórias de minha autoria. E inclui abusivamente – por não ter o editor pedido autorização aos seus autores – as notas da responsabilidade de Fernando Ferreira e Vitor Evaristo. Mas Reinaldo é suficientemente grande para sobreviver a todos os tratos de polé que a posteridade lhe queira infligir. Como ele próprio disse, num poema inesquecível,
‘Mínimo sou,
Mas quando ao Nada empresto
A minha elementar realidade,
O Nada é só o resto’”.
Eugénio Lisboa
5 comentários:
Sabe o que me faz falta, meu caro Dr. Rui Baptista? É ter um Eugénio Lisboa por mim, sob as suas asas! Outro galo cantaria. JCN
Ter a sorte do talento
sem o talento da sorte
é razão de sofrimento
que só finda com a morte!
JCN
O génio quando se tem
mas despercebido passa
é motivo de desgraça
que não desejo a ninguém!
JCN
Ter mau génio é diferente
de ter génio, com certeza:
uma coisa é a natureza,
outra o feitio da gente!
JCN
QUESTÃO DE GRAU
Todo o poeta, valha muito ou pouco,
algo de génio tem; na voz comum
é costume dizer-se que nenhum
deixa de ter um certo grau de louco:
o que me falta a mim descortinar
é qual exactamente é o meu lugar!
JCN
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