terça-feira, 18 de maio de 2010

MEMÓRIAS DE REINALDO (1)

“Quão doce é o louvor e a justa glória.”
Luís de Camões.

A pedido meu, generosamente acedido, recebi de um bom amigo dos tempos de Lourenço Marques (hoje Maputo), Eugénio Lisboa, homem de Ciência, por formação académica universitária em Engenharia, e de Letras, crítico literário e ensaísta, professor de Literatura Portuguesa em diversas universidades estrangeiras e na Universidade de Aveiro, doutor honoris causa por esta instituição e, entre outras, pela Universidade de Nottingham (Reino Unido), este muito valioso e completo testemunho sobre a vida e obra de Reinaldo “em favor da sua glória”, como no texto escreveu Eugénio Lisboa. Este testemunho será divido em três partes, transcrevendo agora a parte primeira:

“Ouvi falar de Reinaldo Ferreira, quando andava pelos meus últimos anos do liceu, em Lourenço Marques. Teria os meus 16 ou 17 anos (1946/1947) e Reinaldo andaria pelos 24 ou 25. Falavam-me dele como de alguém com muito talento para a poesia e eu, como de costume, desconfiava... Os poetas e intelectuais em vigor, por essa altura, gravitavam quase todos à volta do Augusto dos Santos Abranches, empregado de livraria na Minerva Central e, depois, na Spanos, ali desaguado a partir da Coimbra dos neorealistas. O Santos Abranches, de resto bom homem e infinitamente generoso e atento, parecia-me, a mim, demasiado vistoso, naquelas camisas de cor improvável, naqueles casacos horrorosamente compridos e naqueles bonés que não rimavam com coisa nenhuma e muito menos com ele, Augusto dos Santos Abranches.
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Eu era injusto, como competia aos meus 16 ou 17 anos. Mas os escritores que admirava (Régio, Thomas Mann, Roger Martin du Gard), escondiam todos a sua força artística por detrás de uma fatiota convencional: a originalidade autêntica não se mostra, pensava eu, na cabeleira comprida, nas barbas abundantes ou nas roupas ostensivamente gritantes. Repelia-me instintivamente o ostensivo, o circo apelativo, o fogo de artifício sem substância por detrás. Fui injusto, porque, segundo testemunhos posteriores, o Augusto dos Santos Abranches tinha aquelas fraquezas exteriores, mas era um promotor genuíno e aberto do talento dos outros (ou do que ele, na sua generosidade, tinha por talento dos outros). Eu metia tudo no mesmo saco e como o Reinaldo me era inculcado pelos do Augusto, inclinava-me a não ir muito nisso. Depois, havia a homossexualidade dele, de que se falava quase à sucapa e, nessa altura do campeonato, aquilo afligia-me um bom bocado.
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Em 1947 fui estudar para Lisboa e o Reinaldo (mais os intelectuais moçambicanos) desapareceram por completo do meu horizonte. Mas em 1952, encontrando-me em Loureço Marques, por uns meses, fui apresentado ao poeta, salvo erro por intermédio do Dr. Domingos Reis Costa. Impressionou-me aquela cabeça desgrenhada e aquele rosto de fauno bom, no qual sobressaiam os olhos grandes e claros, pelos quais perpassava uma curiosidade insaciável e sorridente – tudo isto transparece admiravelmente nos desenhos que, em Johannesburg, fez Dianne Lidchi, um quais serviu para a capa da edição moçambicana dos Poemas. Vi então Reinaldo uma ou duas vezes, em contactos brevíssimos e quase cerimoniosos: o suficientemente, em todo o caso, para pressentir, com enorme força, a presença de alguém.

Vim, novamente, a encontrar o Reinaldo, em Lisboa, entre 1952 e 1955, não me lembro exactamente quando. Ele veio à Europa e trazia um recado qualquer para mim. Sei só que fizemos uma viagem de táxi, entre os Restauradores e a alta de Lisboa. Fiquei mais uma vez seduzido pelo à vontade do Reinaldo, pela sua conversa fluente e bem apetrechada, pela sua evidente simpatia e por aquilo para que não encontro melhor palavra do que a de bondade... Pressentia-se-lhe uma grande generosidade bizarramente associada a algum não despiciendo cepticismo... Foi um breve momento, mas foi suficiente: do Reinaldo, concluí, ficava-se facilmente amigo.

De regresso a Lourenço Marques, em 1955, licenciado em engenharia, contactei uma ou duas vezes, pessoalmente, o Reinaldo e li algumas poesias suas, de grande qualidade, publicadas pelo Manuel Barreto no Diário de Lourenço Marques (antigo Guardian). Foi nessa altura, não sei porquê – eu tinha eternizando-se nos prelos da Livraria Tavares Martins, do Porto, uma antologia do Régio, mas nada meu existia publicado – foi nessa altura que o Reinaldo me disse que tencionava publicar uns seus Poemas Infernais e gostaria que eu os prefaciasse. Fiquei atordoado com a honra e acho que lhe disse isso mesmo. Mas é claro que aceitei, embora consideravelmente apavorado.

