sexta-feira, 28 de maio de 2010

EGAS MONIZ E EINSTEIN


Minha crónica na revista "Tabu" do semanário "Sol" de hoje (na imagem: retrato de Egas Moniz por José Malhoa; as mãos mostram a gota de que o médico padecia e que o impedia de operar, tendo ele de ser substituído por um dos seus assistentes):

Quem, na A1, sair em Estarreja estará muito perto da Casa-Museu Egas Moniz, em Avanca, o elegante palacete onde o nosso único Prémio Nobel em Ciências passou primeiro a sua infância e mais tarde as férias. A Câmara Municipal tem cuidado tanto do edifício como do seu recheio, onde, além de instrumentos e imagens científicas, chamam a atenção as numerosas peças de arte que o sábio reuniu, que vão desde porcelana de Sèvres e de Companhia das Índias a quadros de José Malhoa e de Silva Porto.

Nascido em 1874 e falecido em 1955, António Egas Moniz era, do ponto de vista artístico, um homem do século XIX, um conservador num século em que tanto a ciência como a arte eram abaladas por novas correntes. No cume dos seus pintores preferidos encontrava-se José Malhoa (no ano em que morreu publicou o ensaio A folia e a dor em José Malhoa) e no píncaro das suas preferências literárias encontrava-se Júlio Dinis (escreveu o livro de referência Júlio Dinis e a sua obra). Nem a pintura nem a literatura do século XX conseguiam recolher os seus favores.

Moniz neste aspecto não está sozinho. Um outro Nobel da ciência com gostos pouco ou nada modernos é Albert Einstein, que nasceu cinco anos depois de Moniz e morreu no mesmo ano. As suas carreiras são paralelas, uma vez que o físico suíço nascido na Alemanha acaba o curso em 1900 apenas um ano depois do médico português (o curso de Medicina demorava oito anos, pois havia que fazer três anos de preparatórios em ciências). Einstein faz o doutoramento em 1905, cinco anos depois de Moniz defender a tese A Vida Sexual na Universidade de Coimbra (o Estado Novo haveria de proibi-la, permitindo a sua venda apenas com receita médica). Em 1911 Einstein chega a cátedra na Universidade de Praga e o mesmo acontece com Moniz na recém-fundada Universidade de Lisboa. Uma diferença entre os dois currícula reside na precocidade dos trabalhos de investigação do físico, com pontos altos em 1905 e 1916, ao passo que o médico só enveredou pela investigação depois de ter desistido de uma carreira política (durante a qual chegou a ganhar um duelo à espada a Norton de Matos), tendo atingido os seus pontos altos em 1927 (angiografia) e 1935 (leucotomia). Não admira, por isso, que o Nobel de Einstein tenha sido atribuído muito antes do de Moniz. Einstein, que preferia a música às outras artes, era, nessa área, extremamente conservador, não indo o seu gosto muito além de Bach e Mozart. Quando muito Schubert.

Moniz e Einstein não são os únicos revolucionários científicos que ignoraram as revoluções artísticas. Basta visitar a Casa-Museu de Freud, em Viena, para verificar que o criador da psicanálise, que Moniz introduziu em Portugal e de quem Einstein foi amigo, era algo antiquado em questões de arte...

2 comentários:

Ana disse...

"permitindo a sua venda apenas com receita médica" LOOOOOL! :D desculpe, mas é hilário :), leitura da tese, só com receita médica! :D

joão boaventura disse...

Cara Vani

É verdade porque quis adquirir a obra em 1945, e a resposta que me deram na livraria Portugal foi precisamente essa: "Estamos proibidos de a vender a menos que venha com uma receita de qualquer médico a recomendar a leitura".

Consegui obter, clandestinamente, em 2.ª mão, num alfarrabista, a 15.ª edição (houve 19 edições até 1933), 29.º milhar, d'A Vida Sexual, com 598 pp, revista e aumentada, da Livraria Editora Casa Ventura Abrantes, Lisboa, mas sem data, nem colofon como pista.

No Prólogo, Egas Moniz não se coíbe de explicar que:

"As religiões ocidentais, uma falsa moral que criou foros de orientadora das sociedades, o consenso geral que confunde delitos sexuais com preconceitos sociais, uma artificial defesa dos indivíduos ao embates dos seus naturais instintos, fazem com que se esconda o que se deve saber em todas as minúcias, em vez de orientar, os estudiosos, com a verdade, no mais difícil problema da existência." (XII)
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"A velha moral monástica pode ter sido levemente molestada, mas a humanidade segue o seu caminho sem perturbações graves e os adolescentes marcham para a vida sexual conscientemente, confiando em si próprios, vigorosos e fortes, sabendo o que querem e o fim a que visam." (XII)
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"Mas não se quedaram as críticas por aqui. Houve até quem acusasse de imoral a segunda parte desta obra. Os que assim me censuram pretendem confundir o romance devasso com a exposição doutrinária das perversões sexuais que os profissionais da medicina e do foro precisam de conhecer e apreciar." (XVII).
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"Arbitraram-me também escrever o livro naquela linguagem difícil que alguns médicos preferem e que, em assunto desta natureza, seria contraproducente. Até acharam que devia ser dado à estampa em latim, que foi a linguagem corrente da medicina de antanho. Era-me impossível tal cometimento, por incompetência, além de que ia colocar os médicos portugueses, para quem este livro é especialmente feito, em sérios embaraços de compreensão." (XVII)
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"Os pseudo-moralistas de velhos tempos vieram mais uma vez anatematizar a minha obra com o epítote de imoral, como se a moral fosse sinónimo de ignorância." (XVIII)


Não transcrevo mais para que a Vani tenha uma percepção da moral da época, quando alguns destes pontos são recorrentes na edição de 1906, segundo o autor.

Com a chegada do Estado Novo, e o apuramento da "moral do Estado", chegou-se ao ridículo de só autorizar a venda mediante receita médica, donde suponho que médico comprador passaria receita a ele mesmo.

O mundo é muito complicado para se entender.

UM CRIME OITOCENTISTA

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