Em 1956 fui para a Beira, cidade onde profissionalmente me senti infeliz mas onde culturalmente participei de algumas aventuras excitantes como, por exemplo, a fundação de um Cine-Clube e a publicação de uma revista cultural, o Paralelo 20. Para o nº. 2 desta revista, saído em Setembro de 1957, pedi a Reinaldo Ferreira, a residir em Lourenço Marques, alguns poemas. Enviou-me prontamente os cinco que publicámos nas páginas 26 e 27 da referida revista. Posso afoitamente afirmar, com orgulho, tratar-se de cinco dos mais belos textos entre os que viriam a constituir o corpo de Poemas, publicados em 1960, já depois do falecimento do poeta. São os seguintes, que identificamos pelo primeiro verso da cada um: “Quero um cavalo de várias cores”; “Olhos iguais, outro olhar”; “No amplo e ermo degredo”; “Volver às rimas suaves” e “Regresso de parte alguma”. A generosidade de Reinaldo não se ficou por aqui: no número seguinte – 3-4 - dois dos mais justamente célebres textos do grande poeta foram também publicados: “Futuro” (“Aos domingos, iremos ao jardim”) e “A que morreu às portas de Madrid”.

Em 1958, em fim de Fevereiro, voltei a Lourenço Marques mas logo parti para a África do Sul, para fazer um estágio no sector dos petróleos, só regressando em Julho.

Reinaldo Ferreira alimentava, por então, dois projectos: um era o livro Um Voo Cego a Nada, que seria mais tarde incluído nos Poemas; o outro, ambicioso, era a edição dos Poemas Infernais, para que me pedira um prefácio e que consistiria, pelo menos, de quatro longos poemas: "A Estátua Jacente”, “D. Bailador Bailarino”, “Bispo de Pádua” e “O Ponto”. Destes só “A Estátua Jacente” ficou completo e chegou a ser publicado em vida do autor. Quanto ao notabilíssimo “O Ponto”, como observava o autor da introdução aos “Poemas Infernais”, na edição de Poemas, não se sabe se o autor tencionava desenvolvê-lo. “Mas”, notava Fernando Ferreira, “como também não podemos imaginar nenhuma possibilidade de desenvolvimento capaz de conferir, à singela formulação que encontrámos, um significado mais profundo ou uma maior beleza, não nos achamos autorizados a afirmar que se trata de um poema incompleto. Que seja o leitor a julgá-lo...”

Entre Julho de 1958 e Março de 1959 – data em que um cancro de pulmão se lhe revelou em circunstâncias particularmente dramáticas – pouco vi Reinaldo Ferreira por razões profissionais, sobretudo: encetara uma nova carreira, nos petróleos, ia substituir, na chefia técnica da Total Oil Products, em Moçambique, um sul-africano que regressava a Johannesburg, casaria, no princípio de 1959 e tudo isto me absorvia a atenção e o tempo, sem falar no tempo que reservava a leituras e a alguma escrita. Apanhado de surpresa pela notícia da doença do poeta, que o levaria deste mundo em cerca de três meses, mal arranjei forças para o ir ver à clínica onde passava os últimos dias. Foi um encontro breve e doloroso. Hesitei em ir vê-lo visto que, tendo tido pouco contacto pessoal com ele, a minha visita podia ser interpretada como de... despedida.
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De qualquer modo, quase paralisado de emoção e totalmente sem saber que dizer, limitei-me a acenar-lhe da porta, com estas palavras estúpidas: “Então, Reinaldo?” Olhou-me com o esboço de um sorriso sem ilusões e encolheu os ombros, como quem diz: “É a vida...” ou antes “É a morte...” Pareceu-me que este seu desengano, este seu cepticismo fundo vinha de longe. A vida dera-lhe o dom do seu talento mas fizera-lho pagar caro. No meio pequeno que era a Lourenço Marques de então, a sua homossexualidade não fora nunca claramente assumida. E tentara mesmo “curar-se”, consultando o médico Fernando Ferreira, seu amigo e admirador.

Em Junho, faleceria, com 37 anos. Nascera em Barcelona em 20 de Março de 1922 e fora viver para Lourenço Marques em 1941, com 19 anos. Vivera outro tanto na colónia portuguesa, como funcionário do quadro administrativo, um funcionário inteligente e até excepcionalmente competente mas irregular e não demasiado afecto a horários rígidos. Os seus superiores fechariam os olhos porque o admiravam, gostavam dele e aproveitavam-no para tarefas mais sofisticadas às quais não ascendiam funcionários mais diligentes mas intelectualmente menos ágeis”.
Eugénio Lisboa
(Continua)

1 comentário:

Anónimo disse...

Perante tantos e tão deslumbrantes galões universitários, alguns dos quais por honra, como pode um simples diplomado com o exame do 2º grau, ou seja, da 4ª classe dos bons velhos tempos da "maria da fonte", sair a terreiro, meu caro Dr. Rui Baptista, para emitir opinião que mereça a pena tomar em consideração?!... Cada qual... na sua cadeira, que para alguns é cátedra. Muito folgo!
De qualquer modo, sinto-me felicíssimo pelo facto de o meu inocente "repairo" ter dado lugar a tanta facúndia. "E a vida!" - diria, num encolher de ombros, o Reinaldo Ferreira. JCN

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